Controvérsias Jurídicas

A polêmica decisão americana e o crime de aborto no Brasil

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

14 de julho de 2022, 8h05

O icônico caso Roe vs. Wade, julgado pela Suprema Corte dos EUA em 1973, foi o responsável por firmar o entendimento de que a Constituição deveria proteger a liberdade individual de mulheres grávidas, garantindo-lhes a opção de fazer o aborto se assim o desejassem. Em razão da decisão, inúmeras leis estaduais que vedavam a conduta foram revogadas, desencadeando amplo debate acerca das consequências para as políticas de saúde pública, desde quem seria o legitimado para autorizar o abortamento até quais os procedimentos médicos recomendados. Sem dúvida, o caso foi paradigmático na política norte-americana, constituindo um grande golpe para alas dos partidos democrata e republicano ligados a setores religiosos, dividindo a opinião pública até os presentes dias.

O litígio se deu em função de um pedido de interrupção de gravidez resultante de estupro, protocolado pelas advogadas Linda Coffee e Sarah Weddington em favor de Norma McCorvey, que à época usava o pseudônimo de Jane Roe, perante o condado de Dallas, Texas, em 1970. Tendo em vista a negativa do representante da unidade federativa, Henry Wade, a contenda foi decidida a favor de Roe pelo Tribunal do Distrito, porém, sem autorização de mudança na legislação. Depois de inúmeros recursos, amparado no direito à intimidade e sob a cláusula do devido processo legal garantido pela 14ª emenda, entendeu a Suprema Corte que à mulher era garantida a liberdade de dispor sobre seu corpo, podendo interromper ou dar continuidade à gravidez sem que nenhuma legislação estadual dispusesse em contrário.

Esse foi o entendimento que perdurou até o último dia 24 de junho, quando a nova composição da Corte revogou a decisão no julgamento do caso Dobbs vs. Jackson Women's Health Organization. Em seu voto, o Justice Samuel Alito afirmou que: "A Constituição não faz referência ao aborto, e tal direito não é implicitamente protegido por qualquer disposição constitucional", possibilitando que os estados legislem livremente sobre a questão.

Assim como lá, o tema no Brasil também suscita debates acalorados. Contudo, não se pode perder de vista o enquadramento técnico-legal que a questão merece. A primeira legislação a dispor sobre o aborto foi o Código Criminal do Império (1830), o qual punia apenas a conduta realizada por terceiro, independentemente do consentimento da gestante; logo, nenhuma pena sofria a gestante que praticasse em si manobras abortivas ou admitisse que outro o fizesse.

O Código Penal de 1890 passou a criminalizar o autoaborto ou o consentimento da gestante para o aborto, porém, previa atenuante de pena se a conduta tivesse o objetivo de ocultar desonra própria, sem que a lei definisse o real significado da expressão, contudo. Por sua vez, a legislação atual tipificou quatro figuras típicas contidas em três dispositivos legais: autoaborto (artigo 124); consentimento da gestante para o aborto (artigo 124, in fine); aborto sofrido ou aborto sem o consentimento da gestante (artigo 125) e aborto com o consentimento da gestante (artigo 126).

O bem juridicamente protegido é a vida intrauterina do ser humano ainda em formação. Mesmo que cientificamente o feto ou embrião não sejam caracterizados como pessoa humana independente, também não são meros componentes do organismo da gestante, tendo em vista que o próprio ordenamento jurídico lhe garante autonomia ao assegurar os direitos do nascituro desde a concepção (artigo 2º do Código Civil) [1].

Por ser crime de mão própria, apenas a gestante poderá ser o sujeito ativo no autoaborto e no consentimento para o aborto (CP, artigo 124). Contudo, há que se lembrar que os crimes de mão própria admitem participação, uma vez que aquele que executar atividade acessória, tais como a de induzir ou instigar a gestante a interromper a gravidez ou auxiliá-la com apetrechos para o autoaborto, responderá não como coautor do artigo 124 do CP, mas sim como autor do crime do artigo 126 do CP (provocar o aborto com ou sem o consentimento da gestante). O mesmo vale para a pessoa que contrata médico para realizar aborto na gestante ou a leva para alguma clínica clandestina. Em ambos os casos responderá como autor do artigo 126 do CP e não como coautor do artigo 124 do CP.

Trata-se, pois, de uma exceção dualista à teoria monista da ação, consagrada no CP, artigo 29 ao dispor: "Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade". Tomando por base a teoria da equivalência das condições necessárias para a produção do resultado, mesmo tendo sido praticado por várias pessoas, o crime permanece como um fenômeno único que deve ser punido igualmente a todos os participantes da ação. Excepcionalmente, como no crime de aborto, adotou o Código Penal a teoria dualista ou mitigada, ao distinguir a atuação dos partícipes e autores em tipos penais definidos.

Por ser delito de forma livre, qualquer meio, comportamento ou procedimento poderá ser utilizado na execução, desde que seja meio hábil para interromper a gestação. As ações nucleares dos tipos são "provocar" e "consentir". Entende-se por provocação a causa artificial geradora da interrupção da gravidez; enquanto que o consentimento é a anuência, concordância ou permissão para que terceiro pratique as manobras abortivas.

O aborto sofrido ou aborto sem o consentimento (CP, artigo 125) é aquele praticado por terceira pessoa que interrompe a gravidez contra a vontade da gestante. Nesse caso, é inequívoco o desejo da mulher em dar continuidade na gestação, porém, contra sua vontade são realizadas manobras abortivas ou quaisquer outras ações aptas a cessar a vida intrauterina do feto ou embrião. Também incidirá nas penas cominadas ao tipo aquele que praticar aborto em mulher menor de 14 anos ou que não tenha condições psíquicas de discernir sobre as consequências de sua decisão (ausência de consentimento presumido). Ressalte-se que para o cometimento do delito não necessariamente a ação deverá ser violenta, bastando a simulação, dissimulação ou qualquer outro artifício que rompa a vigilância da gestante (ex: médico simula um parto enquanto realiza manobras abortivas).

Aborto consensual ou com o consentimento consiste na interrupção da gravidez por terceiro mediante a concordância da gestante. Nesse caso, ocorre a confluência da vontade da gestante e do terceiro, pois ambos pretendem a interrupção da gestação. Assim, estar-se-á diante da hipótese de verdadeiro concurso necessário de crimes, pois exige a participação de duas pessoas, a gestante e o terceiro realizador do aborto, e, a despeito da necessária participação, cada qual responderá por crime distinto (artigo 124, in fine e artigo 126).

A legislação prevê, ainda, duas excludentes especiais de antijuridicidade (CP, artigo 128, I e II) ao se referir ao aborto necessário e humanitário. Diz a lei que não se pune o aborto praticado por médico: I- se não há outro meio para salvar a vida da gestante; II- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. No que tange ao aborto necessário (ou terapêutico), estamos diante de um verdadeiro estado de necessidade, tendo em vista que a prática abortiva é o único meio viável de salvar a vida da gestante. Em que pese a excludente se referir ao médico, se o risco for iminente, na sua falta, outra pessoa poderá realizar a intervenção que estará acobertada pelos artigos 23, I e 24 do Código Penal. O mesmo se diga para a necessidade de anuência da gestante se esta estiver desacordada ou impossibilitada de externar sua vontade.

Cézar Roberto Bitencourt vai além, afirmando que o aborto necessário poderá ser praticado mesmo contra a vontade da gestante: "A intervenção médico-cirúrgica está autorizada pelo dispositivo nos arts. 128, I (aborto necessário), 23 (estado de necessidade) e 146, § 3º (intervenção médico-cirúrgica justificada por iminente perigo de vida. Ademais, tomando as cautelas devidas, agirá no estrito cumprimento do dever legal (art. 23, III, 1ª parte), pois, na posição de garantidor, não pode deixar perecer a vida da gestante" [2].

Denominado como aborto humanitário ou ético (ou sentimental), a segunda hipótese de excludente especial de ilicitude se dá quando a gestação é resultante de crime de estupro, desde que precedida de autorização. Pela lei não há nenhuma limitação temporal para o ato, tampouco a exigência de autorização judicial; bastando que o médico se certifique da verossimilhança das alegações da vítima/gestante através da existência de inquérito policial ou processo judicial que verse sobre o assunto. Caso, hipoteticamente, se verifique que se tratava de afirmação falsa, tendo o médico agido de boa-fé, somente a gestante responderá criminalmente pelo crime do CP, artigo 124, in fine, uma vez que a boa-fé caracterizará verdadeiro erro de tipo, excluindo o dolo e afastando a tipicidade.

Finalmente, não há como não citar o entendimento jurisprudencial que permite a realização do aborto de feto anencefálico. O STF, em julgamento da ADPF 54/04, declarou inconstitucional a interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta típica. Em que pese opiniões em contrário, a decisão da corte é mais do que acertada, uma vez que não há bem jurídico a ser protegido (vida intrauterina). A ausência de encéfalo implica no comprometimento absoluto do sistema nervoso central, sem o qual não há como se falar em vida. Inclusive, antes mesmo do entendimento da Suprema Corte, o artigo 3º da Lei nº 9.434/97 já permitia a retirada post mortem de tecidos e órgãos humanos depois de diagnosticada a anencefalia [3].

 


[1] Art. 2º, CC: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

[2] BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Volume 2, 20ª edição. São Paulo. Ed. Saraiva, 2020, p. 260/261.

[3] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Especial, Volume 2, 20ª edição. São Paulo. Ed. Saraiva, 2020, p. 206.

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