Paradoxo da Corte

Ainda sobre o Conflito de Competência 185.702-DF (STJ), atinente à arbitragem

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

12 de julho de 2022, 8h01

Voltando a comentar os aspectos processuais emergentes do importante acórdão proferido pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no Conflito de Competência nº 185.702-DF, da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, dedico a presente coluna ao tema da prevalência da legitimação processual ordinária da companhia sobre a legitimação extraordinária dos acionistas minoritários para o ajuizamento de ação de responsabilidade contra os controladores/administradores.

Spacca
O caso realmente além de ser muito interessante desponta inusitado, tanto no âmbito do processo judicial, quanto nos domínios da arbitragem.

O instituto da substituição processual, de todo singular, é normalmente conceituado como o exercício, autorizado por lei, de atividades processuais em nome próprio, em prol de uma situação subjetiva alheia. Trata-se, assim, de legitimação processual extraordinária, na qual a parte em juízo não corresponde ao titular do direito material que constitui o objeto do processo.

Na questão examinada pelo julgado, dentre outros fundamentos, a companhia, suscitante do conflito de competência estabelecido perante a Câmara de Arbitragem do Mercado, sustentou o descabimento de subsistir um precedente procedimento arbitral promovido pelo substituto processual, acionista minoritário, que se antecipara ao pedir a instauração de arbitragem, na defesa de direito material da companhia, sobretudo em hipótese em que esta, sem incorrer em omissão, após a deliberação assemblear que a autorizara a agir, promoveu a instauração de subsequente processo arbitral, lastreado na mesma causa de pedir e com pedido condenatório análogo.

Aduz ainda a suscitante que a possibilidade contemplada no artigo 246 da Lei das Sociedades Anônimas, de os acionistas minoritários promoverem a ação de responsabilidade contra os controladores (no exercício de legitimidade extraordinária), pressupõe, naturalmente, comportamento caracterizado pela inércia da companhia, situação que não se verificou na órbita do caso concreto.

Em regra, a ação de reparação de danos causados ao patrimônio social por atos dos administradores, assim como dos controladores, deverá ser proposta, pela companhia diretamente lesada, que é, naturalmente, a titular do direito material atingido.

Como se infere do acórdão, a denominada ação social de responsabilidade civil dos administradores e/ou dos controladores deve ser promovida, precipuamente, pela própria companhia lesada (ação social ut universi). Em caso de inércia da companhia, a lei confere, subsidiariamente, aos acionistas, legitimidade extraordinária, como substitutos processuais, para promoverem tal demanda, visando à condenação dos controladores por gestão temerária (ação social ut singuli).

Na verdade, como bem pontuado no acórdão, da inatividade da companhia, titular do direito material, é que nasce o interesse processual da atuação dos acionistas minoritários, detentores de legitimação subsidiária extraordinária.

A teor do voto condutor:

"Ao tratar da ação social de responsabilidade civil dos administradores, o artigo 159 da Lei das SA preceituou competir à companhia, mediante prévia deliberação assemblear, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio. O parágrafo 3º do artigo 159 autoriza qualquer acionista a promover a ação, se, após a autorização da AGE, a medida judicial não for proposta no prazo de 3 (três) meses contados da deliberação assemblear. Por sua vez, o parágrafo 4º do artigo 159 dispõe que, ainda que a assembleia geral delibere pela não propositura da ação, a ação poderá ser manejada por acionistas que representem 5% (cinco por cento), pelo menos, do capital social.

Em todo e qualquer caso, portanto, a ação social de responsabilidade de administrador e/ou de controlador promovida por acionista minoritário (ut singili) em legitimação extraordinária, por ser subsidiária, depende, necessariamente, da inércia da companhia, titular do direito lesado, que possui legitimidade ordinária e prioritária no ajuizamento de ação social.

A ação de responsabilidade civil contra os diretores da sociedade por ações, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio, compete à própria sociedade, mas, se esta não a propuser dentro de seis meses, a contar da primeira assembleia geral ordinária, qualquer acionista ficará habilitado a promovê-la (Decreto-lei n. 2.627, de 26-9-1940). A legitimação do acionista é igualmente extraordinária, pois titular do crédito, se existe, é apenas a sociedade; pode aquele, no entanto, agir por si, sem que esta figure no processo".

Assim sendo, enquanto não transcorrido o prazo legal para que a companhia promova a ação de responsabilidade social em face dos administradores e/ou dos controladores (três meses contados da deliberação que a autoriza), o acionista minoritário ainda não ostenta interesse processual para promover a ação social — ut singili — na condição de substituto processual.

Partindo-se dessa premissa, verifica-se que na hipótese levada à apreciação do Superior Tribunal de Justiça, a companhia, antes mesmo do requerimento de instauração da arbitragem pelos acionistas minoritários, já havia publicado edital de convocação para deliberar justamente sobre as medidas legais para a responsabilização civil contra os controladores, administradores e ex-administradores, em conjunto, pelos fatos ilícitos reconhecidos nos acordos estabelecidos com o Ministério Público.

É certo — ressalva o acórdão — que a assembleia não se realizou de modo imediato em decorrência de medida cautelar pré-arbitral e, posteriormente, de instauração de anterior processo arbitral, objetivando exatamente preservar a higidez da votação, afastando-se o conflito de interesses que se daria pelo exercício do direito de voto pela empresa controladora. E tudo isso demorou um tempo considerável!

Diante desse cenário, a questão fulcral, na verdade, centrou-se na impossibilidade de a companhia exercer diretamente seu direito de ação, a despeito de adotar todas as providências necessárias a esse propósito, especialmente no âmbito da arbitragem, em que a escolha dos árbitros é direito fundamental daqueles que se submeterão aos efeitos da autoridade da coisa julgada que se formará sobre a sentença.

Daí porque, "sem incorrer em nenhum comportamento que possa caracterizar inércia, é fato incontroverso nos autos que a companhia, assim que obteve autorização assemblear (AGE/2020), promoveu, de imediato (dentro dos três meses da deliberação autorizativa) e nos exatos termos ali estabelecidos e em conformidade com comitê independente ad hoc formado, o procedimento arbitral destinado a apurar, pelos mesmos e específicos fatos, a responsabilidade não só dos controladores, como também dos administradores e ex-administradores".

Desse modo, entendo corretíssima a conclusão da Turma julgadora, no sentido de que não se pode admitir que a companhia, titular do direito lesado, "fique tolhida de prosseguir com ação social de responsabilidade dos administradores e dos controladores, promovida tempestivamente e em conformidade com autorização assemblear (nos moldes prescritos na lei de regência, mediante atuação determinante de acionista detentor de mais de 5% do capital social) simplesmente porque determinados acionistas minoritários, em antecipação a tal deliberação e, por isso, sem legitimidade para tanto, precipitaram-se em promover a ação social de responsabilidade de controladores, possivelmente objetivando receber o prêmio de cinco por cento, calculado sobre o valor da indenização, a pretexto de defender os interesses da companhia, em legitimidade extraordinária".

Por fim, reconheceu o julgado a prevalência da atuação da companhia, titular o direito lesado, ao requerer a instauração de arbitragem autônoma, nos termos da precedente assembleia, tempestivamente realizada, determinando-se, por via de consequência, a extinção dos dois processos arbitrais anteriormente deflagrados por acionistas minoritários.

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