Tribunal do Juri

Em busca de maior racionalidade na pronúncia: evolução jurisprudencial (parte 1)

Autores

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

9 de julho de 2022, 8h00

O presente texto faz parte de uma discussão em três artigos sobre a adequação prática e teórica da abrangência e limites impostos pela lei quanto à fundamentação da decisão de pronúncia, principalmente pelo viés da evolução jurisprudencial.

Spacca
Sabe-se que a preclusão da decisão de pronúncia encerra a primeira fase do rito do Tribunal do Júri e, com ela, resta reconhecida a admissibilidade da acusação nos termos da sua fundamentação (artigo 413, §1º CPP). Uma vez que não (mais) existe o "grande júri" no Brasil que, no sistema norte-americano, reconhece a viabilidade da acusação, a pronúncia exerce uma verdadeira função garantidora [1] e, ao filtrar [2] eventuais excessos da denúncia (ou queixa), limita o campo de atuação da acusação em plenário (tema que já abordamos), a qual apenas poderá ser restringida (como, por exemplo, solicitando-se a exclusão de uma qualificadora), mas nunca dilatada em prejuízo ao acusado.

Numa primeira leitura, o artigo 413 do CPP parece de fácil interpretação, vez que a pronúncia deve estar apenas limitada na indicação da "materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação do acusado" e ao dever imposto ao magistrado de declarar "o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado", além de "especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena".

De outro giro, é matéria pacífica que nenhuma acusação, leia-se, denúncia ou queixa-crime, pode ser recebida sem a presença de justa causa que, grosso modo, parte do pressuposto de que um ilícito foi praticado e que um dado agente é o provável autor/partícipe desse fato:

"(…). 5. Se, por um lado, o standard probatório exigido para a condenação é baseado em juízo de certeza que exclua qualquer dúvida razoável quanto à autoria delitiva, por outro lado, para o início de uma investigação, exige-se um juízo de mera possibilidade. A justa causa para o oferecimento da denúncia, a seu turno, situa-se entre esses dois standards e é baseada em um juízo de probabilidade de que o acusado seja o autor ou partícipe do delito. (…)" [3].

Diante disso, a vingar uma lógica simplista, para alguns seria possível afirmar que se existe substrato para o recebimento da denúncia, já existiria, de plano, matéria para a pronúncia, o que não podemos concordar face aos distintos momentos processuais que se alocam cada decisão [4]. Tais operadores utilizam um reforço argumentativo que é (ainda) encontrado em várias decisões, as quais buscam fazer valer o in dubio pro societate em face da presunção de inocência e da lógica do sistema bifásico que estrutura o Tribunal do Júri.

No presente artigo, procuraremos demonstrar que cada vez mais a jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem se debruçando sobre a temática da pronúncia, procurando estabelecer critérios mais racionais e objetivos, identificando o standard probatório necessário para que o acusado possa, à luz de um processo verdadeiramente democrático e condizente com as garantias constitucionais, ser levado ao plenário do Tribunal do Júri [5].

Mas, para tanto, devemos partir de uma premissa fundamental, qual seja, a compreensão que deve ser levada a efeito pelo magistrado no momento da pronúncia não pode ser a mesma cognição para o recebimento da denúncia/queixa. O raciocínio é simples e irrefutável. Os elementos presentes na etapa pré-processual —  excepcionando-se apenas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas , não são suficientes para fundamentar a pronúncia, eis que, além de produzidos abstraídos da participação das partes em contraditório, da observância da oralidade e imediatividade, ainda não contam com a presença do juiz natural. Ademais, se por si só já autorizassem a pronúncia, o sistema escalonado que ilumina o júri no Brasil perderia totalmente a sua função de filtro e controle, ou seja, de instrumento garantidor da existência de uma acusação que observe o standard probatório para a pronúncia.

Esse tema não passou despercebido pela atual reflexão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Em voto condutor, afirmou o Min. Sebastião Reis Júnior [6]:

"(…). Ademais, esta Turma tem entendimento no sentido de ser ilegal a sentença de pronúncia com base exclusiva em provas produzidas no inquérito, como no caso dos autos, sob pena de igualar em densidade a sentença que encera o jus accusationis à decisão de recebimento de denúncia. Todo o procedimento delineado entre os artigos 406 e 421 do Código de Processo Penal disciplina a produção probatória destinada a embasar o deslinde da primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri. Trata-se de arranjo legal, que busca evitar a submissão dos acusados ao Conselho de Sentença de forma temerária, não havendo razão de ser em tais exigências legais, fosse admissível a atividade inquisitorial como suficiente (HC nº 589.270/GO, de minha relatoria, Sexta Turma, DJe 22/3/2021). (…)".

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça também já enfrentou o tema:

"(…) No Estado Democrático de Direito, a força argumentativa das convicções dos magistrados deve ser extraída de provas submetidas ao contraditório e à ampla defesa. Isso porque o mínimo flerte com decisões despóticas não é tolerado e a liberdade do cidadão só pode ser restringida após a superação do princípio da presunção de inocência, medida que se dá por meio de procedimento realizado sob o crivo do devido processo legal.

Importa registrar que a prova produzida extrajudicialmente é elemento cognitivo destituído do devido processo legal, princípio garantidor das liberdades públicas e limitador do arbítrio estatal. (…)" [7].

A argumentação utilizada por alguns de que a prova em contraditório poderá ser produzida em plenário não é suficiente a superar o esvaziamento da prova oral na instrução da primeira fase do procedimento, pois, do contrário, teríamos que conviver com dois dilemas. Primeiro, admitiríamos que a pronúncia pode ser fundamentada exclusivamente nas oitivas colhidas perante a autoridade policial. Segundo, caso nenhuma testemunha comparecesse ao júri para ser inquirida em exame cruzado e o acusado exercesse o seu direito ao silêncio, a eventual condenação pelo júri estaria estribada exclusivamente nos elementos investigativos, algo que nem o Tribunal do Júri pode fazer. Aliás, este o entendimento extraído em decisão da 6ª Turma do STJ.

"(…). 2. Mesmo que se trate de Tribunal do Júri, não se admite que a condenação esteja fundamentada tão-somente em prova produzida no inquérito policial, ainda que seja o depoimento da Vítima, e no depoimento de testemunhas de 'ouvir dizer', mormente quando estes últimos possuem contradições entre as versões prestadas na fase investigatória e judicial" [8].

Mesmo os jurados não externando a fundamentação da decisão, nessas hipóteses não existiria dúvida de que o seu "livre convencimento" estaria apegado aos elementos indiciários, únicos que, em tese, seriam amplamente utilizados em plenário diante do vazio do contraditório (tema que também já abordamos anteriormente).

Malfadado in dubio pro societate
Utilizado como uma espécie de mantra para fundamentar a necessidade de o acusado ser levado ao júri popular, o in dubio pro societate é repente empregado sem muita reflexão para deixar de enfrentar temas sensíveis, refutar a tese defensiva, objetar a presunção de inocência e muitas vezes fazer valer os elementos de informação presentes na investigação preliminar em detrimento da prova produzida em juízo.

Nesse ponto, pensamos que a jurisprudência passa  a passos lentos, é verdade — a lançar um olhar crítico sobre o referido brocardo que, se ainda não é suficiente a expurgá-lo das fundamentações [9], já representa um início de lucidez e um trilhar mais condizente com as regras e princípios constitucionais. Para tanto, vejamos algumas passagens colhidas em votos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal:

"Como já afirmei anteriormente, penso que há uma lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto 'princípio in dubio pro societate', que, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova. Além de desenfocar o debate e não apresentar base normativa, o in dubio pro societate desvirtua por completo o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro, esvaziando a função da decisão de pronúncia" (ministra Cármen Lúcia)[10].

"Como dizem autores eminentes, a regra do 'in dubio pro societate', na verdade, não constitui princípio algum, tratando-se de critério que se mostra compatível com regimes de perfil autocrático que absurdamente preconizam, como acima referido, o primado da ideia de que todos são culpados até prova em contrário (!?!?), em absoluta desconformidade com a presunção de inocência, que, legitimada pela ideia democrática, tem prevalecido, ao longo de seu virtuoso itinerário histórico, no contexto das sociedades civilizadas, como valor fundamental e exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana" [11] (ministro Celso de Mello).

Se os indícios são insuficientes, esclarece o ministro Lewandowski, "deve-se impronunciar o réu e não aplicar o adágio forense in dubio pro societate, por ferir a garantia constitucional da presunção de inocência" [12]. Em pensamento correlato, o ministro Gilmar Mendes aduz que o adágio in dubio pro societate não encontra amparo constitucional e desvirtua as premissas racionais de valoração da prova. Adiante, destaca:

"Além de desenfocar o debate e não apresentar base normativa, o in dubio pro societate desvirtua por completo o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro, esvaziando a função da decisão de pronúncia" [13].

Fato é que as críticas sobre o princípio do in dubio pro societate tinham endereço exclusivo para a doutrina [14] e pouco, ou quase nenhum, enfrentamento jurisprudencial. É como se ele existisse para os julgadores e inexistisse para os doutrinadores. Em sala de aula, professores sofreram  e ainda sofrem  para explicar algo inexplicável! E pior: sua existência minimiza a responsabilidade decisória e a abrangência da fundamentação da decisão de pronúncia

A questão precisa continuar a ser refletida por todos que estudam e atuam com responsabilidade no Tribunal do Júri, justamente para fazer valer o conteúdo normativo dos requisitos essenciais para a decisão de admissibilidade da acusação e levar o Conselho de Sentença  juiz natural da causa  a atuar a partir de premissas democráticas válidas.

Esses serão os pontos que abordaremos na próxima semana, tendo como base a análise da evolução da jurisprudência pátria.


[1] AQUINO, Álvaro A. A função garantidora da pronúncia. Lumen Juris, 2004. p. 114.

[2] Conforme já pontuado pela ministra Cármen Lúcia, "(…) não se pode admitir que o juiz togado deixe de realizar a sua função institucional no procedimento do Júri, a qual impõe que a primeira fase se consolide com um filtro para evitar a submissão de casos temerários à decisão dos leigos" (STF, 2ª Turma, HC nº 179.201/PI, relatora ministra Cármen Lúcia, Sessão Virtual de 09/10/2020 a 19/10/2020).

[3] STJ, 6ª. Turma, HC nº 734.709/RJ, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, j. em 7/6/2022.

[4] Esse tema foi enfrentado por VASCONCELOS, Vinicius Gomes de. Standard probatório para a decisão de pronúncia ao Tribunal do Júri e a inadmissibilidade do in dubio pro societate. In Manual do Tribunal do Júri. A reserva democrática da justiça brasileira. Denis Sampaio (org.). Florianópolis: Emais, 2021, pp. 235/244.

[5] Sobre o tema fundamental a leitura do capítulo intitulado "Ainda sobre o in dubio pro societate x in dubio pro reo", de Rodrigo Faucz e Priscilla Kavalli, no livro "Estudos em Homenagem aos 200 anos do Tribunal do Júri no Brasil", publicado pela Editora RT  Thomson Reuters Brasil.

[6] HC nº 640.868/RS, j. em 1/6/2021.

[7] 5ª. Turma STJ. AgRg no REsp. n. 1.740.921/GO. Relator ministro Ribeiro Dantas, j. 06.11.2018.

[8] STJ, AgRg no AREsp 1847375/GO, relator ministro Laurita Vaz, j. em 01/06/2021.

[9] Exemplificadamente, apontamos os seguintes e atuais precedentes que ainda se valem do in dubio pro societate como fundamento para a pronúncia: STJ, 5ª. Turma, AgRg no HC nº 675.153/GO, relator ministro João Otávio de Noronha, j. em 10/5/2022; STJ, 6ª. Turma, AgRg no HC nº 724.049/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, j. em 15/3/2022.

[10] STF, 2ª Turma, HC nº 179.201, relatora ministra Cármen Lúcia, Sessão Virtual de 09/10/2020 a 19/10/2020.

[11] Extrai-se do voto proferido pelo ministro Celso de Mello, quando do julgamento do HC nº 179.201.

[12] STF, ARE 1304605 ED-AgR, 2ª. Turma, relator ministro Ricardo Lewandowski, j. em 12/05/2021.

[13] STF, 2ª. Turma, ARE nº 1.067.392/CE, relator ministro Gilmar Mendes, j. 26/03/2019. Porém, em sentido parcialmente distinto do que restou decidido no julgado acima, o mesmo julgador assestou em ano subsequente que o "princípio in dubio pro societate deve prevalecer na sentença de pronúncia, de modo que não existe, neste ato, ofensa ao princípio da presunção de inocência, uma vez que objetiva-se garantir a competência constitucional do Tribunal do Júri". (RHC 192846 AgR, relator Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. em 24/05/2021. Trata-se, aliás, de entendimento que ainda prevalece na 01ª. Turma do STF: ARE 1250182 AgR, relator ministro Luiz Fux, j. em 21/02/2020.

[14] Como exemplo: PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Pronúncia e o in dubio pro societate. In Direito Criminal, Vol. 4. José Henrique Pierangeli. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, pp. 55/82; DIAS, Paulo Thiago Fernandes. A decisão de pronúncia baseada no in dubio pro societate.  2ª. ed. Florianópolis: Emais, 2020; TACHY, Mayara Lima. O Tribunal do Júri e o in dubio pro societate. In Manual do Tribunal do Júri. A reserva democrática da justiça brasileira. Denis Sampaio (org.). Florianópolis: Emais, 2021, pp. 217/226. PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; KAVALLI, Priscilla.  Ainda sobre o in dubio pro societate x in dubio pro reo. In Estudos em Homenagem aos 200 anos do Tribunal do Júri no Brasil. Rodrigo Faucz e Daniel Avelar (Org.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.

Autores

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

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