Escritos de Mulher

Brasil chegou a mais de 900 mil presos durante a Covid-19

Autor

  • Maíra Fernandes

    é advogada criminal coordenadora do Departamento de Novas Tecnologias e Direito Penal do IBCCrim professora convidada da FGV Rio e da PUC Rio mestre em Direito e pós-graduada em Direitos Humanos pela UFRJ.

8 de junho de 2022, 14h54

Segundo dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), divulgados pelo jornal O Globo [1], a pandemia da Covid-19 pode ter levado o Brasil ao trágico marco de 919.651 presos, número que o consagra como terceiro país que mais prende no mundo, atrás apenas de China e Estados Unidos.

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Em abril de 2020, início dos dois anos pandêmicos que abalaram o mundo, encontravam-se presos no Brasil cerca de 885.195 pessoas, constatando-se, assim, um aumento de 7,6% da população carcerária após a disseminação internacional da Covid-19.

A crise carcerária, contudo, não é novidade. Há tempos, prende-se muito e prende-se mal no Brasil. O Departamento Penitenciário Nacional (Depen), aponta que, nas últimas décadas, a população carcerária triplicou, saltando de 232.755 pessoas em 2000 para 773.151 em 2019 [2]. Vive-se, nas prisões, um estado de coisas inconstitucional, como reconheceu o Supremo Tribunal Federal na ADPF 347: unidades superlotadas, insalubres, carentes de tudo (água, luz do sol, medicamentos etc.) e que violam, a mais não poder, a dignidade da pessoa humana e os demais direitos fundamentais dos presos.

Atualmente, o sistema prisional brasileiro tem déficit de 212 mil vagas (Depen, 2022) [3]. Isso sem levar em conta que, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existem ainda outros 352 mil mandados de prisão sem cumprimento, os quais, somados, gerariam um déficit de 564 mil vagas nas penitenciárias brasileiras.

A superlotação potencializa os problemas do grande encarceramento: diversas unidades com enormes celas coletivas, onde os detentos ficam amontoados, muitos dormem no chão, brigam por colchonetes se desfazendo. Proliferam-se as doenças de todo tipo. Faltam médicos, psiquiatras, psicólogos para atender essa população que não para de crescer. Acirram-se a violência e as disputas internas, um desafio à segurança. A superlotação, inevitavelmente, vem acompanhada de maus-tratos, doenças, motins, rebeliões e mortes em muitos estados do país.

O fato de a população carcerária ter crescido expressivamente nos últimos dois anos pode ser atribuído a consequências indiretas da pandemia, como o empobrecimento geral da população, a fome e o desemprego.

Contudo, a verdade é que a superlotação e a insalubridade das penitenciárias brasileiras são insustentáveis há tempos, e apenas se agravam com o passar dos anos e o aumento do número de presos. Assim, o que surpreende é que nem mesmo uma crise de saúde global foi capaz de fazer a Justiça Criminal segurar o freio de mão e mudar seu trilho destrutivo e desumano para tomar decisões mais humanitárias.

Desde março de 2020, alertava-se sobre riscos às pessoas encarceradas em meio à pandemia. Além de restarem presos em locais de completa aglomeração, a precariedade dos presídios torna os indivíduos encarcerados ainda mais vulneráveis a doenças e infecções.

Em estudo realizado em 2016 e 2017, o Grupo de Pesquisa sobre "Saúde nas Prisões", da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), analisou as causas de óbito no Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro e constatou que "as doenças infecciosas foram responsáveis por 30% das mortes na população carcerária, seguidas pelas doenças do aparelho circulatório (22%), causas externas (12%) e as doenças do aparelho respiratório (10%)" [4].

O estudo também concluiu que há "um expressivo excesso de mortes potencialmente evitáveis nas prisões, o que traduz importante desassistência e exclusão dessa população do Sistema Único de Saúde" [5], de modo a configurar uma taxa de letalidade por doenças infecciosas cinco vezes superior à da população geral.

Atento a esses riscos, em 17 de março de 2020, o CNJ editou a Recomendação nº 62, instruindo os tribunais e magistrados a adotarem diferentes medidas preventivas para evitar a propagação do vírus no sistema prisional.

As medidas sugeridas visavam, essencialmente, reduzir as aglomerações nos presídios e assegurar a saúde da população carcerária, como recomendou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos [6]. Nesse sentido, o CNJ orientou sobre a máxima excepcionalidade de novas prisões preventivas, bem como estimulou a reavaliação das já decretadas, principalmente no caso de mulheres gestantes, lactantes, mães responsáveis por crianças de até 12 anos, bem como de qualquer pessoa que estivesse dentro do grupo de risco da Covid-19.

Contudo, a Recomendação nº 62/2020 não surtiu o efeito desejado. Tratando-se de recomendação sem caráter vinculante, o ato normativo do Conselho Nacional de Justiça foi amplamente descumprido por parte dos magistrados e tribunais. À época, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, ridicularizou as orientações do órgão, caracterizando o coronavírus como "solturavírus".

Assim, em 11 de maio de 2020, foi ajuizada a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 684, que pleiteava ao Supremo Tribunal Federal a determinação de medidas vinculantes para preservar a saúde das pessoas presas durante a pandemia. A ação, contudo, ainda não foi apreciada pela corte.

Nesse ínterim, a Covid-19 se disseminou pelo sistema prisional. Segundo o Depen, ao longo da pandemia foram verificadas 66.447 ocorrências da Covid-19, com 287 óbitos [7]. Apesar de ser um número expressivo, constatações feitas pelo Infovírus [8] indicam que os números apresentados pelo órgão são inconsistentes, indicando a subnotificação dos casos de infecção e óbitos de detentos, como também sugerem relatos de familiares de presos [9]. O CNJ, por sua vez, em seu boletim do mês de abril, destaca que 322 pessoas presas perderam a vida em razão da pandemia [10].

O fato é que a ausência de testagens massivas nas penitenciárias não nos permite chegar a um número acurado sobre a disseminação do vírus nas prisões [11][12].

Por outro lado, a pandemia também trouxe obstáculos ao direito de defesa dos custodiados. Por exemplo, conquanto o artigo 8º da Recomendação nº 62 do CNJ sugerisse a não realização das audiências de custódia, na medida em que excepcionava a conversão da prisão em flagrante em preventiva apenas por crimes cometidos com violência ou grave ameaça contra a pessoa, verificou-se que, entre março e dezembro de 2020, em 50% de casos houve decretação de prisões preventivas [13] — ainda que, em muitos deles, sem a realização de audiência de custódia [14].

Outra penitência trazida pela Covid-19 foi a suspensão temporária das visitações de familiares dos presos, determinada no início da pandemia — o que, além de angústia às famílias, resultou em severas consequências aos aprisionados, tanto materiais (na medida em que eram privados de receber comida, remédios e itens de higiene) quanto emocionais (pois perderam subitamente seus únicos meios de contato com o mundo externo).

Vale pontuar, por fim, que os últimos dados levantados também apontam um crescimento da população carcerária feminina, totalizando 49 mil mulheres encarceradas (CNJ, 2022) [15], maior número já visto no Brasil. Ainda assim, o sistema penitenciário permanece construído por homens, e para homens, sendo apenas (mal) adaptado às mulheres.

Mesmo com o tímido avanço normativo sobre as condições das mulheres encarceradas, refletindo, inclusive, em recentes decisões do STF — como no Habeas Corpus coletivo 143.641, que substituiu a prisão preventiva pela domiciliar de todas as mulheres presas grávidas e mães de crianças com até 12 anos de idade [16] — essas mudanças ainda não se concretizaram na realidade das penitenciárias brasileiras. Como já dito, a própria Recomendação nº 62 excepcionalizava, ainda mais, a prisão preventiva das mães, e mesmo assim as mulheres grávidas seguiram presas em 1/3 dos casos após audiência de custódia [17], suportando as graves consequências da Covid-19 em presídios superlotados.

Em suma, o aumento e o recrudescimento das condições oferecidas à população carcerária tem sido uma constante no Brasil, que se consolida no pódio das nações que mais prendem no mundo.

Não surpreende que se tenha prendido mais durante a pandemia — a surpresa é que se tenha prendido tanto apesar dela.

Há dois anos, quando a humanidade contemplava o surgimento de um vírus letal e desconhecido, falávamos em sair desse período como uma sociedade melhor e mais fraterna.

O tempo, porém, mostrou a ingenuidade desse pensamento.

Caminhamos a passos largos no que parece ser um caminho sem volta. Nunca encarceramos tanto e em tão precárias condições. As prisões brasileiras são verdadeiras masmorras, nas quais centenas de milhares de pessoas, durante a pandemia, ficaram ainda mais abandonadas à própria sorte, pois sequer podiam receber visitas.

A cada segundo a situação se torna ainda mais insustentável. Não existe saída possível sem refundarmos nossa Justiça Criminal. É cada vez mais evidente que o superencarceramento não resolve os problemas de segurança pública. Ao contrário, transforma as pessoas para sempre. E para pior.


[3] Segundo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias realizado pelo Depen referente ao período de julho a dezembro de 2021: https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen

[7] aqui 

[8] https://www.covidnasprisoes.com/blog/de-olho-no-painel-do-depen-analise-de-informacoes-do-estado-sobre-a-covid19 – Para uma leitura completa do relatório "De Olho no Painel do Depen: Análise de Informações de Estado sobre a Covid-19 nas Prisões (2020 – 2021)"

Autores

  • é advogada criminal, mestre em Direito pela UFRJ, especialista em Direitos Humanos pela mesma instituição, professora convidada da PUC-Rio e da FGV-Rio, vice-presidente da Abracrim-RJ e conselheira da OAB-RJ. Foi presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro e coordenadora do Fórum Nacional de Conselhos Penitenciários.

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