Opinião

Credenciamento na nova Lei de Licitações

Autores

  • Bernardo Strobel Guimarães

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • Jordão Violin

    é advogado professor doutor e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e LL.M. pela Syracuse University em Nova York.

  • Pedro Henrique Braz de Vita

    é advogado professor doutorando mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em parcerias público-privadas certificado pela APMG International (CP3P Foundation).

10 de julho de 2022, 15h23

A publicação da Lei nº 14.133/2021 gerou uma alta expectativa de modernização nos processos de contratação pública. Essa expectativa, contudo, foi frustrada em grande medida pelo fato de que o legislador optou por replicar muitos conceitos, práticas e posicionamentos já previstos em normas até então vigentes ou sedimentados na doutrina e na jurisprudência. Entretanto, há casos em que a "mera" positivação de instrumentos já experimentados no universo das contratações públicas tende a gerar efeitos bastante benéficos: é o caso do artigo 79 da Lei, que regulamenta o instituto do credenciamento.

O credenciamento, como se sabe, não é uma figura nova no ambiente das contratações públicas. A doutrina [1] e a jurisprudência [2] construídas à luz da Lei nº 8.666/93 já admitiam sua utilização pelo gestor público. Acontece que agora ela está positivada no ordenamento e foi mais bem regulamentada pelo legislador, o que leva a necessidade de uma análise pormenorizada dos seus novos contornos jurídico-procedimentais.

Inicialmente é importante destacar que o credenciamento foi previsto na Lei nº 14.133/2021 como uma das espécies de procedimentos auxiliares, que nada mais são do que instrumentos que podem ser utilizados para auxiliar o procedimento licitatório ou mesmo vir a substituí-lo em certos casos. Tratam-se, basicamente, de ferramentas à disposição da Administração para reduzir a complexidade e aumentar a celeridade e a eficiência do processo de contratação.

Sob a vigência da Lei nº 8.666/93 o credenciamento foi amplamente utilizado naqueles casos em que não era viável a escolha de apenas um particular para suprir os interesses da Administração; nas situações em que a efetiva satisfação da necessidade pública demandava a constituição de uma espécie de banco de fornecedores, composto por todos os particulares que preenchessem requisitos previamente fixados em regulamento, e que seriam convocados, segundo critérios objetivos de distribuição, para firmar contratos à medida em que isso se fizesse necessário.

Em linhas gerais, a Nova Lei conferiu ao credenciamento esse mesmo uso. Basta ver, nesse sentido, a definição prevista no inciso XLIII do artigo 6º: "[…] processo administrativo de chamamento público em que a Administração Pública convoca interessados em prestar serviços ou fornecer bens para que, preenchidos os requisitos necessários, se credenciem no órgão ou na entidade para executar o objeto quando convocados". Com efeito, seja sob a vigência da lei anterior ou da nova, o papel do credenciamento permanece o mesmo: permitir à Administração a seleção de todos os particulares que preencham os requisitos necessários para o fornecimento de determinado bem ou serviço, de forma a facilitar futuras contratações.

Visando diminuir o grau de generalidade desta definição, que ensejou uma série de questionamentos acerca da utilização do instituto por parte dos gestores públicos, o legislador estabeleceu nos incisos do art. 79 as hipóteses de utilização do credenciamento. De acordo com esse dispositivo, o credenciamento é cabível:

a) nos casos de contratações paralelas e não excludentes, isto é, quando a solução da necessidade pública demanda a contratação concomitante ou sucessiva de todos os particulares que preencherem os requisitos previamente fixados. Exemplo: contratação de todos os produtos necessários para o fornecimento de merenda escolar para os alunos da rede pública de educação;

b) nos casos de seleção do contratado a critério de terceiros, ou seja, quando a seleção do fornecedor do bem ou fornecedor do serviço está a cargo não da Administração Pública, mas sim do beneficiário direto da prestação, cabendo ao Poder Público somente credenciar aqueles que atendem aos requisitos previamente fixados. É o caso do credenciamento de laboratórios para a realização de exames pelo SUS. A Administração apenas cadastra os laboratórios regulares, cabendo ao cidadão escolher em qual irá se consultar;

c) nos casos de contratação de bens ou serviços negociados em mercados fluidos. Nesse tipo de situação, a realidade de mercado impõe a flutuação constante do valor da prestação e das condições de contratação do bem ou serviço desejado, de modo que é mais vantajoso à Administração credenciar previamente uma série de potenciais interessados, aumentando assim suas chances de obter condições mais vantajosas quando do surgimento de sua demanda. É o caso, por exemplo, do credenciamento de postos de combustível localizados numa determinada cidade e que estejam dispostos e sejam aptos a abastecer os veículos da frota municipal.

Essa delimitação das hipóteses de cabimento do credenciamento, em que pese ser bem-vinda, abre espaço para que se defenda um suposto caráter taxativo do rol inscrito no incisos do artigo 79, da Nova Lei de Licitações. Entretanto, esse não parece ser o melhor entendimento, afinal, por ter sua utilização atrelada à caracterização de hipótese de inviabilidade de competição (decorrente da necessidade de se realizar a seleção do maior número possível de potenciais fornecedores de bens ou serviços, e, portanto, da inviabilidade de se levar a cabo procedimento que com caráter excludente, tal como uma licitação), é materialmente impossível que o legislador aponte, de antemão, todas as situações concretas em que ele se fará necessário.

Importante observar ainda que para além de definir hipóteses de cabimento do credenciamento, o legislador estabeleceu uma série de regras a serem observadas pela Administração visando sua utilização adequada.

Estabelece o inciso I do parágrafo único do artigo 79 que a Administração deverá divulgar e manter à disposição do público, em sítio eletrônico oficial, edital de chamamento de interessados, de modo a permitir o cadastramento permanente de novos interessados. Esse sítio eletrônico oficial, naturalmente, é o assim chamado Portal Nacional das Contratações Públicas (PNCP), nos termos do artigo 174, §2º, inciso III, da Lei nº 14.133/2021. A divulgação no PNCP é obrigatória.

Nesse mesmo dispositivo, o legislador determinou que a Administração deve permitir o cadastramento permanente de novos interessados, endossando assim o entendimento firmado pelo TCU sob a égide da da Lei nº 8.666/93 (Acórdão 2.707/2014  Plenário). Entende-se que em certos casos essa determinação pode gerar problemas. Basta pensar em um credenciamento destinado a selecionar escritórios de advocacia aptos a prestar serviços de gestão de carteiras massificadas de processos. Neste caso, a seleção e a contratação de um número de escritórios muito superior àquele passível de ser gerido e fiscalizado pode ter como consequência a prestação de serviços de baixa qualidade. Seja como for, infelizmente o legislador não previu exceções à exigência de abertura permanente do credenciamento a novos interessados.

O inciso II, do parágrafo único, do artigo 79, por sua vez, prevê que na hipótese de contratação paralela e não excludente, quando o objeto não permitir a contratação imediata e simultânea de todos os credenciados, deverão ser adotados critérios objetivos de distribuição da demanda. Trata-se de regra que prestigia o princípio da isonomia, impondo a necessidade de a Administração tratar todos os interessados no credenciamento de maneira igualitária. Se todos os interessados que se mostrarem aptos serão selecionados, é importante que os critérios de aferição desta aptidão sejam os mesmos para todos os particulares, especialmente nos casos em que a quantidade da demanda não seja suficiente para a contratação de todos eles. Isto é, se há demanda para apenas um dado número de credenciados, é importante que a seleção dos contratados seja realizada a partir de critérios objetivos e previamente delimitados, sob pena de possível ilegalidade.

O inciso III do parágrafo único, do artiho 79, estabelece que o edital de chamamento de interessados deverá prever as condições padronizadas de contratação e, nas hipóteses previstas nos incisos I e II do artigo 79, deverá definir o valor da contratação. O estabelecimento de condições padronizadas de contratação segue a mesma lógica do estabelecimento de critérios para a seleção do particular credenciado a ser contratado: prestigia o princípio da isonomia, permitindo que os particulares definam de antemão se possuem condições de fornecer o objeto adequado para suprir a necessidade da Administração. Até por isso é importante que o edital de credenciamento contenha as especificações técnicas do objeto a ser fornecido, bem como as exigências de habilitação a serem cumpridas pelos interessados como condição para se credenciarem.

A previsão do artigo 79, parágrafo único, inciso IV, está diretamente relacionada à impossibilidade de a Administração Pública definir um valor de referência minimamente seguro nas hipóteses de contratação de objetos comercializados em mercados flutuantes, ante a constante alteração das condições de preço. Visando garantir algum controle sobre o preço a ser praticado no momento da formalização da demanda, a Lei dispôs que, nessa hipótese, a Administração deverá registrar as cotações de mercado vigentes no momento da contratação. Em tese, isso permite que a Administração acompanhe a curva de variação dos preços relativos ao objeto do credenciamento e identifique eventuais desvios quando da efetiva contratação.

Já o inciso V, do parágrafo único, do artigo 79, proíbe o cometimento a terceiros do objeto contratado por meio de credenciamento, sem autorização expressa da Administração. A regra serve como barreira à utilização do credenciamento como subterfúgio para a contratação de sujeitos que não preenchem sequer os requisitos mínimos estabelecidos previamente em credenciamento. Há de ser seguida, aqui, a mesma lógica que rege a subcontratação que, como se sabe, é admitida pela Lei, exceto quando utilizada como instrumento para viabilizar a cessão total do objeto do contrato.

O inciso VI, por fim, prevê que será admitida a denúncia por qualquer das partes nos prazos fixados no edital. Isso quer dizer que tanto o particular pode se desvincular do credenciamento caso assim deseje, quanto que a Administração pode descredenciar particular que não cumpra com as condições fixadas no regulamento ou que pratique ato contrário à ordem jurídica e que atenta contra os objetivos do procedimento  isso, claro, com a garantia dos direitos ao contraditório e à ampla defesa. Em qualquer caso, recomendável que o órgão ou entidade credenciador discipline a questão no edital de chamamento público, fixando os comportamentos passíveis de ensejarem o descredenciamento e o procedimento a ser seguido para que ele ocorra de maneira legítima.

Note-se, portanto, que a disciplina contida na Lei nº 14.133/2021 é consideravelmente minuciosa. Ademais, o legislador ainda abriu espaço para que sejam editados regulamentos que tratem     dos pormenores acerca do procedimento a ser seguido pela Administração para fazer uso do instituto (artigo 79, parágrafo único). Esse cuidado é positivo, uma vez que garante ao gestor público maior segurança na sua utilização e, consequentemente, aumenta a assertividade e a eficiência do instituto.


[1] Ver JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 18. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. pp. 74-78.

[2] Por todos, ver Acórdão no 3.567/2014, proferido pelo Plenário do Tribunal de Constas União.

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