Opinião

Ortotanásia, código de ética médica e atipicidade do crime de homicídio privilegiado

Autor

  • Marcos Vinicius da Silva

    é advogado-sócio do escritório Marcos Vinicius da Silva Advocacia mentorado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e especializado em Direito Penal e Direito eleitora/Parlamentar.

5 de julho de 2022, 9h07

Antes de entrarmos na seara do Direito quanto a prática da ortotanásia, é importante saber o que é e seus fundamentos médicos.

A ortotanásia é uma ferramenta usada pela medicina em casos de pacientes com doenças terminais. Trata-se de medida médica que não combate à doença prolongando a vida do paciente com tratamentos dolorosos que implicariam em um sofrimento maior a pessoa [1].

Na ortotanásia os médicos usam medicamentos e tratamentos que apenas combata as dores e sofrimento do paciente desde que autorizado por ele ou pela família em casos de impossibilidade de expressão [2].

Sobre esse tema, descreve a Organização Mundial da Saúde:

"O cuidado ativo e total dos pacientes cuja enfermidade não responde mais aos tratamentos curativos. Controle da dor e de outros sintomas, o cuidado dos problemas de ordem psicológica, social e espiritual são os mais importantes. O objetivo dos cuidados paliativos é atingir a melhor qualidade de vida possível para os pacientes e suas famílias" [3].

Isso quer dizer que a ortotanásia não tem como finalidade prolongar a vida do paciente terminal, mas, sim, a morte em seu momento natural utilizando de tratamento paliativo ocasionando durante o tempo de vida do paciente bem-estar.

Sobre o tema em 9/11/2006, o Conselho Federal de Medicina, por meio da resolução de número 1.805/06, decidiu autorizar os médicos a utilizarem a ortotanásia em pacientes terminais, vejamos:

"Artigo 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
§1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.
§2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.
§3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.
Artigo 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.
Artigo 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário" [4].

Diante da publicação da Resolução 1.805/06, o Ministério Público Federal ajuizou Ação Civil Pública com pedido liminar de número 2007.34.00.014809-3, pleiteando a nulidade da resolução e como pedido alternativo a descrição dos métodos a serem usados pelos médicos. O pedido liminar foi aceito pelo juiz Roberto Luis Luchi Demo, da 14ª Vara do TRF-1 [5].

Pouco depois, o magistrado revogou a liminar e deu como improcedente os pedidos do MPF. Na sentença, o juiz afirma que:

"À convicção de que a Resolução CFM nº 1.805/2006, que regulamenta a possibilidade de o médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, realmente não ofende o ordenamento jurídico posto" [6].

Em 2010, o novo Código de Ética Médica reconheceu que a ortotanásia não era conduta antiética e em 2012 uma nova resolução de número 1.995/12 definiu as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.

O MP mais uma vez ajuizou ACP de número 1039-86.2013.4.01.3500, que restou improcedente.  

Sendo assim, o próprio judiciário definiu que as resoluções do conselho Federal de Medicina são validas dentro do ordenamento jurídico.

No âmbito do direito penal, a ortotanásia também ganhou discussão importante uma delas é se o médico que pratica a ortotanásia incorre em crime de homicídio privilegiado descrito no parágrafo 1º do artigo 121 do Código Penal [7],

"Artigo 121. Matar alguém: Pena — reclusão, de seis a 20 anos.
§1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço".

Para responder à questão, buscamos os ensinamentos da escola finalista de Hans Welzel, teoria tripartite adotada pelo nosso Código Penal e teoria da tipicidade conglobante de Eugenio Raúl Zaffaroni.

De acordo com escola finalista tripartite, adianto, o fato é atípico, pois o médico diante da situação de doença terminal do paciente, utiliza de procedimentos terapêuticos para minimizar seu sofrimento.

Logo, não existe intenção do médico em provocar a morte do paciente, mas, sim, evitar que este sofra com métodos extremamente dolorosos.

Tal posto que, para teoria finalista tripartite, só existe crime se o fato for típico, antijurídico (ilícito) e culpável [8].

 Logo não há o que se falar em homicídio privilegiado pela falta do elemento subjetivo do crime, isso porque, estaríamos diante da ausência do animus necandi do médico tornando sua conduta atípica [9].

Quando aplicamos a teoria da tipicidade conglobante, em estrita síntese, o fato só é típico se não for antinormativo e não for excluído pelos princípios informadores do Direito Penal [10]

Para o professor Zaffaroni o ordenamento jurídico deve ser interpretado como um todo "As normas jurídicas não 'vivem' isoladas, mas num entrelaçamento em que umas limitam as outras e não podem ignorar-se mutuamente".

Logo, não faria sentido enquadrar penalmente a ortotanásia, já que a prática está amparada e autorizada pelo Código de Ética dos profissionais de medicina e teve sua legalidade confirmada pela improcedência das ACPs.

O fato do Código de Ética Médica autorizar a prática, conforme já citamos, levaria a atipicidade conglobante do ato praticado pelo médico.


[6] ibidem

[7] Artigo 121. Matar alguem:

§1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 6. ed. Editora RT: São Paulo,2010.

[9] Manual de direito penal, volume1: parte geral, artigos 1º a 120 dp CP / Julio Fabbrini Mirabete, Renato N. Fabbrini.  24 ed. Ver. E atual. Até 31 de dezembro de 2006. – |São Paulo: Atlas, 2007. P.81.

[10] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p.436.fran

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  • é advogado-sócio do escritório Marcos Vinicius da Silva Advocacia, mentorado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e especializado em Direito Penal e Direito eleitora/Parlamentar.

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