Opinião

Sociedade Anônima do Futebol e o regime tributário

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6 de julho de 2022, 13h03

A Sociedade Anônima do Futebol (SAF) foi instituída pela Lei 14.193/2021, publicada em 09/8/2021 e retificada no DOU (Diário Oficial da União) em 21/10/2021. Além de estabelecer normas para constituição, controle, governança, transparência, meios de financiamento da atividade dos clubes de futebol e tratamento dos passivos, a Lei prevê um regime de tributação específico, denominado "Regime de Tributação Específica do Futebol" (TEF) [1].

Vale lembrar que os artigos que tratam desse regime de tributação foram inicialmente vetados, por terem sido considerados contrários ao interesse público ao acarretarem renúncia de receita, sem o cancelamento de outra despesa obrigatória e sem a estimativa do seu impacto orçamentário.

Entretanto, o veto presidencial foi derrubado. Desse modo, os clubes de futebol que não eram tributados na forma de Associação, por força da isenção de IRPJ [2], CSLL [3] e Cofins [4], ao optarem pela SAF, passarão a recolhê-los [5].

A Lei prevê o Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF), considerando as especificidades da atividade econômica do futebol. Ela unifica o recolhimento de IRPJ, CSLL, Contribuição ao PIS, Cofins e contribuição previdenciária à alíquota de 5% da receita mensal auferida.

Em outras palavras, traz um regime tributário simplificado de arrecadação de tributos federais, sendo certo que, na prática, irá implicar no recolhimento mensal, em documento único de arrecadação, desses tributos, quais sejam: 1) Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ); 2) Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS); 3) Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL); 4) Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); e 5) Contribuição Previdenciária Patronal ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e do Risco Ambiental do Trabalho (RAT) [6].

Entretanto, a SAF permanece obrigada a recolher, principalmente, o ISS sobre as prestações de serviço, cuja alíquota poderá variar de 2% a 5% a depender do Município, a contribuição social sobre a folha de salários de 7,65% a 11% e as contribuições de terceiros de 4,5% incidente também sobre a folha de salários.

Vale destacar que a receita mensal, base de cálculo do TEF, deve ser entendida como "a totalidade das receitas recebidas pela Sociedade Anônima do Futebol, inclusive aquelas referentes a prêmios e programas de sócio-torcedor", como determina o artigo 32, §1º da Lei 14.193/2021. O dispositivo excepciona expressamente as receitas relativas à cessão dos direitos desportivos dos atletas.

A definição está de acordo com a legislação societária. Tem-se como "receita" o ingresso bruto de benefícios econômicos durante o curso das atividades ordinárias da entidade que resultam no aumento do seu patrimônio líquido, exceto os aumentos relacionados às contribuições dos proprietários, acionistas ou quotistas [7].

Entre as receitas auferidas pela SAF estão aquelas decorrentes da exposição da marca, as receitas de transmissão dos jogos, a relativa à venda de produtos licenciados, além de bilheteria, prêmios e programas sócio-torcedor. Além dessas, merece destaque aquela que é a mais rentável e que se refere à transferência de jogadores profissionais, que, segundo relatório da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), movimentou R$ 2,5 bilhões em 2020 [8]. Essas transferências enquadram-se como cessão dos direitos desportivos dos atletas, excluídas da base de cálculo do TEF.

Segundo o artigo 32, durante os cinco primeiros anos da constituição da SAF, o TEF incidirá à alíquota de 5% incidente sobre as receitas mensais recebidas, definidas no citado artigo 32 §1º, definida anteriormente.

Contudo, esse modelo de recolhimento unificado de tributos, baseado no Simples Nacional, será integralmente adotado somente após esses cinco primeiros anos.

Desse modo, a partir do sexto ano-calendário da constituição da SAF, a alíquota aplicável passará a ser de 4% sobre a receita mensal recebida, em que, desde então, deverá ser incluída a receita da cessão de direitos desportivos de atletas. Há, portanto, a ampliação da base de cálculo do TEF e a redução da alíquota incidente.

A exclusão de tais valores nos primeiros cinco anos de constituição da SAF equivale a fazer com que a entidade desportiva passe de uma situação de isenção de IRPJ, CSLL e Cofins, principalmente, para a tributação da receita "usuais" mensalmente auferidas à alíquota de 5%.

Além disso, o que se espera é que Associação e SAF, durante esses primeiros anos, consigam ter rentabilidade. Nesse sentido, essa sistemática é benéfica para ambas, na medida em que favorece diretamente a SAF, que terá uma base de cálculo menor nos primeiros cinco anos, e indiretamente a Associação, que terá repasses para fim de pagamento da sua dívida considerando (justamente) as receitas auferidas pela SAF (artigo 10 da Lei).

Posteriormente, após a "consolidação" da SAF  o que a Lei 14.193/2021 considera que ocorrerá a partir do sexto ano , a receita da cessão de direitos desportivos de atletas passa a fazer parte da base de cálculo. Trata-se de valores que são absolutamente relevantes para os clubes de futebol brasileiros, devendo ser incluídos na receita mensal tributável pelo TEF, aplicando-se, em contrapartida, uma alíquota menor, de 4%.

A cessão de direitos desportivos de jogador profissional decorre da transferência, ou seja, do movimento de registro de um atleta de um clube para outro situado no Brasil ou no exterior. Nesse caso, há a compra e venda dos direitos econômicos do atleta, ou seja, o jogador, em decorrência dessa negociação entre clubes e mediante sua anuência, celebrará contrato de trabalho com o novo clube que passa a ser detentor desses direitos.

Muitas vezes, essa transferência não se dá em caráter definitivo, mas apenas temporariamente, a que se costuma dar o nome de "empréstimo" (que pode ser gratuito ou oneroso). Tecnicamente, tem-se, nessa hipótese, a cessão temporária. Ela é usada tanto para dar aos atletas mais oportunidade de jogar, quando ele passa muito tempo sem ser escalado como titular, quanto para reduzir a folha de pagamento do clube que cede temporariamente jogador que tem salário muito alto para outro clube.

Tanto a receita decorrente da cessão de direitos desportivos definitiva, quanto aquela da cessão temporária, deverão compor a base de cálculo do TEF a partir do sexto ano-calendário da constituição da SAF.

A inclusão ou não de determinados montantes dentro desses valores já era objeto de discussão mesmo antes da Lei 14.193/2021. Vale ressaltar que a definição do que compõe a receita relativa à cessão dos direitos desportivos do atleta é relevante para entender justamente o que irá ou não integrar a base de cálculo do TEF.

Desse modo, entendemos que a multa contratual aplicada quando um atleta é transferido de um clube a outro antes do término do prazo contratualmente estabelecido com o clube de origem, também conhecida como taxa de transferência, configura-se como receita. Igualmente a cláusula compensatória quando é paga pelo atleta.

Trata-se de "ingresso bruto de benefícios econômicos durante o curso das atividades ordinárias da entidade que resultam no aumento do seu patrimônio líquido". Além disso, amolda-se perfeitamente no que determina o artigo 32, §§1º e 2º, da Lei 14.193/2021. Por essa razão, tais valores irão compor a base de cálculo do TEF.

Por outro lado, sobre os valores pagos pelo clube de destino para o jogador pela transferência não haverá a incidência do TEF. Esses valores ao serem pagos aos atletas, configuram-se como despesas e não devem ser tributados pelo TEF. Entre eles, destacam-se o direito de imagem, o direito de arena e o "bicho", além das remunerações, usualmente tributadas na pessoa física.

O direito de imagem, uma das espécies de direitos da personalidade, é normalmente transferido pelo atleta para outra pessoa jurídica de que continua sendo um dos titulares para que ela faça a sua exploração econômica. A imagem do atleta é utilizada, então, em atividades e eventos publicitários, envolvendo nome, símbolo, produtos oficiais do clube, jogos de videogame, álbuns de figurinhas, vinhetas, filmes, revistas etc. Os valores repassados a esse título submetem-se à tributação da pessoa jurídica que detém o direito de explorar economicamente a imagem do atleta.

No entanto, a Receita Federal entende tratar-se de direito personalíssimo e que, portanto, não poderia ser explorado por pessoa jurídica [9]. Dessa forma, possuiria natureza remuneratória, devendo ser tributado na pessoa física do atleta.

Por outro lado, o artigo 42-A, da Lei 9.615/1998, incluído pela Lei 14.205/2021, "o direito de arena consiste na prerrogativa exclusiva de negociar, de autorizar ou de proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens do espetáculo desportivo, por qualquer meio ou processo". O direito de arena corresponde aos 5% da receita da exploração de direitos desportivos audiovisuais desses eventos que devem ser repassados aos atletas escalados para a partida, em que se incluem tanto os titulares quanto os reservas, por intermédio dos sindicatos das respectivas categorias. Esses valores não compõem a base de cálculo do TEF, porque não representam receita, ou seja, ingresso bruto de benefício econômico que implique aumento no patrimônio líquido dos clubes.

O chamado "bicho" nada mais é do que os prêmios pagos pelos clubes aos jogadores para recompensar o bom desempenho da equipe. Ele está incluído entre as verbas que compõem o salário do jogador, previstas no artigo 31, §1º, da Lei 9.615/1998. Compondo o salário dos jogadores, será submetida ao regime de tributação da pessoa física. Trata-se, como visto, de outra despesa do clube.

Por fim, essas remunerações se referem à contraprestação devida aos atletas em decorrência do contrato de trabalho por ele firmado com o clube. Tais valores se submeterão ao regime de tributação da pessoa física, conforme anteriormente anotado.

Inobstante as considerações apresentadas por este artigo, convém afirmar que muito ainda há de ser delineado pela Receita, sobretudo as regras relativas à movimentações financeiras entre a SAF e a Associação Desportiva. Ademais, há ainda a preocupação em relação às obrigações acessórias a que a SAF deverá se submeter e que ainda não se encontram bem definidas.

Enquanto não tivermos clareza em relação à caga tributária (como um todo), não será possível, com segurança, concluir se é vantajosa ou não a conversão de um clube em SAF.


[1] Artigos 31 e 32 da Lei da SAF.

[2] Conforme artigo 28, do Decreto-lei 5.844/1943 e desde que observadas as condições postas no artigo 30, da Lei 4.506/1964. Posteriormente, o artigo 82, II, da Lei 9.532/1997, revogou a isenção do IRPJ concedida às entidades desportivas a partir de 01/01/1998. Contudo, o artigo 18, IV, da citada lei, manteve a isenção concedida às entidades desportivas que observassem as condições previstas no artigo 12 ou do artigo 15. Posteriormente, o artigo 13, da Lei 11.345/2006 assegurou a isenção.

[3] Nos termos do artigo 15, da Lei 9.532/1997, e do artigo 13, da Lei 11.345/2006.

[4] Conforme art. 13, da Lei 11.345/2006.

[5] Atualmente, segundo Pedro Guilherme Gonçalves de Souza e Alexandre Pedroso de Almeida, o SPFC — ao lado da maioria dos clubes brasileiros — é organizado na forma de associação civil recreativa sem fins lucrativos. Com isso, usufrui dos seguintes incentivos fiscais: 1) isenção do IRPJ; 2) isenção da CSLL; 3) isenção da Cofins; e 4) recolhimento de PIS/Pasep à alíquota de 1% sobre folha de pagamento. Na SAF, estaria afastado a incidência desse 1% de Contribuição ao PIS incidente sobre folha de pagamento.

[7] O conceito de receita adotado é o constante no Pronunciamento Técnico CPC nº 30.

[8] Disponível em: https://bit.ly/3Les2Uj Acesso em 06/02/2022.

[9] Nesse sentido, citem-se os acórdãos 2201-009-242 (Processo 12448.724966/2015-51, publicado em 01/11/2021), 2301-009-375 (Processo 15586.720629/2014-17, publicado em 27/09/2021), 2301-007.138 (Processo 15540.720038/2014-76, publicado em 02/04/2020), 2301-007.047 (Processo 10872.720112/2015-60, publicado em 05/03/2020), 2401-007.199 (Processo 15983.720430/2012-44, publicado em 27/01/2020), 2401-005.938 (Processo 15586.720495/2016-04, publicado em 20/05/2019), 9202-004.548 (Processo 11516.000152/2004-51, publicado em 18/09/2017), 2202-004.087 (Processo 10980.728381/2012-02, publicado em 12/09/2017), 2202-004.008 (Processo 15540.720261/2014-13, publicado em 03/08/2017).

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