Opinião

Cobertura dos planos e rol da ANS: o que permanece sem resposta (parte 3)

Autor

  • Rafaela Guerra Monte

    é advogada sócia da Fraemam e Guerra Advocacia mestra e doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE).

24 de junho de 2022, 6h32

Continua parte 2.

"3 – é possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra Rol;"
Esse parâmetro destoa da realidade na medida em que se verifica que a maioria dos usuários dos planos de saúde nem sequer possui acesso aos contratos. Assina-se uma proposta de adesão que não indica nem as faixas de reajuste das mensalidades e o contrato normalmente só é enviado mediante solicitação administrativa, ou até mesmo judicial. Não há diálogo entre as partes suscetível a negociações de aditivos como faz crer o voto vencedor.

Uma das premissas foi de que, possibilitando essa oferta, proporcionaria a sustentabilidade necessária ao sistema e tornaria os preços mais acessíveis. Todavia, a alegação de prejuízos e previsões de preços mais acessíveis desacompanhadas de dados consiste em mero consequencialismo festivo. Do mesmo modo que as dificuldades financeiras enfrentadas pelas operadoras não são corroboradas com as notícias de lucros bilionários, não há qualquer garantia de que o valor será reduzido em comparação ao ora praticado, correndo-se o risco de cair no mesmo conto que ocorreu com a supressão do despacho “gratuito” de bagagem, quando se anunciou que os preços das passagens aéreas iriam cair.

Uma possível solução, se de fato necessária, indicada pelo desembargador do TJ-RJ Cesar Cury [1] seria a formação de um fundo garantidor, a exemplo do existente no setor bancário, composto por recursos públicos e privados, para suprir as demandas por tratamentos extra rol, quando necessários, com menor burocracia.

No que tange à atribuição ao usuário de observância das modalidades, além da incumbência impossível de avaliar a adequação de cobertura do plano de saúde quando se acredita estar saudável, o usuário teria que analisar os 3 mil procedimentos previstos no rol e, relembrando dos exemplos mencionados na análise do item 1, também teria que conferir todas as notas técnicas e pareceres da ANS.

Levanta-se o seguinte questionamento: se forem comercializadas modalidades diferentes de cobertura, haverá um percentual máximo de reajuste a ser autorizado pela ANS de acordo com o "pacote" contratado?

Atualmente o que ocorre na prática é que a ANS autoriza o reajuste máximo aos planos de saúde individuais e familiares e a operadora do plano aplica a todos indistintamente o percentual máximo, sem enviar a justificativa pelo acréscimo ser fixado no teto e apresenta apenas um folheto com a data de início da cobrança e informação de que foi autorizado pela ANS.

Outra premissa equivocada é a de que o paciente pode eleger a técnica que melhor lhe convenha. Em caso de saúde não se pode falar em liberdade de escolha. Além disso, transferiu-se a incerteza, incompatível com os interesses das operadoras, para o consumidor. O ônus do risco na contratação foi imputado exclusivamente aos consumidores, quando se deveria manter a alocação de riscos no polo das operadoras de planos de saúde, pois possuem maior capacidade para gerenciá-lo.

Mais uma crítica inerente à visualização do julgado com o olhar para a realidade se refere à possibilidade de as operadoras não ofertarem opções de coberturas que impliquem tratamentos de custos mais elevados. Nada obsta que as operadoras as entendam como menos rentáveis e não ofertem a contratação, da mesma maneira que já procedem com relação aos planos individuais. Para conseguir que essas empresas sejam obrigadas a ofertar planos individuais novamente, está em tramitação o Projeto de Lei do Senado n° 153, de 2017, que aguarda designação de relator desde 23/09/2021. Por outra via, as operadoras, visando vantagens imediatas, não querem aguardar e se submeter ao crivo do Legislativo, transferindo ao STJ o seu pleito.

"4 – não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do Rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao Rol da Saúde Suplementar;"
O primeiro questionamento concerne à retroatividade ou não. Tendo em vista que advieram mudanças no procedimento de aprovação da ANS, subentende-se que serão consideradas as reprovações ocorridas a partir da elaboração da próxima atualização do rol. 

É digno de nota assinalar a necessidade de efetiva participação social nas etapas de elaboração e a exigência de maior esforço argumentativo da ANS, principalmente na fase de justificativa do indeferimento, estabelecimento de critérios transparentes de tomada de decisão, de modo que a negativa de inclusão não será legítima se somente indicar que “não há, no momento, evidências robustas que demonstrem impacto em desfechos clínicos relevantes e corroborem a incorporação da tecnologia no Rol”.

O parâmetro fixado na decisão do STJ também não indica se haveria distinção quanto ao motivo do indeferimento, o qual se for entendido sem maiores balizas, poderia tanto intimidar contribuições fidedignas, adiando-as para maior preparação, como ser visto como atrativo para as operadoras, que intencionalmente poderiam apresentar proposta de atualização do rol com o intuito que ela seja indeferida. Nas duas hipóteses há prejuízo ao usuário.

A negativa de incorporação ensejará a exclusão da cobertura, o que, aliás, representará o movimento de questionar judicialmente o não acatamento da contribuição pela ANS. A problemática se mostra relevante quando se verifica a quantidade de contribuições em comparação ao número de propostas acatadas.

Outro ponto de estresse para a agência reguladora será o prazo para conclusão do processo administrativo, já que pode haver pressão das operadoras para que o prazo seja estritamente observado, sob pena de haver a inclusão automática do medicamento, produto ou procedimento de saúde no rol até que haja decisão da ANS, vide art. 10,§9º, da Lei nº 9.656/98, incluído pela Lei nº 14.307 de 2022[2].

haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências;
O profissional de saúde e os centros de estudos precisarão se mobilizar e delinear um modelo para atendimento de tal exigência.

haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e NatJus) e estrangeiros; e
Esse é outro ponto frágil da decisão pois os Nat-Jus[3] não possuem uma uniformização, havendo notas técnicas contraditórias entre si, o que gera insegurança.

seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.
A cumulação desses quatro pressupostos distancia ainda mais o usuário da obtenção do tratamento e demonstra que o Judiciário tomou para si a obrigação de decidir caso a caso sobre cada procedimento não previsto no rol da ANS, num ciclo vicioso de judicialização, quando não suporta mais tal incumbência.

Utilizo-me das palavras da professora da UFRJ, Ligia Bahia: "Ir para a justiça é o pior dos mundos, quem vai para a justiça já perdeu alguma coisa, não vai conseguir ser atendido naquele momento" (…)e "a saúde precisa de atendimento imediato muitas vezes"[4].

Não se apresenta como mero pormenor considerar o impacto da decisão para o desenvolvimento do mercado de equipamentos hospitalares e inovações. A redução de demanda por procedimentos que não estejam previstos no rol da ANS e a insegurança de se investir em uma tecnologia que não venha a ser incluída, sem dúvida, desestimulará o investimento. De certo, não queremos ver o setor desestruturado como foi tragicamente experimentado no período de agravamento da pandemia de Covid-19.

Por fim, ainda cabe observar que na conclusão da decisão, o Ministro Salomão declarou o estado de ilegalidade pelo procedimento "estimulação magnética transcraniana", de eficácia comprovada pelo CFM, não estar previsto no rol da ANS. Em outras palavras, foi repreendida a conduta da autarquia, mas não a da operadora, por negar cobertura ao tratamento. É possível inferir, do raciocínio utilizado, que, no pedido inicial das futuras ações judiciais, deve-se incluir o reconhecimento da ilegalidade por ausência de previsão no rol, de modo que a falta de inclusão no rol seria suficiente para ingressar com a ação judicial, não sendo mais necessário obter negativa formal do plano, pois ela seria presumida.

Conclusão
Inseridos no cenário em que operadoras de planos de saúde, mesmo diante de previsão legal, negam cobertura para atendimento de urgência a pacientes com contratos adimplidos, com meses de vigência, exigindo vultosa quantia para realizar a internação no hospital da sua rede própria, permitir que elas utilizem a decisão do STJ como subterfúgio, autorizará o cometimento de atrocidades, sem perspectiva de incentivo à melhora da qualidade da prestação dos serviços.

Não se pode ignorar que houve um impressionante esforço institucional no sentido de alterar no curso dos processos judiciais as regras do jogo, eliminando-se o principal empecilho indicado pelo Ministro Relator nas discussões sobre a taxatividade do rol: o longo prazo para atualização do rol.

Indubitavelmente, o STJ se baseou em pilares frágeis e subestimou a magnitude dos impactos da decisão para atuação das empresas no mercado. Se aplicada, a decisão exigiria modificações nas condutas das operadoras, dos usuários, da ANS, médicos e estabelecimentos de saúde credenciados ou não, pesquisadores, Conselhos Profissionais, SUS, mercado de equipamentos médico-hospitalares e investimento em pesquisa e tecnologia na área da saúde.

Entende-se que essa decisão não é suficiente para modificar o entendimento de duas décadas, baseado na Lei nº 9.656/98, corroborada com o Código de Ética Médica, Código do Consumidor, Estatuto da Pessoa com Deficiência, Estatuto do Idoso, e interpretação chancelada pelo Supremo Tribunal Federal ao analisar a constitucionalidade do mesmo diploma legal.

A presente análise está longe de abarcar toda a complexidade, argumentos levantados pelas partes e julgadores e os reflexos que circundam a decisão sobre a taxatividade do rol. Apresentou-se uma amostra dos riscos criados. Outrossim, destacou-se que se a justificativa para a taxatividade do rol for a real sustentabilidade do sistema, existem outras medidas menos trágicas aos usuários.

Diante disso, ainda que aplicada a tese de taxatividade do rol, considerando-se a interpretação mais benéfica, boa-fé e segurança jurídica, ela se restringiria aos novos contratos e aditivos firmados com previsão expressa, juntamente com a comprovação de que o consumidor foi cientificado quanto a isso.

A dita segurança jurídica propagada em jornais e manifestações patrocinadas pelas operadoras de planos de saúde cai por terra numa simples leitura das exceções contidas na decisão. Caso levada adiante, apenas se legitimará a negativa prévia de acesso à saúde, retirando das operadoras de planos de saúde o ônus de fiscalizar seus prestadores, apurar fraudes, e ser responsabilizada pelas negativas.

Nessa toada, recairá sobre o consumidor o pagamento pelo imprevisível, a necessidade de fiscalização com maior rigor dos atos da ANS, a submissão a procedimentos de saúde que não sejam os melhores para o seu caso e a total incerteza quanto ao acolhimento de cobertura na esfera judicial. Deste modo, em situação de desespero, de risco à vida e saúde, a alternativa será se endividar para custear o tratamento com a possibilidade remota de reembolso, ou ser atendido pelo SUS, mesmo tendo arcado a vida inteira com o plano de saúde a duras penas. A ANS, por sua vez, passará a ser o foco da questão, precisando aprimorar sua tomada de decisão e sua estrutura. Ao mesmo passo, será transferido exclusivamente para o Judiciário o encargo de decidir caso a caso se o plano deverá realizar a cobertura, em demandas que se estendem ad eternum.


[1] Agência O Globo. Cobertura dos planos de saúde: Rol da ANS pode parar no STF; entenda. Disponível em: https://economia.ig.com.br/2022-06-10/rol-ans-recorrer-stf.html. Acesso em 10 jun. 2022.

[2] Art. 10(…):

§ 9º Finalizado o prazo previsto no § 7º deste artigo sem manifestação conclusiva da ANS no processo administrativo, será realizada a inclusão automática do medicamento, do produto de interesse para a saúde ou do procedimento no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar até que haja decisão da ANS, garantida a continuidade da assistência iniciada mesmo se a decisão for desfavorável à inclusão.

[3] Os Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário, previstos inicialmente na Resolução CNJ 238/2016, foram criados para conferir apoio técnico aos tribunais, auxiliando o magistrado em melhor análise técnica a respeito do objeto da ação quando ligada a tratamentos  médicos. Segundo a Resolução 388/2021 do CNJ, são “constituídos de profissionais da saúde, responsáveis por elaborar notas técnicas baseadas em evidências cientificas de eficácia, acurácia, efetividade e segurança” (art. 2º, II), cujos pareceres devem ser inseridos no Sistema e-NatJus, nos termos do Provimento CNJ 84/2019.

[4] Fala da professora Ligia Bahia, professora da UFRJ no podcast Café da Manhã da Folha, episódio do dia 10 de junho de 2022, disponível no Spotify.

Autores

  • é advogada, sócia da Fraemam e Guerra Advocacia, mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE) e recém-aprovada na seleção do doutorado do mesmo programa.

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