Público & Pragmático

Apoio da União às prestações irregulares de saneamento: estratégia ou leniência?

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3 de julho de 2022, 8h01

As alterações promovidas pela Lei nº 14.026/2020 no marco regulatório do saneamento básico visaram, a partir da identificação de deficiências na aplicação da Lei nº 11.445/2007, pavimentar um caminho para a universalização no acesso a tais serviços públicos. Dentre as diversas medidas adotadas, frisamos a inclusão de metas de universalização nos contratos vigentes, o que seria feito até 31 de março de 2022.

Reconhecendo que muitos prestadores, notadamente as Companhias Estaduais de Saneamento Básico (Cesbs), detentoras de contratos de programas válidos, não conseguirão atender a tais metas, em 1º de abril de 2022 o governo federal editou o Decreto nº 11.030/2022, que possibilitou a transferência de recursos federais para que os municípios (titulares dos serviços) façam investimentos em obras e serviços (investimentos de capital), de forma a viabilizar a transição da prestação irregular para regular.

Nada obstante tal medida de transição pareça adequada, e até mesmo necessária, sua falta de regulamentação sugere que tais recursos federais não serão aplicados corretamente, seja pela baixa capacidade institucional dos municípios em realizar esses investimentos de capital, seja pela forte presença das Cesbs nestas localidades, que poderão capturar os recursos recebidos pelos municípios.

Neste contexto, o presente artigo pretende analisar brevemente a inovação trazida pelo Decreto nº 11.030/2022 à luz dos objetivos buscados pela Lei nº 14.026/2020.

Agenda 2030 e a situação brasileira
Em 2015, o Brasil aderiu à "Agenda 2030" da Organização das Nações Unidas, que traz 17 objetivos e 169 metas de ação global voltadas às dimensões ambiental, econômica e social do desenvolvimento sustentável. Seis metas tratam especificamente sobre a garantia de disponibilidade e manejo sustentável da água e saneamento, com destaque para: (1) o acesso universal e equitativo a água potável e (2) o acesso a saneamento e higiene adequados e equitativos para todos até 2030.

Dados divulgados pelo Instituto Trata Brasil em 2018 revelavam que 83,6% da população do país tinha acesso à água potável, enquanto 53,2% da população era atendida com serviço de coleta de esgoto (e destes, apenas 46,3% tinham o esgoto coletado e tratado) [1].

Esses números revelam o quão longe o país está de atingir as metas universalização com as quais se comprometeu, o que representa o mote principal dos debates no Congresso Nacional que culminaram na reforma da Lei Nacional de Saneamento Básico.

As alterações na LNSB e as estratégias para o atingimento das metas: a utilização do poder de gasto da União
Buscando corrigir falhas identificadas na aplicação da LNSB, em 2020 foi promulgada a Lei nº 14.026/2020, que alterou substancialmente a LNSB.

Com caráter notadamente pragmático, a Lei nº 14.026/2020: (1) apostou na competição como forma de promover a melhoria na prestação dos serviços públicos, vedando, para tanto, a contratação direta das CESBs (artigo 10); (2) estabeleceu metas agressivas de universalização, com o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033 (artigo 11-B); (3) exigiu a compatibilização de todos os contratos existentes, mesmo os regulares, às metas, sob pena de o titular buscar alternativas ao prestador atual (artigo 11-B, § 1º); e (4) conferiu à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) competência para edição de "normas de referência para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras" (artigo 25-A).

Para que o atingimento das metas não ficasse apenas no plano das ideias, ou, ainda, que ficasse restrita a certas localidades, o governo federal editou o Decreto nº 10.710/2021, estabelecendo "metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário que detenham contratos regulares em vigor" (artigo 1º) [2], e prevendo que, para fins da conclusão das alterações nos contratos, "[o] prestador deverá apresentar requerimento de comprovação de capacidade econômico-financeira junto a cada entidade reguladora responsável pela fiscalização de seus contratos até 31/12/2021 (artigo 10) [3][4], concluindo-se as alterações até 31/03/2022".

Paralelamente a essas disposições, o governo federal ainda editou o Decreto nº 10.588/2020, pelo qual se comprometeu tanto a prestar apoio técnico e financeiro para a adaptação dos serviços às novas regras da LNSB, como a alocar "recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da União" (doravante "recursos federais") em determinadas situações previstas no artigo 50 da LNSB e no decreto.

É relevante dizer que as localidades cujos prestadores não demonstrassem capacidade econômico-financeira para atingir as metas não teriam mais acesso aos recursos federais. Como ressaltam RIBEIRO e SENNA, a falta de capacidade econômico-financeira e a incapacidade de atingimento das metas torna o contrato irregular, impossibilitando o titular dos serviços públicos de pleitear "recursos orçamentários federais (com exceção das emendas parlamentares, cujo acesso não pode ser condicionado) ou […] recursos de entidades de crédito federais, especialmente financiamentos com recursos do FGTS e do FAT" [5]. É isto, inclusive, que dispõe o artigo 4-A, § 3º, IV, do Decreto nº 10.588/2020 ao estabelecer como irregulares, portanto não passíveis de receberem recursos federais, os "contratos de programa que não tenham internalizado, até o dia 31 de março de 2022, as metas de expansão e atendimento de que trata o art. 11-B da Lei nº 11.445, de 2007".

O apoio técnico-financeiro da União para os titulares de serviços públicos prestados com base em contratos de programa irregulares: estratégia ou leniência?
O dia 31/3/2022, data-limite para a inclusão das metas previstas no artigo 11-B nos contratos regulares, foi vista com muita expectativa, em especial no que diz respeito às Cesbs — cuja capacidade econômico-financeira era duvidável. Em 20/4/2022, a ANA divulgou os primeiros resultados dos reguladores infranacionais, responsáveis pela análise da capacidade dos prestadores. Tais reguladoras aceitaram a comprovação da capacidade econômico-financeira de contratos dos prestadores de serviços em 2.766 municípios de 18 estados para universalização dos serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto até 2033. Tais dados, importa dizer, não estão desagregados conforme a natureza do prestador (se CESBs ou privados) e área atendida, não sendo possível afirmar, neste momento, qual a população atendida por prestador com capacidade econômico-financeira de atender as metas do artigo 11-B da LNSB.

É bem possível que um número expressivo de prestadores não tenha demonstrado sua capacidade econômico-financeira para o atingimento das metas. Uma evidência disto é que já em 1º/4/2022 o governo federal editou o retromencionado Decreto nº 11.030, que alterou o já citado Decreto nº 10.588/2020, para prever apoio técnico-financeiro aos titulares cujos prestadores não tenham demonstrado capacidade econômico-financeira exigida em lei e regulamento.

Segundo o artigo 3º do Decreto nº 10.588/2020, a União poderá adotar diversas medidas para apoiar técnica e financeiramente os titulares dos serviços públicos, por exemplo, na "elaboração ou atualização dos planos municipais ou regionais de saneamento básico" (inciso IV) ou na "modelagem da prestação dos serviços em cada mecanismo de prestação regionalizada" (inciso V). Dentre as formas de apoio técnico e financeiro conta ainda uma forma residual de "outras medidas acessórias necessárias, com vistas à universalização do acesso ao saneamento básico".

Primeiramente, são quatro as hipóteses que poderão se valer deste apoio técnico e financeiro. Estas hipóteses se voltam àqueles titulares que mantém contratos de programa: (1) que não tenham sido objeto de requerimento de comprovação de capacidade econômico-financeira, nos termos do disposto no Decreto nº 10.710/2021; (2) cujo prestador de serviço responsável não tenha obtido decisão favorável no processo de comprovação de capacidade econômico-financeira, nos termos do disposto no Decreto nº 10.710/2021; (3) cujo prestador de serviço responsável tenha obtido decisão favorável no processo de comprovação de capacidade econômico-financeira, mas cuja decisão tenha perdido seus efeitos, nos termos do disposto no artigo 18 do Decreto nº 10.710/2021; e (4) que não tenham internalizado, até o dia 31/3/2022, as metas de expansão e atendimento de que trata o artigo 11-B da Lei nº 11.445/2007.

Quanto às obrigações que devem ser assumidas pelos titulares, sob pena de ter que devolvê-los à União ou serem submetidos à liquidação antecipada, constam: (1) a adesão a mecanismo de prestação regionalizada e comprovar a contratação de estudo de modelagem para concessão regionalizada até 30/11/2022; (2) a publicação de edital de licitação para concessão dos serviços que substituirá o contrato irregular até 31/3/2024; e (3) a substituição dos contratos de programa vigentes por contratos de concessão até o dia 31/3/2025.

A nosso ver, o objetivo é bastante claro: a universalização dos serviços públicos em determinadas localidades não pode ser prejudicada por fatos oponíveis às Cesbs. A forma adotada para este apoio foi a oferta de recursos federais para investimentos em capital, isto é, para que os titulares realizem "gastos para a produção ou geração de novos bens ou serviços que integrarão o patrimônio público, ou seja, que contribuem diretamente para a formação ou aquisição de um bem de capital" [6]. Isto é: cria-se condições para que o titular valorize os serviços e viabilize a substituição do prestador sem capacidade de promover a universalização por outro que atenda às exigências previstas na Lei nº 14.026/2020.

Nada obstante o fundamento adotado pelo governo federal seja pragmático, na medida em que avalia que a consequência de vedar a transferência de recursos a esses titulares representará a degradação dos serviços públicos, sua aplicabilidade poderá estar sujeita a uma série de percalços, que poderão piorar a situação dos titulares.

Em primeiro lugar, mencione-se que o Decreto nº 11.030/2022 não especificou quais os investimentos de capital poderão ser realizados, o que poderá prejudicar a avaliação de sua pertinência.

Em segundo lugar, não é possível se ter clareza sobre quais titulares poderão ser beneficiados com tais recursos destinados ao apoio técnico e financeiro. Note-se que a alocação dos recursos federais é condicionada a uma série de regras como a verificação da "operação adequada e à manutenção dos empreendimentos anteriormente financiados com os recursos", tendo estes empreendimentos sido "concluídos nos últimos cinco anos no município a ser beneficiado, para o componente do saneamento básico objeto da alocação de recursos pretendida" (artigo 4º, II, c/c § 4-A, do Decreto nº 10.588/2020). Tais regras, no entanto, não se aplicam de imediato ao apoio técnico e financeiro, de maneira que poderão ser repassados recursos a municípios que já tenha utilizado recursos federais de maneira inadequada.

Neste ponto, vale citar o "Guia Prático de Financiamento Baseado em Resultados no Setor de Água e Saneamento" [7], recentemente divulgado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), alguns entes públicos costumam ser carentes não apenas de recursos, mas de capacidades e incentivos, sendo incapazes de garantir que a população receba serviços adequados a preços acessíveis. Assim, algumas das abordagens tradicionais de financiamento (por exemplo, assistência técnica) podem não ser efetivas, na medida em que não abordam as barreiras subjacentes aos diferentes problemas por eles enfrentados.

Por fim, não se pode deixar de destacar a baixa capacidade institucional de alguns dos titulares que podem ser beneficiários dos recursos tratados no Decreto nº 11.030/2022 e o risco de captura destes recursos pelas próprias CESBs, lenientes ou incompetentes.

No presente caso, a estratégia adotada pelo governo federal de repasse de recursos federais aos titulares dos serviços públicos poderá esbarrar em suas incapacidades institucionais em conduzirem esta fase de transição de contratos de programas irregulares para contratos regulares, aderentes às metas de universalização previstas no artigo 11-B da LNSB. Os efeitos para os titulares poderão ser bastante indesejados, com (1) a incapacidade de proceder com as fases necessárias à aplicação dos recursos; (2) aplicação inadequada dos recursos; ou (3) transferência dos recursos para que as Cesbs, reconhecidamente lenientes ou incompetentes, para que executem as obras e serviços. Em todos os cenários, os titulares dos serviços públicos: (1) não conseguirão regularizar a prestação dos serviços sob sua titularidade, com prejuízo às metas de universalização; e (2) se tornarão devedores da União, na medida que serão obrigados a devolver a totalidade dos recursos recebido ou se submeterem à liquidação antecipada de financiamento, conforme previsto no artigo 3º, § 11, do Decreto nº 10.588/2020.

 


[2] Os titulares que dispõem de estruturas próprias de prestação dos serviços públicos de abastecimento de água potável e de esgotamento sanitário, seja por meio da Administração direta, seja por autarquias, não estavam legalmente obrigados a comprovarem suas capacidades econômico-financeiras, conforme artigo 1º, § 3º, do Decreto nº 10.710/2021.

[3] De acordo com a análise promovida pelo FGV Ceri, as Cesbs com contratos regular teriam dificuldades em comprovarem suas capacidades econômico-financeiras, sendo que o não atendimento de todos os indicadores econômico-financeiro "evidencia[ria] problemas de ordem regulatória e governança, indicando que provavelmente enfrentarão problemas durante o processo de adequação (inclusão de metas de universalização) nos contratos vigentes". Disponível em https://ceri.fgv.br/sites/default/files/publicacoes/2021-06/artigo_capacidade_ecfin-_-24.06.2021_revisado.pdf (Último acesso em 30/4/2022).

[4] Além deste decreto, a ANA editou a Norma de Referência nº 2/2021, que dispõe sobre "a padronização dos aditivos aos contratos de programa e de concessão, […], para a incorporação das metas previstas no art. 11-B". Nas palavras de JUSTINO e CARVALHO: "Tais preceitos aplicam-se aos contratos firmados entre o titular e o prestador do serviço à luz da vigência da Lei nº 11.107/2005, bem como às concessões, convênios e demais instrumentos celebrados anteriormente à vigência da Lei nº 11.107/2005, além das concessões firmadas mediante licitação sem metas universais previamente estabelecidas e, também, das concessões firmadas mediante licitação que contenham metas que não atinjam o patamar estabelecido pelo Novo Marco Legal — sendo que nesses últimos dois casos fica facultado o estabelecimento de aditivos para inclusão das metas sobreditas (artigo 11-B do novo marco)". Disponível: https://www.conjur.com.br/2022-jan-30/publico-pragmatico-competicao-entre-estatais-empresas-privadas-marco-saneamento (Último acesso em 29/4/2022).

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