Senso Incomum

O direito e o avesso do direito: o que "pega" e por que não "pega"

Autor

14 de julho de 2022, 8h00

Há dias escrevi aqui na ConJur acerca da negativa do Poder Judiciário em cumprir o teor claro do artigo 1.022 do CPC que trata dos embargos de declaração. E escrevi mais uma vez. Trata-se do acesso à justiça. Negado sem que o Judiciário diga, tecnicamente, o porquê da negativa.

Spacca
Aliás, isso já acontecia (e ainda não está totalmente solucionado) com o artigo 212 do CPP, que diz que o juiz só pode fazer perguntas "complementares". E, também, com o prazo de 90 dias para revisão da prisão preventiva, dispositivo declarado inconstitucional pelo STF sem que tivesse parametricidade para tal. Quando o judiciário não gosta de determinado dispositivo, livra-se dele. A lista é longa e o leitor pode complementar.

Não cumprir as leis ou só cumprir as que estiverem de acordo com a vontade do intérprete não é um problema novo no Brasil. É que a comunidade jurídica já se acostumou com isso. E nem se dá conta. A comunidade nem sabe que não sabe. De há muito sustento que o Judiciário somente pode deixar de aplicar em seis hipóteses. Trata-se do direito fundamental que a sociedade tem em relação ao cumprimento do dispositivo que trata da divisão de Poderes.

Fabio Konder Comparato conta bem isso, mostrando a lei e seu avesso acontecendo desde a chegada dos colonizadores. O Brasil recicla.

Um episódio que Comparato lembra é contado por Luiz Gama, o primeiro advogado negro do Brasil e que, com seu trabalho incansável, libertou centenas de escravizados. Já escrevi sobre isso aqui. Assim conta Comparato no site A Terra é Redonda que na década de 1950 do século 19 veio a São Paulo um fazendeiro do interior, trazendo cartas de recomendação de chefes políticos, em busca de dois escravos fugidos apreendidos por um inspetor de quarteirão e declarados livres, em aplicação da Lei Eusébio de Queiroz, de 1850.

Nada tendo conseguido junto às autoridades locais, o fazendeiro seguiu então para a Corte, e lá pediu ajuda ao Ministro da Justiça, o senador e conselheiro Nabuco de Araújo. Ao depois, o presidente da Província recebia um "aviso-confidencial" do ministro, onde Sua Excelência reconhecia que os negros haviam sido "muito bem apreendidos e declarados livres pelo delegado de polícia, como africanos ilegalmente importados no Império".

Porém, na carta o ministro dizia: "Cumpre, porém, considerar que esse fato, nas atuais circunstâncias do país, é de grande perigo e gravidade; põe em sobressalto os lavradores, pode acarretar o abalo dos seus créditos e vir a ser a causa, pela sua reprodução, de incalculáveis prejuízos e abalo da ordem pública".

Segue a carta: "A lei foi estritamente cumprida; há, porém, grandes interesses de ordem superior que não podem ser olvidados e que devem de preferência ser considerados. Se esses pretos desaparecerem do estabelecimento em que se acham, sem o menor prejuízo do bom conceito das autoridades e sem a sua responsabilidade, que mal daí resultará?"

E efetivamente, assim ocorreu: "sem o menor prejuízo do bom conceito das autoridades e sem a sua responsabilidade", os pobres diabos foram devolvidos ao seu proprietário como reles escravos.

Comparato mostra bem os dois lados da lei. Luiz Gama já mostrara também. Passados mais de 150 anos, parece que ainda continuamos a escolher as leis que vamos cumprir. E como o que "a lei diz" é, no Brasil do realismo jurídico, tarefa do próprio emissor da decisão, não há para quem reclamar.

Cabe à doutrina esse papel de "reclamador". Cabe à doutrina "aporrinhar as autoridades". Bernd Rüthers, em premiada obra aqui já tantas vezes referida, mostra a calamidade que é quando a doutrina se queda silente. É o que ele chamou de "interpretação não constrangida" ou "interpretação ilimitada", como aqui já comentei também — embora o tema interesse apenas a meia dúzia de gatos pingados neste país que aos poucos é tomado por TikTok e quejandices.

Comparato mata a cobra e mostra o porrete. Tudo é velho no Brasil. Apenas reciclamos.

Resta à doutrina mostrar indignação. O problema é quando isso não acontece…!

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!