Processo Novo

Democracia iliberal e controle de constitucionalidade

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

26 de janeiro de 2022, 8h00

Ao longo do tempo, as técnicas de controle de constitucionalidade utilizadas pelo tribunal constitucional vão se adaptando, se ajustando às formas com que se apresentam as inconstitucionalidades — isto é, as ações ou omissões dos demais órgãos que, de algum modo, contrariem a Constituição.

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Os ambientes político e jurídico acabam determinando o modo como se relacionam a Corte Constitucional e os demais órgãos. Não há, aí, uma relação abstrata, simples, simétrica e unidirecional, mas um sistema em que interagem sujeitos concretos de forma complexa, dinâmica, bidirecional e circular, em que o comportamento de cada um dos órgãos afeta e é afetado pelo comportamento dos outros [1].

Por exemplo, pode-se dizer que, sob certo pondo de vista, o emprego de decisões manipulativas (com efeitos aditivos ou substitutivos) pelo tribunal constitucional surge em um ambiente em que os demais poderes omitem-se de modo a impedir a concretização de direitos fundamentais. O tribunal constitucional depara-se com a inconstitucionalidade, mas logo percebe que sua atuação como "legislador negativo" é insuficiente [2]. Mas as inconstitucionalidades podem plasmar-se de forma peculiar, que não se ajustam às técnicas de controle antes conhecidas. E isso impõe às Cortes constitucionais o desafio de saber como atuar, para desempenhar adequadamente a sua função.

É o que pode suceder quando a ação (ou omissão) estatal consiste em manifestação daquilo que se convencionou chamar de constitucionalismo abusivo e de legalismo autocrático, que se relacionam com a figura conhecida como democracia iliberal.

Na doutrina, opõe-se a democracia liberal à iliberal. Afirma-se que a democracia liberal se baseia não apenas em eleições livres e justas, mas também na proteção constitucional dos direitos fundamentais. A democracia iliberal, por sua vez, ocorre quando eleições livres se associam ao abandono gradativo e sistemático de direitos fundamentais assegurados em nível constitucional [3].

Esse "abandono" de direitos fundamentais dá-se através de métodos como aqueles denominados de constitucionalismo abusivo e legalismo autocrático, a que nos referimos.

Por constitucionalismo abusivo considera-se o uso de mecanismos de mudança constitucional (seja por emenda constitucional, seja por substituição da Constituição) para tornar um estado significativamente menos democrático do que era antes [4]. Dá-se o constitucionalismo abusivo através de emendas constitucionais que restringem direitos fundamentais, ou com a substituição da Constituição com o propósito de restringir a democracia.

O constitucionalismo abusivo se liga à ideia de democracia iliberal, ou melhor, pode-se mesmo dizer que o constitucionalismo abusivo é um dos meios de implantação de uma democracia iliberal.

Mas a democracia iliberal concretiza-se não apenas através de mudanças no texto constitucional, podendo manifestar-se através de outros atos estatais que, tendo aparência de conformidade com a Constituição, reduzem os direitos fundamentais e tornam o Estado menos democrático. Tais atos podem ser consistir em formas de legalismo autocrático.

Assim como o constitucionalismo abusivo, o legalismo autocrático depende da presença de condições políticas que propiciem o surgimento e a manutenção do autoritarismo político.

Embora possa manifestar-se em quaisquer ordens jurídicas, os contornos do fenômeno foram delineados por Javier Corrales a partir do caso venezuelano [5].

Afirma Javier Corrales que o caráter autocrático de tais regras nem sempre é explícito, pois, ao menos na forma, são elas formuladas a pretexto de dar guarida à realização legítima de direitos de grupos sociais. Embora o autor, tratando do caso venezuelano, afirme que tais atos têm por propósito fortalecer o chefe do Poder Executivo em relação aos demais poderes, pensamos que é possível dar à figura contornos mais amplos, para abarcar, por exemplo, um determinado grupo político.

Um ponto chama-nos a atenção, na explicação de Corrales. Como mencionamos, as regras autocráticas surgem, ao menos externamente, de forma condizente com a Constituição e com as leis. Assim, as regras autocráticas "não podem ser facilmente contestadas, porque emergiram por meio de canais constitucionais". Isso pode tornar difícil a identificação clara de inconstitucionalidades decorrentes do abuso autocrático, que, consoante explica Corrales, manifesta-se através da "implementação inconsistente e enviesada das leis e regulamentos" [6].

Como proceder, em tais contextos? Quando há convivência razoavelmente harmônica entre os órgãos (ou Poderes) do Estado, pode-se esperar que cada um deles ocupem seus espaços sem interferirem corriqueiramente nos dos outros. Mas quando um dos Poderes atua de modo abusivo no exercício de suas competências, colocando em risco a própria existência do sistema, há natural reação de alguns ou de todos os demais atores do cenário político e constitucional.

Isso repercute, inexoravelmente, nos modos e formas de controle de constitucionalidade. Voltaremos a esse tema em breve, nesta coluna, ao tratarmos da evolução dessas técnicas.


[1] Sobre a ideia de sistema interacional, cf. Paul Watzlawick, Janet Hemick Beavin e Don D. Jackson, Pragmática da comunicação humana, Editora Cultrix, 1973, p. 109.

[2] A respeito, cf. o que escrevemos em Constituição Federal Comentada (7ª edição, 2022), em comentário ao artigo 102 da Constitução.

[3] Cf., dentre outros, Fareed Zakaria, The rise of illiberal democracy, Foreign Affairs 76, nov-dec/1997, p. 22-43; Peter H. Smith; Melissa R. Ziegler, Illiberal and Liberal Democracy in Latin America, Latin American Politics and Society, v.50, nº 1, 2008, p. 31-57. A respeito, cf. o que escrevemos em Constituição Federal Comentada cit., em comentário aos artigos 1º, 17 e 76 da Constituição (mais informações aqui).

[4] Cf. David Landau, Abusive Constitutionalism, University of California, Davis Law Review, v. 47, nº 189, p. 189-260, 2013. Cf. também o que escrevemos em Constituição Federal Comentada, loc. cit.

[5] Javier Corrales, Legalismo autocrático na Venezuela, Journal of Democracy em Português, v. 4, nº 2, out/2015, p. 1-24.

[6] Ob. loc. cits.

Autores

  • é sócio do escritório Medina Guimarães Advogados, doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM. Integrou a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.

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