Direto do Carf

A Lindb e a Súmula Carf nº 169: a disformidade oculta sob a repetição

Autor

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

13 de julho de 2022, 8h01

Prosseguindo em nossas reflexões acerca das súmulas editadas pelo Carf, trataremos sobre uma questão aparentemente singela, mas que, na prática, tem trazido preocupações: qual a matéria-prima das súmulas? Confrontaremos a resposta proposta com a Súmula Ca nº 169 ("O art. 24 do decreto-lei nº 4.657, de 1942 (Lindb), incluído pela lei nº 13.655, de 2018, não se aplica ao processo administrativo fiscal") e os seus precedentes.

Spacca
Legenda

Adiantamos que a resposta vem do artigo 72 do Anexo II do Ricarf, que estabelece: "Art. 72. As decisões reiteradas e uniformes do Carf serão consubstanciadas em súmula de observância obrigatória pelos membros do Carf”. Há aqui clara identificação dos "insumos" — "decisões reiteradas e uniformes", condição objetiva da súmula — e dos agentes de criação — "membros do Carf", condição subjetiva da súmula — que são necessários para se editar um enunciado sumular de observância obrigatória.

Quanto à condição subjetiva, os demais artigos do Ricarf cuidam de esclarecer que se trata dos membros das Câmaras Superiores ou do Pleno do órgão, a depender da matéria que será sumulada, estabelecendo quórum para a sua aprovação.

Por outro lado, a condição objetiva faz referência a decisões reiteradas e uniformes, expressão conectada à própria noção de jurisprudência que, conforme o Glossário do STF [1], é definida nos seguintes termos: "Conjunto de decisões reiteradas de juízes e tribunais sobre algum tema. 2. Orientação uniforme dos tribunais na decisão de casos semelhantes".

Como se vê, os atributos de reiteração e uniformidade são intrínsecos tanto à definição de jurisprudência, quanto ao atendimento da condição objetiva para elaboração de súmulas. Parafraseando Prospero, personagem de Shakespeare em "A Tempestade", pode-se dizer que as súmulas são feitas da mesma matéria com a qual é construída a jurisprudência.

Ora, por decisão reiterada deve-se entender a repetição da solução jurídica adjudicada pelo órgão julgador a casos análogos, por diversas vezes — a ausência dessa reiteração, por exemplo, diferencia um precedente da jurisprudência.

A decisão uniforme, por sua vez, também se refere à reiteração dos julgamentos de casos análogos, todavia, seu sentido não se restringe à mera repetição de resultados, sob pena de se reduzir a expressão a mera redundância redacional. Como dissera Carlos Maximiliano, "não se presumem, na lei, palavras inúteis" (verba cum effectu, sunt accipienda), de modo que o adjetivo "uniforme" possui um sentido mais profundo, ligado a uma replicação da ratio decidendi para a tomada da decisão.

Portanto, para que se elabore uma súmula no âmbito do Carf, as matérias-primas utilizadas são decisões sobre casos análogos, que tenham não apenas uma reiteração do resultado, mas uma uniformidade quanto à ratio decidendi adotada pelos acórdãos.

Esclarecido isto, podemos voltar nossa análise à Súmula nº 169, que diz respeito à aplicação do artigo 24 da Lindb [2] aos processos tributários sob julgamento no Carf. A análise ora realizada não é aleatória: o tema foi por nós enfrentado em 2019 (ConJur – Carf rejeita aplicação do artigo 24 da Lindb aos processos tributários), quando analisamos diversos precedentes a respeito e concluímos, verbis:

"Vê-se, portanto, que apesar das decisões serem uniformes na rejeição da aplicação, ainda há uma grande heterogeneidade na combinação de argumentos utilizados — o que dificulta, inclusive, a identificação de qual o motivo determinante da decisão — e prejudica a consolidação da jurisprudência sobre a matéria."

Passados os anos e com a edição da súmula, a despeito das dificuldades identificadas à época, nossa finalidade aqui é analisar se os acórdãos precedentes atenderam aos requisitos regimentais de reiteração e uniformidade.

Para facilitar esse trabalho, adotaremos a sistematização dos argumentos da discussão da aplicação do artigo 24 da Lindb, que elaboramos no artigo citado acima, com algumas adaptações [3]:

a) argumento genético: a exposição de motivos determina que a aplicação da lei seja restrita a órgãos de controle de atos administrativos, como TCU, CGU etc.;

b) argumento consequencialista: a aplicação geraria um engessamento da jurisprudência administrativa e poderia caracterizar um cerceamento do direito de defesa, nos casos em que a estabilização fosse contrária ao contribuinte;

c) argumento institucional: aduz a existência de instrumentos próprios para tornar vinculante a jurisprudência do Carf;

d) argumento literal: o artigo 24 não se subsumiria às hipóteses de aplicação no contencioso administrativo tributário. Essa impossibilidade de subsunção pode ser total, hipótese que nunca seria aplicável ao processo administrativo, ou parcial, sendo possível de ser aplicada em certos casos;

e) argumento de fonte: as normas gerais sobre a aplicação de regras tributárias devem ser veiculadas apenas por lei complementar;

f) argumento temporal: o referido artigo não seria interpretativo, só podendo ser aplicado aos fatos geradores posteriores à sua introdução;

g) argumento da completude: o ato administrativo não estaria "plenamente constituído", em razão da possibilidade de revisão pelo Carf;

h) argumento ontológico: é ínsita ao lançamento por homologação a possibilidade de sua revisão no prazo estabelecido pela lei;

i) argumento da especialidade: a tutela da confiança que se pretende extrair do artigo 24 da Lindb já é estabelecida nos artigos 100 e 146 do CTN, com critérios próprios de aplicação.

Pois bem. Feitos esses esclarecimentos, podemos passar com segurança aos nove acórdãos precedentes [4] da Súmula nº 169. Esse cotejo analítico da decisão com seus fundamentos é fundamental à solidez das conclusões finais.

No Ac. 9202-007.943 [5] adotou-se a fundamentação utilizada no Ac. 9202-007.145, no sentido de que vincular a tomada de decisão presente às decisões passadas seria incompatível com os princípios que regem o processo administrativo, restringindo a livre convicção (argumento consequencialista), que existiriam outros instrumentos com força vinculante, como as súmulas (argumento institucional), e que a regra teria destinação específica outra que não o contencioso tributário (argumento genético). O Ac. 3302-007.542 [6] adota ipsis literis o argumento consequencialista e institucional aduzidos no Ac. 9202-007.943.

O Ac. 9101-004.217 [7] aduz que o artigo 24 trata da revisão de ato administrativo (com cognição ampla e sem restrições de matéria), enquanto o Carf faria reexame da matéria objeto de impugnação, não havendo subsunção da regra aos casos julgados neste órgão (argumento literal total). No Ac. 9101-003.839 [8], cuja única referência para orientar quanto à ratio prevalecente é a declaração de voto da conselheira Viviane Vidal, também recorre à distinção entre função de julgamento dos recursos (reexame) e a função revisional dos atos administrativos (argumento literal total). No Ac. 1302-003.821 [9] também se adotou o argumento literal total, nessa mesma vertente, além de invocar a especificidade do artigo 100 do CTN (argumento da especialidade).

Um breve comentário: causa espécie a ampla aceitação dessa vertente do argumento literal total adotada nessas decisões, tendo em vista que: 1) o artigo 24 se refere também a revisão na esfera judicial, que exerce função judicante, da mesma forma que o Carf; e 2) ao definir "orientação geral", o parágrafo único faz referência expressa à "jurisprudência administrativa majoritária", que é o produto dos atos judicantes praticados nesse contencioso. Entretanto, aqui não é o lugar para avançarmos nessa análise.

O Ac. 3401-007.043 [10] afirma que a Lindb não seria aplicável ao Direito Tributário por ser lei ordinária, e não complementar, como exigido pelo artigo 146 da CF/88 (argumento da fonte), mas complementa afirmando que "os fins perseguidos pelo art. 24 da Lindb estão superpostos com os diversos dispositivos do CTN que tratam de segurança jurídica nas relações tributárias" e, por questão de especialidade, deveria ser aplicável este, e não aquele (argumento da especialidade). Nessa linha, o Ac. 1401-003.632 [11] também adotou esses fundamentos, acrescentando também que a Lindb teria sido criada tendo como pano de fundo processos de contratações públicas (argumento genético), e que o autolançamento não geraria situação plenamente constituída, mas sim precária e provisória, sujeita à homologação do Fisco (argumento da completude), além de invocar brevemente, ao final, o argumento consequencialista.

O Ac. 1402-004.202 [12], apesar da sua ementa, adota como fundamento o Ac. 2402-007.295, cujo voto prevalecente nessa parte, da conselheira Renata Cassini, inicia afirmando que "para nós não há dúvida sobre a incidência das normas da Lindb (…) no âmbito da atividade judicante deste tribunal administrativo", pois ela seria uma norma de sobredireito, aplicável a todos os ramos jurídicos, mas ao final conclui que não haveria orientação geral para o caso específico, rejeitando a aplicação da regra ao caso concreto, posição que prevaleceu no colegiado. O acórdão é flagrantemente contraditório: afirma, sem qualquer motivação, a inaplicabilidade, mas invoca um precedente no qual a Lindb foi tida por aplicável, em abstrato, e rejeitou-se o seu cabimento em concreto — razão pela qual entendemos que deve preponderar a ratio externada no voto proferido. Ao final, menciona como reforço ("no mesmo sentido") o Ac. 1201-003.098, que adotou expressamente o argumento da especialidade.

Por fim, no Ac. 1201-002.982 [13] o redator designado afirma que a Lindb "em princípio, alcança o manuseio do Direito no processo administrativo fiscal", mas ressalva que "o artigo 24 em nada acrescenta às normas tributárias, uma vez que as determinações lá contidas estão materialmente incluídas no CTN" (argumento da especialidade), mas reconhece que no caso concreto não vê qualquer violação a orientação geral, que justifique tutela da segurança jurídica.

Cabe aqui outra nota crítica: o argumento da especialidade é claramente incompatível com a conclusão de inaplicabilidade em abstrato do artigo 24 da Lindb ao processo administrativo fiscal, pois se baseia no confronto entre essa regra e o CTN. Entretanto, vale lembrar que o Carf julga matérias que não estão sujeitas à regra do CTN e, portanto, não estariam abarcadas pelo alcance desse argumento. Mas voltemos ao arremate do raciocínio que vem sendo desenvolvido.

De forma sintética e sistemática, podemos apresentar a seguinte tabela:

Acórdão

Ratio Decidendi – Argumentos adotados

9202-007.943

Consequencialista, institucional e genético

3302-007.542

Consequencialista e institucional

9101-004.217

Literal total

9101-003.389

Literal total

1302-003.821

Literal total e da especialidade

3401-007.043

Da fonte e da especialidade

1401-003.632

Genético, da completude e consequencialista

1402-004.202

Adota como fundamento o Ac. 2402-007.295, que aceita a aplicação da Lindb em abstrato, mas a rejeita no caso concreto. Ao final, como reforço, o Ac. 1201-003.098, baseado no argumento de especialidade.

1201-002.982

Reconhece o alcance da Lindb sobre o processo administrativo, mas rejeita a aplicação no caso concreto, e invoca o argumento da especialidade.

Como se pode ver, apesar de todas as decisões envolverem a rejeição do argumento pela aplicabilidade da Lindb aos casos, demonstrando a reiteração, fica evidente do cotejo analítico delas que não há uniformidade de ratio decidendi nos precedentes utilizados para a edição da súmula nº 169.

Mais do que isso, há inclusive decisões cujos fundamentos (diretamente, para o Ac. 1201-002.982, ou indiretamente, para o Ac. 1402-004.202, pela remissão que fez ao Ac. 2402-007.295) reconhecem a possibilidade de aplicação da Lindb ao processo administrativo, mas rejeitam-na no caso concreto, em contraste direto com o teor literal da súmula, que estabelece que o referido artigo 24 "não se aplica ao processo administrativo fiscal".

A constatação acima nos parecia, desde antes dessa investigação, bastante intuitiva: em 2019 já havíamos escrito que a novidade do tema gerara diversos tipos de argumentos, permeando as rationes dos julgados, dificultando a consolidação da jurisprudência. Em 6/8/2021 foi aprovada a súmula nº 169, cuja redação visou encerrar qualquer discussão acerca da aplicabilidade do artigo 24 da Lindb no âmbito do Carf, interrompendo de maneira artificial e truculenta o processo de amadurecimento do debate no âmbito desse tribunal.

A ausência de uniformidade entre os acórdãos precedentes é reflexo de um debate "jovem", e a função da súmula, em relação às discussões jurídicas, é evitá-las sobre matérias já consolidadas, e não interromper bruscamente aquelas em formação. Independentemente da posição que tenhamos acerca da matéria [14], há que se reconhecer que não havia, no Carf, uma consolidação de entendimentos baseados em decisões reiteradas e uniformes, matéria-prima necessária às súmulas.

No musical "O Fantasma da Ópera", durante a encenação de uma peça fictícia, o Fantasma aparece fantasiado de Don Juan, e tenta conquistar e envolver a protagonista com sua intensidade, que aproveita um certo momento para desmascará-lo (literalmente) chocando a todos com a exibição das deformidades que ele tinha. Aqui também, nos parece que a intensa reiteração dos julgados acabou por ocultar uma evidente falta de uniformidade entre as razões de decidir adotadas, no processo de aprovação da súmula.

Cada vez mais nos parece premente uma análise rigorosa das súmulas já existentes e do processo de formação das novas, para que vejamos além da máscara do enunciado sumular, e investiguemos a presença de eventuais deformidades subjacentes. Bem pertinente é a composição "Point of no return", que acompanha a cena descrita acima do famoso musical: uma vez se adote uma postura investigativa e crítica sobre sobre as súmulas do Carf, e se enxergue as disformidades existentes, chega-se a um ponto do qual não tem volta, felizmente.

 


[2] Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.

[4] Acórdãos Precedentes: 1402-004.202, 9101-004.217, 9101-003.839, 1302-003.821, 9202-007.943, 3302-007.542, 1401-003.632, 3401-007.043 e 1201-002.982.

[5] J. 17/6/2019.

[6] J. 22/8/2019.

[7] J. 5/6/2019.

[8] J. 3/10/2018.

[9] J. 14/8/2019.

[10] J. 23/10/2019.

[11] J. 16/7/2019.

[12] J. 11/11/2019.

[13] J. 12/6/2019.

[14] A posição desse colunista já foi explanada na declaração de voto no Ac. 1301-003.284, e em DANIEL NETO, Carlos Augusto. "A tutela da confiança do contribuinte nos processos administrativos tributários – Reflexões sobre a aplicabilidade do artigo 24 da Lindb". In: Estudos de Interpretação e Aplicação do Direito Constitucional Tributário. 1ª ed.São Paulo: KDP Amazon, 2019, v. 1, p. 1-25.

Autores

  • é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.

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