Prática Trabalhista

STF e a pejotização de profissionais liberais: terceirização ou fraude?

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

7 de julho de 2022, 8h02

O debate em torno da problemática da "pejotização" e da terceirização na Justiça do Trabalho ressurge agora com forte preocupação para nós estudiosos da área e, sobretudo, para a advocacia trabalhista, em razão de recentes decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

A "pejotização", como é cediço, é conhecida no meio jurídico como uma prática para mascarar uma verdadeira relação de emprego, e, por conseguinte, obter a redução de custos. Isto ocorre quando o contrato de trabalho que deveria ser firmado com a pessoa física do trabalhador se transmuta, ao arrepio da legislação trabalhista, para um contrato de prestação de serviços através de uma pessoa jurídica por ele constituída.

Já na terceirização ocorre a efetiva transferência da atividade (fim ou de meio) da empresa contratante para um prestador de serviços contratado, empresa jurídica essa de direito privado à luz do artigo 44 do Código Civil [1], que possua capacidade econômica coadunável com a sua execução, cujo contrato seja compatível com seu número de empregados, tal como impõem os artigos 4º-A e 4º-B da Lei 6.019/74 [2], alterada que foi pelas Leis 13.429/2017 (Terceirização) 13.467/2017 (Reforma Trabalhista).

É verdade que na área jurídica algumas bancas de advocacia já sinalizaram positivamente no incentivo da terceirização de advogados para empresas, seus clientes, levando em conta as necessidades dos respectivos departamentos jurídicos [3]. Por isso é preciso um olhar precavido sobre este fenômeno da "pejotização", para se evitar que haja uma manobra para fraudar a legislação e burlar direitos trabalhistas.

Spacca
Nesse sentido, oportunos são os ensinamentos do professor Homero Batista [4]:

"O uso corriqueiro da constituição de empresas de fachada, para esconder a relação de emprego e o trabalhador e o empregador, gerou até mesmo algumas novas na língua portuguesa, como pejotização, empregado pejotizado ou pejotizar a mão de obra, tudo girando em torno da da conhecida sigla PJ, de pessoa jurídica.

(…). O panorama é desalentador. Numerosos segmentos profissionais foram simplesmente varridos do mundo empregatícios para renascerem no mundo pejotizado, como médicos, engenheiros de produção, técnicos de informática e atividades intelectuais, sendo muito difícil sequer imaginar que alguns deles tenham capacidade de resistência quanto a modalidade de contratação definida pelo empregador, quer dizer, pelo dador dos serviços. Ouso dizer que se criou até mesmo um estigma em torno desse assunto, de modo que a vaga para o médico empregado celetista normalmente é vista com desconfiança e aufere renda menor do que a vaga para o médico pejotizado, que deve sacar notas fiscais de prestação de serviços para a clínica ou hospital, formando-se um enorme círculo vicioso sob severas críticas tanto à CLT quanto à Justiça do Trabalho. A incompreensão campeia".

Dito isso, de acordo com uma nova Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as possibilidades de trabalho são melhores para as pessoas jurídicas que, na maior parte das vezes, atuam da mesma forma que os empregados celetistas [5]. De outro norte, outro importante estudo concluiu que, com o advento das leis da terceirização e da reforma trabalhista, o fenômeno da "pejotização" aumentou entre a população mais jovem [6], sobretudo em tempos de pandemia da Covid-19.

Ora, é de conhecimento notório que há uma enorme diferença nos custos na contratação do empregado celetista em comparação ao contrato de prestação de serviços através de pessoa jurídica. Por um lado, o empregado celetista pode chegar a ter retido na fonte a tributação de até 27,5% do seu salário, ainda que faça jus ao recebimento de benefícios legais e normativos, tais como FGTS (8% mensal + multa rescisória de 40%), férias remuneradas com o terço constitucional, 13º salário, aviso prévio, horas extras, salário família, vale-alimentação, vale-transporte, seguro-desemprego, plano de saúde etc; lado outro, no modelo de contratação da "pejotização", conquanto os benefícios legais e normativos não existam, é certo também que não há imposto de renda retido na fonte.

De igual modo, no que diz respeito ao custo da empresa, o recolhimento patronal do INSS gira na média do percentual de 28% no contrato celetista, ao passo que na "pejotização" este pode atingir 14%, em observância a faixa salarial. Frise-se, por oportuno, que ao emitir a nota fiscal o prestador de serviço também pode optar quanto ao pagamento do INSS para adquirir direito à aposentadoria.

Feita essa contextualização, não são raros os casos em que profissionais liberais optam ou são competidos e incentivados a aderirem à sistemática da "pejotização" que, tal como foi dito acima, aparenta ser mais atrativa, haja vista que o salário líquido é maior comparado ao que receberia no contrato celetista, diante da ausência de retenção de imposto de renda.

Acontece, porém, que a pactuação quanto à forma do contrato (celetista ou PJ) entre as partes contratantes é vedada por lei, tanto que foi explicitada na própria Lei da Reforma Trabalhista que, ao acrescentar o artigo 611-B ao texto celetista, logo no seu inciso I vedou a possibilidade, ainda que por via negociação coletiva, de se transacionar "normas de identificação profissional, inclusive as anotações na Carteira de Trabalho e Previdência Social". Fosse essa prática válida certamente muitos seriam os trabalhadores e empresas que, ao invés de assumirem os custos inerentes ao sistema celetista de contratação, fariam naturalmente opção pela modalidade da "pejotização" com a consequente redução da carga tributária.

Entrementes, fato é que, recentemente, o E. STF, ao apreciar a Reclamação Constitucional nº 53.899 [7], em decisão monocrática, considerou válido na hipótese "sub judice" o contrato de associação firmado entre uma advogada e um escritório de advocacia. Na prática, foram suspensos os efeitos, ainda que a título provisório, das decisões de primeira e segunda instâncias da JT que reconheciam o vínculo de emprego entre as partes.

Em sua decisão, o relator ministro Dias Toffoli, para justificar a concessão da medida liminar, afirmou que "a discussão permeia a verificação da regularidade da contratação de pessoa jurídica formada por profissional liberal para prestar serviços terceirizados na atividade-fim da contratante, o que demonstra a plausibilidade na tese de desrespeito à autoridade do Supremo Tribunal Federal pela autoridade reclamada" [8].

Tal decisão segue a mesma "ratio decidendi" de outra Reclamação Constitucional de nº 47.843, a qual, já transitada em julgado após o julgamento do recurso de agravo regimental, concluiu pela licitude da terceirização, através do fenômeno da "pejotização", por meio da contratação de pessoa jurídica formada no caso por médicos prestadores de serviços terceirizados a um determinado hospital contratante [9]. Na ocasião, ficaram vencidas as ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber, prevalecendo o voto do ministro redator Alexandre de Morais, o qual foi acompanhado pelos ministros Luis Roberto Barroso e Dias Toffoli.

Aliás, esse é o entendimento que vem sendo aplicado no âmbito da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a saber:

"CONSTITUCIONAL, TRABALHISTA E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO. OFENSA AO QUE DECIDIDO POR ESTE TRIBUNAL NO JULGAMENTO DA ADPF 324 E DO TEMA 725 DA REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO PROVIDO. 1. A controvérsia, nestes autos, é comum tanto ao decidido no julgamento da ADPF 324 (rel. min. ROBERTO BARROSO), quanto ao objeto de análise do Tema 725 (RE 958.252, rel. min. LUIZ FUX), em que esta CORTE fixou tese no sentido de que: 'É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante' . 2. A Primeira Turma já decidiu, em caso análogo, ser lícita a terceirização por 'pejotização', não havendo falar em irregularidade na contratação de pessoa jurídica formada por profissionais liberais para prestar serviços terceirizados na atividade-fim da contratante (Rcl 39.351 AgR; rel. min. ROSA WEBER, Red. p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 11/5/2020). 3. Recurso de Agravo ao qual se dá provimento" (DJe de 22/2/2022).

Contudo, a efetiva tese fixada pela Suprema Corte no julgamento da ADPF 324 [10], a que se pautaram as reclamações constitucionais ora acima citadas, caminhou no sentido de que "a terceirização não enseja, por si só, precarização do trabalho, violação da dignidade do trabalhador", todavia, o seu exercício abusivo poderia ensejar tal violação.

De igual sorte a tese firmada no Tema nº 725, da sistemática da repercussão geral do STF, conquanto tenha reputada ser "lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas", partiu naturalmente da adoção de terceirizações lícitas, em que observadas as diretrizes da Lei nº 13.429/2017 que disciplina o assunto, e não a prática ilegal da "pejotização" que não se confunde com a típica e regular terceirização de prestação de serviços, cuja fraude, uma vez evidenciada, atrai o reconhecimento do liame empregatício, se presentes no caso os requisitos contidos no artigo 2º [11] e 3º [12] da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

A terceirização de serviços, referendada pelo E. STF na ADPF 324 e no RE nº 958.252 (Tema 725 RG), não é sinônimo de intermediação de mão-de-obra, esta última apenas permitida por lei na modalidade de contrato temporário. Tanto é assim que, para fins de uma regular e lítica terceirização, são obrigações impostas pela legislação: (1) ser empresa jurídica privada que possua capacidade financeira com o objeto do contrato de prestação de serviços pactuado; (2) a existência de empregados pela própria empresa terceirizada contratada; (3) ter inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) e registro na Junta Comercial; (4) o contrato de prestação de serviços, que deve ser escrito, conterá a especificação do serviço a ser prestado, o prazo para realização do serviço, quando for o caso, e o seu respectivo valor.

Neste desiderato, se a "pejotização" implica, na prática, que o trabalhador seja, a um só tempo, a empresa contratante e o prestador de serviços, naturalmente o conceito basilar da própria terceirização cai por terra, afinal, essa pressupõe na essência uma especialidade na execução daquele serviço contratado, em autêntica triangulação de atividades entre contratante, empresa contratada e o empregado prestador de serviço. Logo, é impossível equiparar a "pejotização" com a regular terceirização.

Bem por isso, seja porque a validade formal do contrato de prestação de serviços na "pejotiação" não pode ser chancelada do ponto de vista da lei, seja porque a presença no caso concreto dos requisitos legais da relação de emprego afasta a adoção da terceirização, certo é que deve prevalecer o princípio da primazia da realidade, de modo que, com base no artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho, "serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar os preceitos contidos na presente Consolidação".

Se é verdade que as normas do Direito do Trabalho podem sofrer mutações por força das novas diretrizes jurisprudenciais advindas do Supremo Tribunal Federal, de igual modo esta flexibilidade não pode ser confundida com desregulamentação e/ou desconstrução de direitos.

Em arremate, é forçoso lembrar que todo e qualquer contrato de prestação de serviços, via "pejotização" ou via terceirização, por meio do qual se pretende afastar o vínculo de emprego, exige um olhar ponderado e prudente, a fim de verificar se a "forma" não é apenas uma máscara da realidade de um típico liame empregatício.

 


[1] CC, Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: I – as associações; II – as sociedades; III – as fundações. IV – as organizações religiosas; V – os partidos políticos.

[2] Art. 4o-A. Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução. § 1º. A empresa prestadora de serviços contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores, ou subcontrata outras empresas para realização desses serviços. §2º. Não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante.

4º-B. São requisitos para o funcionamento da empresa de prestação de serviços a terceiros: I – prova de inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ); II – registro na Junta Comercial; III – capital social compatível com o número de empregados, observando-se os seguintes parâmetros: a) empresas com até dez empregados – capital mínimo de R$ 10.000,00 (dez mil reais); b) empresas com mais de dez e até vinte empregados – capital mínimo de R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais); c) empresas com mais de vinte e até cinquenta empregados – capital mínimo de R$ 45.000,00 (quarenta e cinco mil reais); d) empresas com mais de cinquenta e até cem empregados – capital mínimo de R$ 100.000,00 (cem mil reais); e e) empresas com mais de cem empregados – capital mínimo de R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais).

[4] Direito do Trabalho aplicado: teoria geral de direito do trabalho e do direito sindical – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021 – página 33 e 34.

[11] Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.

[12] Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.

Autores

  • é mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador acadêmico do projeto "Prática Trabalhista" (ConJur), membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo "O Trabalho Além do Direito do Trabalho", da USP.

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