Opinião

Breve passeio pelos 80 anos do CPP (parte 2)

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1 de julho de 2022, 15h03

O panorama traçado na parte primeira [1] dessa incursão sobre prisão preventiva passeou superficial e basicamente pelas alterações promovidas na órbita dos dispositivos legais que a fundamentam  artigos 311 a 313, do CPP  ao longo de oito décadas e desde o seu nascedouro, e por alguns comentários nem tão rasos mas igualmente breves em torno da realidade esculpida a partir das contemporâneas mudanças legislativas lá abordadas, como é o caso da Lei 12.403/2011, que expandiu as possibilidades de não encarceramento diante das alternativas de aplicação de medidas cautelares diversas da prisão então trazidas pelo rol de possibilidades do artigo 319 e acrescido do artigo 320, todos do CPP.

Entretanto e a partir da vigência do mencionado diploma legal, tem-se mostrado frustrada a expectativa de decréscimo do encarceramento pela aplicação daquela espécie de prisão cautelar — estimada como ultima ratio em comparando-se àqueles novos instrumentos que, diversos da prisão, em teoria e por equivalência estariam aptos a proteger a investigação policial ou o processo penal , cuja não confirmação insinua ter desaguado no efetivo incremento da quantidade de presos provisórios, como se extrai do histórico de presos do Departamento Penitenciário Nacional [2].

E vindo muito a calhar, o recente e enriquecedor artigo [3] da professora Maíra Fernandes se ocupou de retratar, dentre outros aspectos, os impactos representados pelo estrangulamento do sistema carcerário e a chegada para além do patamar de 900 mil presos, o déficit de mais de 200 mil vagas, a triplicação da população encarcerada no período de vinte anos (2000-2019) e as projeções nefastas sobre o recrudescimento do medievalismo presente na estrutura prisional chamado eufemisticamente de estado de coisas inconstitucional. Aliás e como bem enfatiza o professor Aury Lopes Jr:

"É, no mínimo, um grande paradoxo que o STF reconheça o 'estado de coisas inconstitucional' (ADPF 347 MC/DF, relator ministro Marco Aurélio, julgado em 9/5/2015, Info 798) do sistema carcerário brasileiro e admita  considerando o gravíssimo impacto carcerário  a execução antecipada da pena" [4].

Não são poucos os que censuram uma visão por vezes rotulada como romanceada que se ocupa da necessidade de serem respeitados direitos do preso; os mesmos que se quedam a banalizar a barbárie cometida pelo mesmo Estado que prende — muito e mal, como há muito dito e reproduzido aos quatro ventos — e, na mesma toada em que rejeita peremptoriamente a prisão perpétua como solução, quanto mais a pena de morte, lança mão da prisão preventiva como punição para além do próprio aprisionamento com a exposição autorizada de uma modalidade de castigo ou vingança antecipada operada com crueldade e desdém em face a alternativas distintas da segregação extrema, convalidando assim a ideia do cárcere como mero depósito (transitório ou não) de gente miserável e quase sempre considerada inapta à recuperação.

Forma e conteúdo de parte de muitas das decisões que decretam a prisão preventiva  sobretudo aquelas que precarizam e potencializam o tal estado de coisas inconstitucional  podem mesmo, e por exceção, aproximar-se de um juízo de valor que costuma mais se afeiçoar ao modelo que habita o íntimo do leigo, o que, por consequência óbvia, obsta se opere a correta jurisdição pelo afastamento da aplicação da boa técnica jurídica, quando não raro se confundem julgador e acusador.

Não à toa, amontoam-se os exemplos de decretação da preventiva a crimes culposos ou a conversões de prisão em flagrante em preventiva decretadas de ofício, inclusive quando ausente a manifestação ou mesmo ao contrário da própria opinião do Ministério Público que tenha pugnado pela aplicação de medidas cautelares pessoais diversas da prisão, ainda que a lei 13.964/2019 tenha fulminado tal possibilidade de atuação de ofício do magistrado.

A propósito, é o mesmo diploma legal que reforçou as disposições trazidas antes pela lei 12.403/2011  que estabeleceu a redação do artigo 310, II, CPP, e que cobra preliminarmente à decretação da preventiva a verificação da adequação e suficiência das medidas cautelares diversas da prisão , ao exigir motivação e fundamentação para as hipóteses de decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva, conforme conteúdo do artigo 315, CPP.

Parecem flertar com o incontroverso as decisões proferidas ao avesso da lei e que soam como justificativa esquisita de mais outra espécie de exceção, oferecem albergue à construção muito enviesada de um poder geral de cautela imposto a fórceps ao processo criminal, cuja aplicação, ora cumpre ressaltar, é veementemente refutada e com brilho destacada na decisão proferida no HC 186.421-SC pelo então ministro Celso de Mello [5], que assim consolidou em seu voto como relator: "Nem se invoque, ainda, o argumento de que a conversão, de ofício, da prisão em flagrante em preventiva justificar-se-ia em face do poder geral de cautela do magistrado penal". E arrematou: "… inexiste, em nosso sistema jurídico, em matéria processual penal, o poder geral de cautela dos juízes, notadamente em tema de privação e/ou restrição da liberdade das pessoas, vedada, em consequência, em face dos postulados constitucionais da atipicidade processual e da legalidade estrita, a adoção, em detrimento do investigado, acusado ou do réu, de provimentos cautelares inominadas ou atípicos". Este trecho mereceu destaque do professor Aury Lopes Jr. em sua obra [6].

As alterações legislativas mais recentes e que, por pretensão, tenderiam a  consagrar um processo penal  e nele especificamente inserida a prisão preventiva  de perfil democrático e norteado por adequação, necessidade e razoabilidade, como já dito na primeira parte, deveriam exibir uma efetividade fruto de comprometimento mais afinado com o formato proposto de proteção da investigação policial ou do processo penal em razão, precipuamente, do perigo proporcionado pelo estado de liberdade do imputado (periculum libertatis); contudo, a experiência que se mostra capenga e assim desnudada em números, como aqui inicialmente referenciado, revela-se débil, jogado por terra qualquer prognóstico mais alvissareiro quando observado aparente uso trivial da garantia da ordem pública como circunstância a justificar a decretação daquela prisão cautelar, ausentes outros elementos que lhe emprestem mais robustez. E clamor social não traduz por si a dita robustez.

A alternativa trazida à baila através da Proposta de Súmula Vinculante [7] nº 143, que procura demonstrar a incompatibilidade entre a manutenção da prisão preventiva e a fixação de início de cumprimento de pena menos severo que o regime fechado e a insegurança jurídica que daí decorre, curva-se sobre o princípio da individualização da pena e traz provocação interessante traduzida pelo trecho seguinte: "O juízo, ao decidir por regime mais brando, está a afirmar que o encarceramento não é proporcional ao delito cometido e as circunstâncias presentes no caso concreto; portanto, se existem motivos hígidos a sustentar o cumprimento de pena no regime semiaberto, não podem permanecer válidos aqueles provisórios que embasam o decreto de prisão preventiva".

A iniciativa da Defensoria Pública da União, se por hipótese transformada em súmula, ao menos em teoria sugere a possibilidade de desafogar as instâncias inferiores, promovendo desobstrução, mesmo que parcial, desse gargalo representado pela considerável quantidade de decisões de juízos que dobram ao avesso disposições legais, e mesmo no rastro daquele poder geral de cautela antes mencionado, além daqueles que reiteradamente ignoram entendimentos de há muito sedimentados no Supremo Tribunal Federal.

Tudo é possível e toda forma de chacoalhar o (fadado ao fracasso) sistema carcerário parece bem-vinda!

O termo passeio empregado no título talvez soe essencialmente eufemista e seja o recurso linguístico menos inadequado quando se avança no eixo da questão, ultrapassados os comentários simplórios feitos desde os primeiros passos dessa empreitada realizada em dois tempos e a transitar pelos 80 anos aqui mal dissecados, mas cujas entranhas e mazelas, lastreadas inclusive naquelas abomináveis exceções apontadas e que insistem em querer justificar o encarceramento cautelar quase sugerido como regra,  seguem mal ou bem representadas como um emaranhado de variadas causas, motivos muitos que convergem para um tal estado de coisas retratado pela mesma e velha foto instantânea cujas cores fortes da miserabilidade humana teima em revelar.

[1] https://www.conjur.com.br/2022-mai-30/andre-ferrer-breve-passeio-pelos-80-anos-cpp

[2] https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiOWYwMDdlNmItMDNkOC00Y2RmLWEyNjQtMmQ0OTUwYTUwNDk5IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9

[3] https://www.conjur.com.br/2022-jun-08/escritos-mulher-sistema-prisional-durante-covid

[4] Aury Lopes Jr. , "Direito Processual Penal", p. 661, 19ª ed., 2022, SaraivaJur.

[5] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5925860

[6] Aury Lopes Jr., "Direito Processual Penal", p. 666, 19ª ed., 2022, SaraivaJur.

[7] https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/dpu-stf-preventiva-seja-declarada.pdf

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