Opinião

A juíza de Santa Catarina entre a cruz e a espada: um falso dilema

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14 de julho de 2022, 9h11

Em 6 de julho de 2022, a Folha de S.Paulo publicou o texto "A juíza entre a cruz e a espada", assinado por Renata Rodrigues Ramos. A foto da juíza Joana Ribeiro Zimmer — que ficou famosa após constranger uma criança de 11 anos vítima de violência sexual a não realizar um aborto — aparece logo no início do texto, deixando claro a quem este se referia.

Embora seja um artigo de opinião, a autora se identifica como "mestre e doutora em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina", o que inevitavelmente confere autoridade às suas falas. Diante disso, nós, mulheres, mestras e doutoras em Direito, professoras, pesquisadoras de instituições públicas e privadas, profissionais com atuação na justiça criminal, nos sentimos impelidas a escrever e publicar o presente texto, com o propósito de revelar algumas falácias apresentadas no artigo acima mencionado.

Trabalhamos no texto durante o dia 6 de julho e, no dia seguinte, o enviamos à Folha, para o editorial Tendências/Debates. Até a presente data, não obtivemos qualquer retorno. Tentamos também por meio de outros canais, contamos com auxílio de outras mulheres, mas, como de praxe, não fomos ouvidas.

No momento em que decidimos publicar em um meio alternativo, outro grave episódio é o centro dos debates. Não poderíamos deixar de mencionar. Uma mulher foi vítima de estupro, praticado pelo médico anestesista durante o trabalho de parto. "Achava ter tido uma alucinação". Foi a frase dita por uma das possíveis vítimas. No Brasil de 2022, nossa alucinação é suportar o dia a dia — como cantava Belchior.

Neste contexto, é urgente falar sobre aborto. É urgente falar sobre direitos sexuais e reprodutivos. É urgente coibir a disseminação de informações falsas e maliciosas. A irresponsabilidade de alguns — inclusive de meios de comunicação — pode custar a vida de meninas e mulheres. Por isso, insistimos na presente publicação, mesmo que pareça intempestiva.

O discurso jurídico, quando afasta o Direito de seus princípios e fundamentos, se converte em retórica vazia. Nessa circunstância, não há certo ou errado: tudo passa a ser defensável, desde que revestido de palavreado jurídico convincente. Porém, a assunção de valores democráticos implica, necessariamente, a tomada de compromissos públicos, de respeito a princípios tais como dignidade, reconhecimento, proteção aos mais vulneráveis, dentre outros. A argumentação, aí, não pode servir ao convencimento irresponsável, mas, sim, à construção de um conhecimento pautado pela ética, pela ciência, pela seriedade e, como já dito, pelo compromisso democrático.

No texto publicado anteriormente, a autora faz uso de falseamentos para conduzir o leitor a uma conclusão sem amparo jurídico e defender a conduta da juíza que violou, de forma gritante, a dignidade de uma criança já violentada. Uma criança negra, mais uma a quem as instituições de justiça viraram as costas em nosso país marcado pelo racismo. Uma criança vítima de uma moralidade hipócrita, que desumaniza sob o pretexto de defender a vida.

Antes de adentrar a questão penal, convém ressaltar que não há decisão jurídica que se situe entre a cruz e a espada. O direito é laico e assim são os seus fundamentos. A autora faz referência a "sistemas jurídicos cristianizados" e evoca uma "cosmovisão cristã", que fundaria o conceito de indivíduo e, por conseguinte, o direito à vida, à liberdade e à igualdade. Esquece, porém, que os direitos humanos, como toda conquista civilizatória, são resultado das lutas dos povos, de enfrentamentos e resistências. A história do processo penal nos recorda que centenas de milhares de pessoas — em especial, mulheres — foram condenadas e queimadas na fogueira por um sistema jurídico fundado em preceitos religiosos. Vivenciamos um momento em que Deus é convocado como fiador de chacinas, genocídios, retrocessos em matérias de direitos, sobretudo dos mais vulneráveis. A juíza, ao "escolher a cruz" usurpou o papel de representante do Estado, impondo sua moral particular. A outra opção não era a espada, mas a lei, o acolhimento, o respeito à dignidade da criança, protegida pela Constituição da República, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e, neste caso, até mesmo pelo Código Penal.

Abortar não equivale a matar um ser humano. E, para demonstrá-lo, nem precisamos nos socorrer da literatura comparada, que mostra como o Brasil é um país atrasado em matéria de direitos sexuais e reprodutivos. O Código Penal brasileiro, de 1940, o diz. Para começar, homicídio e aborto são tratados em artigos distintos, sendo a pena cominada a este significativamente inferior. Além disso, o artigo 128, inciso II, do Código Penal é expresso ao afirmar que não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou, quando incapaz, de seu representante legal.

No texto que ensejou a presente resposta, a autora diz que o aborto, mesmo nesta última hipótese, é crime. A pena deixaria de ser aplicada por "extinção da punibilidade" e seria, aliás, alheia ao conceito de crime. Referido argumento padece de um erro grave, que revela desconhecimento dos conceitos mais básicos de teoria do delito.

Em apertada síntese, de acordo com a teoria tripartite do crime, adotada pelo Código Penal, o crime é fato típico, ilícito e culpável. Se falta um dos três elementos, não há crime. Não se trata de hipótese de exclusão da punibilidade, tais como as previstas no artigo 107 do Código Penal. Tampouco de perdão judicial. Repete-se, para que fique claro: se o médico pratica aborto no caso de gravidez resultante de estupro, não pratica crime. Evidentemente, a gestante também não. Em decorrência do princípio da legalidade, o que não é proibido é permitido e se encontra, portanto, na esfera da liberdade do indivíduo. E, se é permitido, cabe ao Estado assegurar que o aborto possa ser realizado de forma segura e gratuita, sem submeter a mulher a qualquer tipo de constrangimento adicional.

Não é preciso ser feminista ou progressista para cumprir o que está disposto na lei. Esse é o mínimo que se espera de uma servidora pública, admitida através de disputado concurso de provas e títulos (e muito bem remunerada) com a missão de respeitar a Constituição e dar efetividade aos direitos e garantias fundamentais. Se, ao contrário, o juiz ou juíza preferir se fiar pelos preceitos bíblicos, basta trocar o preto da toga pelo da batina e exercer seu mister com a liberdade religiosa que, veja só, a própria Constituição da República assegura.

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