Opinião

Responsabilidade civil em face de violência sexual causada pelo médico

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13 de julho de 2022, 14h04

"Médico é preso em flagrante por estuprar paciente durante parto"[1] é das notícias mais polêmicas recentes nos grandes meios de comunicação.

Dentre outras, uma dúvida fica no ar: como se dá a responsabilidade civil no presente e lamentável caso? É o que se pretende responder aqui por meio de uma metodologia descritiva e exploratória.

Da responsabilidade civil do Poder Público
O fato analisado neste artigo se deu em um hospital público, sendo um caso de responsabilidade extracontratual da Administração Pública, que é aquela que não decorre de um contrato público, tal como no caso analisado na introdução, onde uma mulher foi violentada sexualmente enquanto realizava um parto.

Quanto ao tema, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma:

Entende-se por responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado a obrigação que lhe incube de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos[2].

Pelo conceito do autor supracitado, podemos perceber que o estudo da Responsabilidade Extracontratual se baseia na análise da responsabilização civil do Poder Público pelos danos decorrentes dos atos praticados pela Administração, sejam atos lícitos ou ilícitos, sejam atos omissivos ou comissivos.

Nesse sentido, a nossa Constituição, no parágrafo 6º do artigo 37, afirma:

§6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. (grifos nossos).

Assim, conforme o texto constitucional supra, as pessoas jurídicas de direito público responderão pelos atos praticados pelos seus agentes no exercício da função, ao menos como regra, de forma objetiva, ou seja, independentemente da comprovação de dolo ou culpa,

Desta feita, os atos praticados pelo agente público no exercício da função devem ser imputados ao próprio Poder Público, seja em face da Teoria do Órgão[3], seja em face do princípio da impessoalidade[4], seja em face do princípio da imputação volitiva[5].

Desse modo, quando o médico em questão violentou a paciente, quem cometeu a violência foi o próprio Estado, tendo em vista que o referido profissional, apesar de não ser um servidor público efetivo e sim um prestador de serviço[6], é um agente público no sentido amplo da palavra, sendo esse um ponto extremamente relevante para se entender a situação: o Poder Público não é responsável apenas pelos atos praticados pelos servidores públicos efetivos e sim pelos atos praticados no exercício da função por qualquer agente público, que é um conceito amplo e que abrange: todo "aquele que exerce função pública de forma temporária ou permanente, com ou sem remuneração".[7]

Mas como se dá a responsabilidade civil do próprio médico? É o que veremos no tópico seguinte

Da responsabilidade civil do médico
O mesmo parágrafo 6º do artigo 37 acima mencionado afirma que ficará "assegurado o direito do regresso nos casos de dolo ou culpa". Desta feita, o dispositivo acima adotou o entendimento de que o agente público que praticou o ato não responderá de forma objetiva, e sim, tão-somente, se ficar comprovado que agiu com dolo ou culpa, sendo o dolo no caso em questão evidente, tendo em vista o vídeo demonstrando o ocorrido.  

Assim, ao final, quem deve arcar com o valor da indenização é o autor do dano. Desse modo, surge uma outra indagação: poderia a pessoa lesada optar por entrar com a ação indenizatória diretamente contra o agente público que causou o dano?

O Supremo Tribunal Federal entende que não! Segundo nossa Suprema Corte, não seria possível a responsabilização per saltum do agente público, devendo esse último responder apenas por meio de uma ação de regresso, devido ao fato do mencionado § 6º do artigo 37 da CF prever uma dupla garantia: uma para o lesado, de ser ressarcido e outra para o agente público, de só responder por meio de uma ação de regresso. (vide: Recurso Extraordinário 327.904).

Assim, após uma eventual responsabilização da Estado, o médico em questão deve responder civilmente por meio de outra ação ajuizada pelo próprio Poder Público.

Por outro lado, é possível, como uma faculdade do Estado e segundo entendimento do STJ, a denunciação à lide do médico em questão caso a ação indenizatória se dê com base no dolo. Nesse sentido:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DECISÃO QUE INADMITIU O APELO NOBRE. FUNDAMENTO NÃO IMPUGNADO. INDENIZAÇÃO. DENUNCIAÇÃO À LIDE. SÚMULA 182/STJ. INCIDÊNCIA.
1. A jurisprudência do STJ entende ser necessária a impugnação de todos os fundamentos da decisão denegatória da subida do apelo especial para que seja conhecido o respectivo agravo. Logo, a Súmula 182/STJ foi corretamente aplicada ao caso. 2. "O STJ entende que a denunciação à lide na ação de indenização fundada na responsabilidade extracontratual do Estado é facultativa, haja vista o direito de regresso estatal estar resguardado, ainda que seu preposto, causador do suposto dano, não seja chamado a integrar o feito" REsp 1.292.728/SC, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 15/8/2013, DJe 2/10/2013). 3. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AREsp 1599867/PR, Segunda Turma, relator Ministro OG FERNANDES, julgado em 22.6.2020, DJe de 30.6.2020).

Entretanto, para que seja possível a denunciação à lide, o argumento da ação indenizatória tem que ser o mesmo de eventual ação de regresso, o que não necessariamente vai acontecer, uma vez que, tal como visto acima, a responsabilidade do médico agente público é subjetiva, porém a do Estado é objetiva. De qualquer forma, como no caso aqui analisado o dolo está claro, a vítima pode entrar com uma ação indenizatória alegando apenas o dolo como forma de facilitar a denunciação à lide.

Conclusão
Quanto ao aspecto civil, a responsabilidade no presente caso é direta do Poder Público, não sendo possível entrar com a ação diretamente contra o médico responsável pela violência. Entretanto, caso o argumento da ação contra o Estado se dê com base no dolo, é possível que o Poder Público peça a denunciação à lide levando o médico para o processo inicial de indenização, encurtando, assim, o caminho para que médico responda civilmente pelos seus atos.

Frise-se, outrossim, que a responsabilidade civil independe também da responsabilidade penal e da responsabilidade funcional, que também devem acontecer.

No mais, a responsabilização no presente caso não é apenas uma questão de reparação de um dano, nem apenas uma forma de se fazer justiça, mas sim uma resposta para a sociedade de que não se pode mais aceitar qualquer tipo de violência contra as mulheres.

REFERÊNCIAS
ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso De Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros. 2004.


[1]Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/medico-e-preso-em-flagrante-por-estuprar-paciente-durante-parto-em-hospital-do-rio/

[2]MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso De Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros. 2004. p.917.

[3]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p.684.

[4]ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p.71.

[5]CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020. p.13.

[6]Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62129399

[7]MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.p.862.

Autores

  • é defensor público federal e professor efetivo do IFPE (Instituto Federal de Pernambuco), mestre em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga-Portugal. Especialista em Ciência Política pelo Instituto Prominas.

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