Opinião

Uso de estereótipos de gênero no processo penal: o caso Márcia Barbosa de Souza

Autor

  • Vladimir Aras

    é professor da UFBA e do IDP integrante do MPF mestre em Direito Público (UFPE) doutor em Direito (UniCeub) especialista MBA em Gestão Pública (FGV) e membro-fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).

31 de janeiro de 2022, 5h03

1. Introdução
O caso Márcia Barbosa de Souza tornou-se a décima condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). A sentença foi proferida em 7 de setembro, mas somente divulgada em novembro de 2021. O processo ingressou no sistema interamericano no ano 2000, a partir de petição do Centro por la Justicia y el Derecho Internacional (Cejil), do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) e do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop).

Entre a data da apresentação da petição pelas ONGs à Comissão Interamericana (CIDH) e a decisão da Corte IDH transcorreram mais de 21 anos, o que nos faz dar razão a Carbonell, que tem criticado a excessiva morosidade do sistema interamericano. A própria Corte reconheceu a mora no § 4º da sentença interamericana.

O caso ganha importância por tratar da imunidade parlamentar no contexto de violência de gênero, assim como da diligência devida na investigação de crimes cometidos contra mulheres. Também é notável o posicionamento da Corte IDH quanto ao emprego de estereótipos de gênero no processo penal. Todos esses pontos tornam o caso Márcia um paradigma quanto aos parâmetros da proteção vitimária no continente americano.

2. O homicídio de Márcia e seus percalços
Márcia Barbosa de Souza era uma estudante paraibana, afrodescendente e pobre. Em meados de junho de 1998, aos 20 anos, Márcia foi vítima de um homicídio cometido pelo ex-deputado estadual Aércio Pereira de Lima (1939-2008), da Paraíba, que a sufocou, asfixiando-a até a morte. Aparentemente o crime ocorreu no interior do Motel Trevo, de onde seu corpo foi retirado e levado ao altiplano Cabo Branco, para ser ocultado. O criminoso teria contado com a ajuda de cúmplices para livrar-se do cadáver da vítima.

Falhas e omissões atribuídas ao Estado da Paraíba levaram à décima condenação do Brasil pela Corte IDH, que põe à mostra a absurda ineficiência do sistema penal brasileiro e seu notório desleixo para com o direito à vida e os direitos das vítimas e de seus familiares quanto ao acesso à justiça e à proteção judicial, especialmente quando envolvidos detentores de poder político ou econômico.

Em 15 anos, entre 2006 e 2021, o Brasil sofreu dez sentenças de responsabilização internacional no sistema interamericano. Só um processo foi julgado improcedente neste período.

Vladimir Aras

Em 19 de junho de 1998, foi aberta a investigação policial pela morte de Márcia. Devido à imunidade parlamentar, o então deputado estadual Aércio Pereira de Lima não pôde ser processado de imediato pelos crimes de homicídio duplamente qualificado e ocultação de cadáver.

As duas solicitações feitas à Assembleia Legislativa da Paraíba foram indeferidas por seus pares em 17 de dezembro de 1998 e em 29 de setembro de 1999, o que impediu a tramitação e o recebimento da denúncia que havia sido ofertada pela Procuradoria Geral de Justiça do Ministério Público ao Tribunal de Justiça paraibano em outubro de 1998.

Graças à emenda constitucional 35, de 20 de dezembro de 2001, que alterou o art. 53 da Constituição Federal, a prévia autorização legislativa deixou de ser exigida no plano federal para o processamento de ações penais contra parlamentares (imunidade processual). O §3º deste artigo, que antes exigia prévia aprovação da Casa Legislativa do deputado ou senador para que ele pudesse ser processado, passou a prever apenas a possibilidade de sustação, pelo Poder Legislativo, da tramitação de uma ação penal já proposta. Confira na tabela abaixo a alteração ocorrida em 2001:

Vladimir Aras

Tal imunidade é extensível aos deputados estaduais, por força do art. 27, §1º, da CF. Como consequência direta da modificação do modelo federal de imunidades parlamentares, foi aprovada pelo Estado da Paraíba a emenda à Constituição estadual n. 14/2002, que alterou o art. 55 da Lei fundamental paraibana, sobretudo o seu §3º:

Art. 55 da Constituição da Paraíba:
§ 3º Recebida a denúncia contra o Deputado Estadual, por crime ocorrido após a diplomação, o Tribunal de Justiça dará ciência à Assembleia Legislativa, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação.

Com a inexigibilidade da autorização prévia para processar deputados estaduais, o Poder Judiciário da Paraíba pôde fazer tramitar a denúncia contra o réu a partir de março de 2003, já então em primeira instância, perante a Vara do Júri de João Pessoa, porque Aércio Pereira de Lima perdera seu foro especial, por não ter conseguido reeleger-se.

Julgado pelo tribunal do júri de João Pessoa em 26 de setembro de 2007, o réu acabou condenado a 16 anos de prisão, por homicídio qualificado por motivo fútil, praticado mediante asfixia, e por ocultação de cadáver. A defesa recorreu da decisão do júri, mas o processo não chegou ao fim, pois o réu morreu em 12 de fevereiro de 2008 sem cumprir sua pena.

A sentença proferida pela Corte IDH no caso Márcia foi a primeira na qual se analisou a imunidade parlamentar em relação ao direito de acesso à justiça e ao dever de investigar com a devida diligência a morte violenta de uma mulher.

3. A abertura do caso interamericano
O caso Márcia ingressou na Corte em julho de 2019, mediante provocação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que, em seu relatório, assinalou que a imunidade parlamentar do então investigado gerou um atraso injustificado no processo penal, de natureza discriminatória, e que o prazo de mais de nove anos de duração da persecução criminal pela morte de Márcia Barbosa de Souza violou a garantia da razoável do processo e produziu denegação de justiça.

A CIDH ainda alegou à Corte que "as deficiências probatórias não foram corrigidas e nem todas as linhas de investigação foram esgotadas, sendo tal situação incompatível com o dever de investigar com a diligência devida".

Na sentença em Barbosa de Souza e Outros, a Corte IDH afastou a questão preliminar oposta pelo Brasil quanto a sua não sujeição à competência obrigatória do tribunal para fatos anteriores a 10 de dezembro de 1998 (incompetência ratione temporis). A Corte asseverou, com base em sua jurisprudência (caso das Irmãs Serrano Cruz vs. El Salvador, de 2004; e caso Herzog e Outros vs. Brasil, de 2018), ser competente para analisar as supostas ações e omissões do Estado brasileiro ocorridas na investigação e na ação penal instauradas para apurar o homicídio de Márcia Barbosa de Souza, “após o da 10 de dezembro de 1998, tanto em relação à Convenção Americana quanto com relação ao art. 7º Convenção de Belém do Pará” (§22 da sentença).

Mais adiante, no §46, a Corte IDH voltou ao ponto, para reafirmar que o homicídio de Márcia Barbosa de Souza e “alguns dos primeiros atos investigativos estão fora” de sua competência. O que se apurou foram as falhas, as omissões e a morosidade da persecução criminal brasileira a partir de 10 de dezembro de 1998, data na qual o Brasil passou a sujeitar-se à jurisdição obrigatória da Corte IDH, nos termos do Decreto 4.463/2002.

4. A questão da imunidade parlamentar de natureza processual
No mérito, lembrando o que decidiu o Tribunal Europeu de Direitos Humanos no caso Karácsony e Outros vs. Hungria (2016), especialmente nos §§138 e 146, a Corte IDH assentou que a imunidade parlamentar (tanto a de natureza material quanto a de cunho processual) foi concebida como uma garantia da independência das corporações legislativas para o exercício de atividades parlamentares e que não pode ser usada como um privilégio pessoal do parlamentar. Para a Corte IDH, “em nenhuma hipótese poderia se tornar um mecanismo de impunidade, questão que, se acontecesse, erodiria o estado de direito, seria contrária à igualdade perante a lei e tornaria ilusório o acesso das pessoas afetadas à justiça.” (§100 da sentença em Barbosa de Souza). [As traduções são do autor, a partir do texto em espanhol].

A Corte IDH concluiu que a forma como a imunidade parlamentar foi regulamentada no Brasil e no Estado da Paraíba contrariava o direito de acesso à justiça, sendo, portanto, inconvencional. Para que isto não ocorra, cabe à Casa Legislativa analisar as circunstâncias do caso para examinar se há arbitrariedade na persecução criminal e se a acusação põe em risco o exercício da atividade parlamentar ou o funcionamento do Parlamento (§§107 e 108). Além disso, o Poder Legislativo tem o dever de ponderar os interesses em conflito e motivar tal deliberação, porquanto ela pode interferir no direito de cidadãos ao acesso à Justiça e obviamente no direito do deputado ou senador à imunidade (§§109-110).

Deste modo, conforme o §111 da sentença, para ser válida, a decisão da Casa Legislativa sobre o levantamento ou não da imunidade parlamentar processual deve: a) seguir um procedimento célere, conforme o seu regimento interno, que contenha regras claras sobre as garantias do devido processo legal; b) estabelecer estritos critérios de proporcionalidade, com base nos quais se deve analisar a acusação formulada contra o parlamentar e considerar o impacto dessa acusação, assim como levar em conta as efeitos sobre o direito de acesso à Justiça das pessoas por ele vitimadas e as consequências de se obstar um julgamento; e c) ser motivada, com fundamentação vinculada à identificação e à justificativa da existência ou não de um fumus persecutionis quanto ao exercício da ação penal dirigida contra o parlamentar.

Diante da inobservância dessas premissas sobre forma e os critérios de decisão, prazo e dever de motivação, que agora fazem parte dos precedentes de observância obrigatória nos Estados Partes do sistema interamericano de direitos humanos, a Corte afirmou ainda que a resistência da Assembleia paraibana em suspender a imunidade parlamentar do então deputado foi “um ato arbitrário” e imotivado, sendo essas recusas uma das causas da impunidade do réu e o que contribuiu para frustrar o direito da família da vítima de acesso à justiça (§122 da sentença).

O Tribunal afirmou no §120 que, em suas duas resoluções, a Assembleia Legislativa da Paraíba não analisou o que chamou de fumus persecutionis do Ministério Público e o direito de acesso à justiça por parte dos familiares de Márcia Barbosa de Souza nem levou em consideração o “dever estatal de investigar atos de violência contra a mulher com a devida diligência”.

Note-se ainda que, no §204 da sentença, a Corte IDH realçou o dever das autoridades legislativas exercerem de ofício um controle de convencionalidade de suas práticas quanto à aferição da imunidade parlamentar em casos concretos.

Caso Márcia vs. Brasil (2021)
204 (…) a Corte considera pertinente recordar que todas as autoridades estatais têm a obrigação de exercer ex officio o controle de convencionalidade entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no âmbito de suas respectivas competências e dos respectivos regulamentos processuais. Nessa tarefa, as autoridades internas devem levar em conta não só o tratado, mas também a interpretação que dele faz a Corte Interamericana, intérprete final da Convenção. Do referido relato, face a eventual discussão sobre a aplicação da imunidade parlamentar, com a consequente suspensão do processo penal contra um membro do Poder Legislativo, nos termos do artigo 53 da Constituição, caberá à respectiva casa zelar para que a aplicação e interpretação do regimento interno se ajustem aos critérios estabelecidos nesta Sentença, de forma a resguardar o direito de acesso à justiça.

5. A falta de devida diligência na investigação do crime
Na sentença contra o Brasil, a Corte IDH também concluiu que, além de a investigação e o processo penal pelo homicídio de Márcia Barbosa de Souza terem sido marcados por práticas discriminatórias com base em gênero, não foram conduzidos com eficiência nem em conformidade com uma adequada perspectiva de gênero.

Neste ponto, vale lembrar das Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres (feminicídio), que procuram ordenar a persecução criminal segundo este norte. Tais diretrizes devem ser observadas sempre que haja indícios de que a morte de uma mulher decorreu de violência de gênero. Não de pode deixar de mencionar o Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero (CNJ, 2021).

Para a Corte IDH (§124), apesar dos fortes indícios de que a morte de Márcia Barbosa de Souza resultou de violência de gênero, o Estado brasileiro não realizou diligências probatórias para esclarecê-la. Quando há indícios desse tipo de violência, “a falta de investigação por parte das autoridades dos possíveis motivos discriminatórios por trás de atos de violência contra a mulher pode constituir de per si uma forma de discriminação com base em gênero” (§125).

Esclareceu a Corte IDH que a ineficiência do sistema de justiça criminal diante de um caso de violência contra uma mulher em particular cria "um ambiente de impunidade que facilita e promove a repetição de atos de violência em geral e envia uma mensagem segundo a qual a violência contra a mulher pode ser tolerada e aceita, o que favorece sua perpetuação e a aceitação social do fenômeno, o sentimento e a sensação de insegurança das mulheres, bem como uma persistente desconfiança das mulheres no sistema de administração de justiça". E agregou o Tribunal que tal ineficiência ou indiferença "por si só constitui discriminação contra as mulheres no acesso à justiça" (§125).

Como se prova que um Estado Parte da Convenção Americana atuou com a devida diligência? Explicou a Corte nos §§127-128 da sentença que a “devida diligência será demonstrada no processo penal se o Estado for capaz de provar que empreendeu todos os esforços, em um prazo razoável, para permitir a determinação da verdade, a identificação e punição de todos os responsáveis, sejam eles indivíduos ou funcionários públicos“.

Com base nos arts. 8º e 25 da Convenção Americana e no art. 7º, b, da Convenção de Belém do Pará, o Estado deve investigar cumprindo um dever que se lhe impõe, fazendo-o de forma “séria, objetiva, eficaz e com vistas à determinação da verdade e à persecução, captura e eventual julgamento e punição dos autores” (§128).

Caso Márcia vs. Brasil (2021)
128. De igual modo, a Corte tem assinado de maneira consistente que o dever de investigar é uma obrigação de meios e não de resultados, que deve ser assumida pelo Estado como um dever jurídico próprio e não como uma simples formalidade condenada de antemão a ser infrutífera, ou como uma mera gestão de interesses particulares, que dependa da iniciativa processual das vítimas ou de seus familiares ou do aporte privado de elementos probatórios. Ademais, a investigação deve ser séria, objetiva e efetiva, e orientar-se à determinação da verdade e à persecução, captura e eventual julgamento e punição dos autores dos fatos.
129. Vale recordar que, em casos de violência contra a mulher, as obrigações gerais previstas pelos artigos 8º e 25 da Convenção Americana se complementam e reforçam com as obrigações provenientes da Convenção de Belém do Pará. Em seu artigo 7.b), a referida Convenção obriga de maneira específica os Estados Partes a agir com a devida diligência para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher. De tal modo, diante de um ato de violência contra uma mulher, é particularmente importante que as autoridades encarregadas da investigação a levem adiante com determinação e eficácia, tendo em conta o dever da sociedade de rechaçar a violência contra as mulheres e as obrigações do Estado de erradicá-la e de passar confiança às vítimas nas instituições estatais para sua proteção.

Como se vê no caso dos Meninos de Rua (Villagrán Morales e Outros) vs. Guatemala (1999), §230, a jurisprudência da Corte indica que um Estado pode ser responsabilizado internacionalmente por deixar de “determinar, praticar ou valorar probas que tenham muita importância para o devido esclarecimento dos homicídios” (§131 da sentença em Márcia).

Porém, quando se trata de situação, ainda que potencial, de violência contra a mulher, o conjunto convencional interamericano traz uma obrigação adicional: a de investigar com uma perspectiva de gênero. Em harmonia com o decidido no caso Veliz Franco e Outros vs. Guatemala (2014) (nota 254 no §178), a Corte IDH afirmou que a aplicação da Convenção de Belém do Pará, para os fins de uma investigação, “não depende de um grau de certeza absoluta se o fato a ser apurado constituiu violência ou não contra as mulheres nos termos da referida Convenção”. Isto quer dizer que somente mediante o desempenho da atividade investigativa, em cumprimento ao dever do art. 7º da Convenção de Belém do Pará, é que se poderá determinar se ocorreu, ou não, violência contra a mulher. A investigação é uma premissa necessária para que se afaste a hipótese ou para que se confirme, ao final, que realmente houve violência de gênero. Essa abordagem deve ser adotada pelos órgãos de persecução criminal sempre que não se possa descartar de plano a hipótese de violência motivada por gênero.

6. A morosidade da investigação criminal
Seguindo seus reiterados precedentes, em Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil, a Corte IDH ressaltou que as vítimas e seus familiares também têm direito à uma razoável duração do processo.

Tendo em conta a demora da investigação, causada pela recusa de levantamento da imunidade parlamentar do denunciado, a Corte concluiu, no §137 da sentença, que o "Brasil violou o prazo razoável para a investigação e a tramitação do processo penal pelo homicídio de Márcia Barbosa de Souza."

Caso Márcia vs. Brasil (2021)
134. A Corte assinalou que o direito de acesso à justiça em casos de violação de direitos humanos deve garantir, em um prazo razoável, o direito das supostas vítimas ou de suas famílias de que se faça o possível para desvendar a verdade sobre o ocorrido e investigar, processar e, quando cabível, punir os prováveis responsáveis. Além disso, um atraso prolongado no processo pode chegar a constituir, por si só, uma violação das garantias judiciais.

É de se notar, portanto, que a garantia da razoável duração do processo (inclusive na fase investigativa) também integra o patrimônio jurídico das vítimas. Tal leitura, consagrada pela Corte IDH à luz do conjunto normativo interamericano, é compatível com o que dispõe a Constituição Federal, no art. 5º, inciso LXXVIII.

7. Os estereótipos contra a vítima
Nos §§138-150 do caso Márcia, a Corte IDH tratou do emprego de estereótipos de gênero na investigação criminal. Já de início lembrou que o art. 5º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulher (CEDAW, 1979) obriga os Estados Partes a “modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados na ideia da inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres”.

Conforme a Corte IDH (§141 da sentença), em sua Recomendação Geral 33, de 2015, o Comitê da CEDAW alertou que a existência de estereótipos de gênero no sistema judicial “tem um sério impacto no pleno gozo dos direitos humanos das mulheres”, podendo impedir o acesso à justiça, afetando mais gravemente as mulheres vítimas de violência.

Para a Corte IDH, os preconceitos pessoais e os estereótipos de gênero "afetam a objetividade dos funcionários estatais encarregados de apurar as denúncias que lhes são apresentadas, influenciando sua percepção quando determinam se ocorreu ou não um ato de violência, em sua avaliação da credibilidade das testemunhas e da própria vítima". Tais estereótipos, prossegue a Corte, "distorcem as percepções e levam a decisões baseadas em crenças preconceitos e mitos, ao invés de fatos", o que por sua vez pode levar à denegação da justiça, incluindo a revitimização das pessoas atingidas (§144).

Caso Márcia vs. Brasil (2021)
145. O Tribunal já se posicionou anteriormente sobre a importância de identificar, tornar visíveis e rejeitar estereótipos de gênero pelos quais, em casos de violência contra as mulheres, as vítimas são equiparadas, por exemplo, a membros de gangues e/ou prostitutas e/ou a uma “qualquer”, e [os crimes] não são considerados importantes o suficiente para serem investigados, também tornando a mulher responsável ou merecedora de ter sido agredida. Neste sentido, rejeitou qualquer prática estatal pela qual a violência contra as mulheres é justificada e ela é culpada por isso, uma vez que avaliações desta natureza revelam um critério discricionário e discriminatório com base na origem, condição e/ou comportamento da vítima pelo mero fato de ser mulher. Consequentemente, a Corte considerou que estes estereótipos de gênero, nocivos ou prejudiciais, são incompatíveis com o direito internacional dos direitos humanos, e devem ser tomadas medidas para erradicá-los onde surgirem.

Especificamente no caso Márcia, a Corte IDH identificou condutas das autoridades e da defesa que visaram a “desvalorizar a vítima”. O Tribunal assinalou que, na investigação e na ação penal, “a conduta e a sexualidade de Márcia Barbosa de Souza foram objeto de especial atenção, levando à construção de sua imagem como provocadora ou merecedora do ocorrido”.

Caso Márcia vs. Brasil (2021)
147. Na verdade, nas várias declarações testemunhais tomadas durante o curso do inquérito policial e do processo criminal, nota-se a reiteração de questionamentos sobre a sexualidade de Márcia Barbosa. Da mesma forma, foram identificadas perguntas sobre o consumo de drogas e álcool, por ela, embora a perícia toxicológica realizada nos primeiros dias das investigações, paralela à autópsia, tenha registrado quantidade não significativa de substâncias em seu sangue, o que permitiria à Sra. Barbosa de Souza manter seus reflexos normais. Nesse sentido, a perita Soraia Mendes constatou que, das doze testemunhas ouvidas, sete conheciam a Sra. Barbosa de Souza e todos foram questionadas sobre o possível uso de drogas por Márcia, e dois sobre sua sexualidade.

Na sentença, também se pontuou que essa indevida prática investigatória, na Polícia, e a inadequada abordagem processual, por parte da defesa em juízo, serviram para “desviar o foco das investigações” (§146) por meio de estereótipos relacionados a aspectos da vida pessoal da vítima. Márcia foi injustamente retratada como prostituta e como usuária de drogas.

Conforme a perita Soraia Mendes, citada na sentença interamericana, a investigação criminal não focou apenas em depoimentos sobre os fatos, mas também buscou determinar o comportamento social, a personalidade e a sexualidade de Márcia Barbosa. Houve de fato uma “investigação sobre a vítima, seu comportamento, sua reputação”, com informações que partiram das páginas dos jornais para os autos do processo (§148).

Para piorar, disse a Corte:

Caso Márcia vs. Brasil (2021)
149. (…) durante a tramitação da ação penal contra Aércio Pereira de Lima no processo do júri, seu advogado requereu a juntada ao feito de mais de 150 páginas de matérias jornalísticas que se referiam à prostituição, à overdose e a suposto suicídio, para vinculá-los a Márcia Barbosa com a intenção de afetar sua imagem. Além disso, o defensor fez várias menções no curso do processo à orientação sexual da vítima, a um alegado vício em drogas, a comportamentos suicidas e a depressão. Da mesma forma, ele descreveu Márcia como uma "prostituta" e Aércio como um "pai de família" que "se deixou levar pelos encantos de uma jovem" e que, em um momento de raiva, ele teria "cometido um erro".

Como vimos, para a Corte IDH, preconceitos e estereótipos de gênero deste tipo afetam a objetividade das autoridades encarregadas de investigar crimes, influenciando sua percepção quanto à ocorrência ou não de um ato de violência, a partir da avaliação da credibilidade de testemunhas e da própria vítima.

Segundo a Corte, os estereótipos “distorcem as percepções e levam a decisões baseadas em crenças e mitos preconcebidos, ao invés de fatos”, o que por sua vez pode levar à denegação da justiça e à revitimização das pessoas denunciantes.

Como facilmente se percebe, essa sentença dialoga diretamente com a Lei 14.245/2021, publicada em 23 de novembro, que busca exatamente impedir esse tipo de abuso, pelo uso de estereótipos em ações penais por crimes contra a dignidade sexual, especialmente os que têm mulheres como vítimas. Trata-se de uma modalidade das chamadas rape shield laws.

Lei 14.245/2021
Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Logo após a morte de Márcia Barbosa de Souza, a imprensa local começou a publicar dezenas de notas sobre o homicídio. Em meio à grande repercussão midiática, a imprensa “especulou sobre a vida pessoal e a sexualidade de Márcia e reforçou os estereótipos de gênero presentes nas investigações” (§160). Essa profusão de notícias e boatos serviu de matéria-prima para as teses diversionistas e estereotipadas exploradas nos autos da investigação e do processo, num quadro de lawfare promovido pela defesa do réu.

8. As determinações da Corte IDH
Nos pontos resolutivos da sentença no caso Márcia, a Corte IDH condenou o Brasil a:

1. Fazer as publicações indicadas no § 176 da Sentença, no prazo de seis meses a contar da notificação.

2. Realizar um ato de reconhecimento de responsabilidade internacional, em relação aos fatos do caso, nos termos dos §§ 177 e 178 da Sentença.

3. Elaborar e implementar um sistema nacional e centralizado de coleta de dados que permita a análise quantitativa e qualitativa dos atos de violência contra as mulheres e, em particular, das mortes violentas de mulheres, nos termos do §193 da Sentença.

4. Elaborar e implementar um plano de capacitação e conscientização permanente de policiais e de operadores de justiça do Estado da Paraíba, com as perspectivas de gênero e raça, nos termos do parágrafo 196 Sentença.

5. Realizar uma jornada de reflexão e conscientização sobre as repercussões do feminicídio, da violência contra a mulher e do uso do instituto da imunidade parlamentar, nos termos do § 197 da Sentença.

6. Adotar e implementar, em dois anos desde a intimação da sentença, um protocolo nacional para a investigação de feminicídios, nos termos dos §§ 201 e 202 da decisão.

7. Pagar as quantias estabelecidas nos § 212 e 218 da Sentença a título de indenização pela omissão na investigação do homicídio de Márcia Barbosa de Souza; pagar uma indenização por dano material e moral; e reembolsa custas e despesas, nos termos dos §§224 a 229.

8. Reembolsar ao Fundo de Assistência Jurídica às Vítimas da Corte Interamericana de Direitos Humanos os valores gastos durante a tramitação do caso, nos termos dos parágrafos 223 e 229 da Sentença.

9. No prazo de um ano a partir da intimação da Sentença, apresentar à Corte um relatório sobre as medidas adotadas para seu cumprimento, sem prejuízo do disposto no § 176.

10. Submeter-se à fiscalização da Corte quanto ao cumprimento integral da Sentença, nos termos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Embora, por motivos óbvios (morte do principal agente), a Corte IDH não tenha ordenado a reabertura da persecução criminal, os deveres estatais de investigar, processar e punir foram reafirmados.

Merece destaque o ponto sobre o protocolo para a investigação de mortes violentas de mulheres, a ser observado pelos funcionários do sistema de polícia e justiça. Segundo o §201 da sentença, o Brasil deve adotar em um prazo de dois anos, desde a notificação do julgado, um protocolo nacional que estabeleça critérios claros e uniformes, para a investigação desses delitos. Tal protocolo deve observar as diretrizes instituídas no Modelo de protocolo latino-americano de investigação de mortes violentas de mulheres por motivos de gênero e a jurisprudência da Corte IDH. Para garantir a sua observância por policiais, membros do Ministério Público e outras autoridades, tal protocolo deve ser aprovado por “resoluções e normas internas que obriguem sua aplicação por todos os funcionários públicos”.

9. O fracasso do modelo investigativo brasileiro
Os §§82-87 da sentença interamericana no caso Márcia retratam tristemente a ineficiência do modelo investigativo adotado no Brasil, modelo burocrático, moroso e intermediado entre o Ministério Público, o juiz e a Polícia.

Tal trecho da decisão revela ainda, em concreto, a injustificável resistência da Polícia Civil ao cumprimento de diligências requisitadas pelo Ministério Público como essenciais para a cabal elucidação do caso, como a obtenção da lista de veículos que entraram e saíram do Motel Trevo na madrugada do homicídio de Márcia.

A Corte ressaltou essa série de omissões ao observar que, embora existissem indícios que apontavam a possível participação de outras pessoas no homicídio de Márcia Barbosa de Souza e na ocultação de seu cadáver, a Polícia Civil da Paraíba não foi realizou diversas diligências pertinentes, que haviam sido requisitadas pelo Ministério Público. Destaco:

Caso Márcia vs. Brasil (2021)
132. (…) Na verdade, o Ministério Público responsável pelo processo, no uso de suas atribuições legais, requisitou, em diversos oportunidades, ao Delegado de Polícia responsável pelas investigações, a realização de perícia médico-legal para determinar se as informações contidas no laudo cadavérico sugeriam que Márcia não teria morrido por estrangulamento, mas por asfixia causada por uma overdose; a lista de entradas e saídas de veículos na data do fato em vários motéis, incluindo o motel Trevo; os depoimentos dos proprietários e gerentes do motel Trevo, bem como do porteiro e de outros funcionários que trabalharam na madrugada da morte de Márcia, e a realização de perícia grafotécnica nos bilhetes encontrados nos bolsos e pertences de Márcia, que registravam os telefones de Aércio Pereira de Lima e outros para esclarecer se essas notas foram escritas pela Sra. Barbosa de Souza ou por um terceiro. O delegado de Polícia, por diversas vezes, não atendeu às requisições com a justificativa de “excesso de trabalho”. Além disso, após uma série de requisições de diligências complementares pelo Ministério Público encarregado do caso, este acabou aceitando a omissão do Delegado da Polícia Civil da Paraíba e requereu o arquivamento da investigação por falta de provas, o que foi aceito pelo juiz competente.

Este quadro probatório retrata uma reiterada e grave omissão da Polícia paraibana e a aceitação dessa renitência pelo Ministério Público, que deixou de exercer a contento o controle externo da atividade policial, como era de seu dever, especialmente num caso de tamanha gravidade. Não é de se estranhar, portanto, que estes elementos tenham sido cruciais para que a Corte IDH chegasse à conclusão, no §133 da sentença, de que “o Estado não cumpriu com sua obrigação de agir com a devida diligência para investigar seriamente e completamente a possível participação de todos os suspeitos no homicídio de Márcia Barbosa“.

Internamente, essa responsabilidade deve ser compartilhada pelo Ministério Público e pela Polícia, que falharam no cumprimento das obrigações processuais positivas relacionadas ao direito à vida.

Se a Polícia não investigou como deveria, cabia ao Ministério Público exercer o controle externo da atividade policial, nos termos do art. 129 da Constituição e da Lei Complementar Federal n. 75/1993, para assegurar a observância do princípio da eficiência na persecução criminal, ou assumir a condução da investigação criminal, para elucidação da autoria e de suas circunstâncias.

10. A não reabertura das investigações contra os supostos cúmplices do deputado
Não me pareceu convincente a falta de determinação para a reabertura das investigações em relações aos supostos cúmplices do deputado Aércio Pereira de Lima. O §178 da sentença no caso Márcia Barbosa de Souza trata deste ponto de forma lacônica. "A Corte estima que uma eventual reabertura das investigações quanto aos quatro possíveis partícipes do homicídio de Márcia Barbosa não é procedente." Era esta a vontade da Comissão (CIDH) e também dos requerentes, os pais da vítima.

Só posso especular que a Corte não tenha querido debruçar-se sobre o tema da prescrição de um crime que não é de jus cogens. A infração penal ocorreu em 1998 e, sem que os suspeitos tenham sido denunciados, já se passaram mais de 20 anos do fato, o que faz incidir a regra prescricional do art. 109, inciso I, do Código Penal. Contudo, segundo a opinião da Comissão Interamericana (CIDH), registrada no §168 da sentença da Corte, o Estado brasileiro “não poderia opor as garantias do ne bis in idem, coisa julgada ou prescrição para justificar o não cumprimento” desse dever.

No §212 da sentença, ao estipular o valor da indenização do dano material e moral para o pai e a mãe de Márcia, a Corte IDH deixou expresso que o montante de US$ 150 mil dólares devido a cada um deles “inclui o valor da indenização pela impossibilidade de reabertura do inquérito criminal sobre os demais possíveis participantes do assassinato da Sra. Barbosa de Souza“. A hipótese de impossibilidade de reabrir o caso pelo critério prescricional ganha força.

11. Conclusão
As observações da Corte sobre a impossibilidade de uso abusivo da imunidade processual parlamentar e sobre o dever de investigar, processar e punir destacam-se no pronunciamento da Corte IDH.

No entanto, o ponto mais importante do julgado, me parece ser o alerta da Corte quanto à impossibilidade de emprego de estereótipos de gênero, para justificar omissões estatais na persecução criminal ou para obter decisões defensivas que se apoiem em puro preconceito ou discriminação, sobretudo contra a mulher vítima de violência. A proteção vitimária no sistema interamericano ganha mais um escudo.

Infelizmente, esses vícios estiveram presentes no caso Márcia:

Caso Márcia vs. Brasil (2021)
150. (…) a Corte conclui que a investigação e a ação penal pelos fatos relacionados ao homicídio de Márcia Barbosa de Souza tiveram um caráter discriminatório com base no gênero e não foram conduzidos com uma perspectiva de gênero de acordo com as obrigações especiais impostas pela Convenção de Belém do Pará. Portanto, o Estado não adotou medidas destinadas a garantir a igualdade material no direito de acesso à justiça nos casos de violência contra a mulher, em detrimento dos familiares de Márcia Barbosa de Souza. Esta situação implica que, neste caso, não foram garantidos o direito de acesso à justiça sem discriminação nem o direito à igualdade.

Além de tudo o que padeceu no dia de sua morte, Márcia foi vilipendiada na imprensa e no processo penal por anos após o crime. Acometido de um infarto em 2008, o homicida Aércio Pereira de Lima foi velado no salão nobre da Assembleia Legislativa da Paraíba. Foi decretado luto oficial de três dias no Legislativo, e o ex-deputado foi sepultado em João Pessoa no cemitério Boa Sentença.

Autores

  • é doutorando em Direito (UniCeub), mestre em Direito Público (UFPE), especialista MBA em Gestão Pública (FGV), membro do MP desde 1993, atualmente no cargo de procurador regional da República em Brasília (MPF), professor assistente de Processo Penal da UFBA, secretário de Cooperação Internacional da PGR (2013-2017), fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).

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