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O todo é maior que a soma das partes: as liberdades públicas e privadas

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

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4 de janeiro de 2022, 8h00

Aristóteles, há mais de 2.500 anos, disse que "o todo é maior que a soma de suas partes", o que pode parecer estranho na matemática por exemplo, onde é uma verdade absoluta que o resultado da soma de dois mais dois são quatro.

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Ocorre que em outras áreas do conhecimento essa frase é plenamente adequada. Usemos como exemplo uma cadeira (o todo) que é muito mais do que quatro pernas, assento e encosto (as partes), ou uma floresta, que é muito mais do que um conjunto de árvores ou de espécies vegetais. Cada parte tem uma função própria, independente de outra função que surge quando reunidas no todo. Nesse sentido, uma árvore, isolada em uma praça ou no quintal de uma casa cumpre uma função diferente daquela que ocorre ao ser reunida a outras espécies vegetais, quando pode vir a se tornar uma floresta. Assim, uma plantação de soja ou de eucaliptos não se constitui em uma floresta.

Portanto, deve-se compreender a frase de Aristóteles considerando que o todo é maior, e também é diferente, da soma de suas partes.

Neste ponto, o texto poderia discorrer sobre a teoria dos sistemas, mas não é esse o foco. Desloco o pensamento para uma variante entre o âmbito privado e o público, o individual e o coletivo.

Em 1810 foi publicado o livro "Princípios de política aplicáveis a todos os governos" de Henri-Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) [1], um ácido crítico de Rousseau, em especial de sua concepção de vontade geral ancorada no povo, e árduo defensor das liberdades individuais. Nesse livro surgem as ideias centrais de um famoso discurso que proferiu em 1819, denominado "A liberdade dos antigos comparada à dos modernos". Toda a argumentação desenvolvida foi no sentido da inadequação da tentativa de instituir o sistema antigo de liberdades em um contexto moderno, e a perversão gerada por tal fato. Daí por que liberdades individuais refletindo direitos individuais seriam sacrossantas mesmo na presença da vontade popular [2].

Benjamin Constant delineia várias diferenças entre a liberdade dos antigos e dos modernos, sendo a mais relevante a constatação de que os antigos se constituíam em cidadãos na participação política na polis, enquanto para os modernos a liberdade se reflete nas liberdades individuais, isso em razão do aumento da população e da amplitude dos territórios nos Estados modernos. Diz o autor que, "se excetuarmos Atenas, todas as repúblicas gregas submetiam os indivíduos a uma quase ilimitada jurisdição política. O mesmo ocorreu nos grandes séculos do Império romano. O indivíduo era inteiramente sacrificado à coletividade [3]. (…) Cada cidadão, nas repúblicas antigas, circunscrito pela pouca extensão do território, tinha grande importância em termos políticos. O exercício dos direitos políticos era ocupação e desfrute de todos. Por exemplo, em Atenas, todas as pessoas tomavam parte nos julgamentos. Sua parcela de soberania não era, como em nossos tempos, uma suposição abstrata. A vontade das pessoas tinha influência real e não era suscetível à falsificação mendaz ou à representação corrupta. […]. Hoje, a massa de cidadãos é convocada a exercer sua soberania apenas de forma ilusória. […] A felicidade da maioria não mais repousa no desfrute do poder, e sim na liberdade individual. Entre os antigos, a extensão do poder político constituía prerrogativa de cada cidadão. Na atualidade, ela consiste nos sacrifícios que os indivíduos fazem" [4].

O resultado dessas diferenças é que "a liberdade dos tempos antigos era tudo aquilo que garantia aos cidadãos a maior parcela do poder político. A liberdade nos tempos modernos é tudo o que garante aos cidadãos independência do governo. […]. Os modernos precisam de tranquilidade e de várias satisfações. A tranquilidade só é encontrada num pequeno número de leis que evitam que eles sejam incomodados, e as satisfações, numa liberdade individual em expansão. Qualquer legislação que demande o sacrifício dessas satisfações é incompatível com o estado presente da raça humana" [5].

O discurso de Benjamin Constant se contrapõe à prevalência da vontade geral nos moldes expostos por Rousseau. Sua ideia era a de ampliar a esfera de liberdades individuais, fazendo com que a vontade geral fosse apenas residual. Em razão das diferenças apontadas — muitas delas erradas, dentro da perspectiva histórica —, Benjamin Constant dava realce ao indivíduo, afastando a lógica da predominância do pensamento coletivo. A deturpação das ideias de Rousseau, que culminaram com o assembleísmo dominante durante a Revolução Francesa fez com que a reação de Benjamin Constant fosse exacerbada pelo individualismo, na sequência lógica das ideias econômicas preconizadas por Adam Smith, que entendia que a sociedade de mercado é governada pela economia, e não pela política, o que leva Bercovici a compará-lo como o anti-Maquiavel [6], o qual entendia a política como central a qualquer atividade. Isso porque, segundo Adam Smith (1776): "Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos das nossas próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles. Ninguém, a não ser o mendigo, sujeita-se a depender sobretudo da benevolência dos semelhantes" [7].

Nesse sentido, é através do indivíduo que as liberdades públicas se tornariam permanentes, fracionando assim a ideia de vontade geral (o todo), que ficaria reduzida apenas a poucas iniciativas, deixando prevalecer a mão livre do mercado e o direito individual (a parte). As necessidades públicas e coletivas seriam atendidas pelos indivíduos fracionadamente considerados, e não por uma decisão coletiva. Por isso mesmo, em um tópico intitulado "um axioma incontestável" Benjamin Constant afirma que "quanto mais recursos são deixados à disposição da vontade individual, mais o Estado prospera. […] O dinheiro mais bem empregado no reino é aquele que permanece nas mãos dos indivíduos, onde jamais é inútil ou fica ocioso" [8], o que, seguramente, é um pensamento de matriz liberal, que prega ser através de mais dinheiro no bolso dos indivíduos que as necessidades coletivas serão satisfeitas — novamente surge a díade entre o todo e as partes.

Aponta Hannah Arendt que a partir desse raciocínio de Constant é que a liberdade troca de lugar, não mais residindo na esfera pública, e sim na vida privada dos cidadãos, e, por isso, necessita ser defendida contra o Estado. "A liberdade e o poder se afastam, e assim tem início a fatídica equiparação entre poder e violência, entre política e governo, entre governo e mal necessário" [9].

O problema com as ideias supraexpostas, tipicamente liberais, é que não se pode chegar ao bem comum pelo livre jogo das forças de mercado, que privilegiam quem tem propriedade ou o livre acesso a ela. Segundo Fábio Comparato "desde o nascimento da civilização capitalista, o princípio ético supremo passou a ser a busca racional, por cada indivíduo, do próprio interesse material, sem a menor preocupação com o bem comum" [10].

De fato, como aponta Hannah Arendt, "logo que entrou no domínio público, a sociedade assumiu o disfarce de uma organização de proprietários (property-owners), que, em vez de requererem o acesso ao domínio público em virtude de sua riqueza, exigiram dele proteção para o acúmulo de mais riqueza" [11]. Ao tratar de forma individualizada a obtenção de mais riquezas, o governo dos proprietários deixou de lado a busca do bem comum.

Dieter Grimm aponta para esse aspecto ao tratar do que denomina de "questão social", pois "a série de liberdades asseguradas pelos direitos fundamentais carece de utilidade para aqueles a quem faltam os pressupostos materiais para seu uso [12], sendo inútil para a parte da população que carecia de meios de subsistência; o efeito mais drástico foi que dito setor caiu debaixo da dependência dos economicamente poderosos" [13]. Portanto, "se se tem em conta a necessidade de fundar materialmente a liberdade, este conteúdo se concretiza nas dimensões de prestação e de participação […] O mandato dos direitos fundamentais se dirige em primeiro lugar ao legislador, que tem que distribuir os recursos e levar a cabo a compensação de riquezas ali onde não se ajustam à autonomia privada" [14].

A situação se torna mais complexa quando se a vê em sociedades marcadamente desiguais, pois, sendo o mercado dominado pela lógica do lucro, como pressupor que os "despossuídos" tenham recursos para fazer frente ao custo de alguns direitos? Esse é o problema insolúvel dessa análise. Só com a inclusão dos "despossuídos" no sistema de mercado é que se tornarão relevantes dentro deste. Todavia, o objetivo do ser humano é ser uma pessoa "no mercado", que tenha ampla possibilidade de acumulação de riquezas, ou "ser livre" das misérias, afastar o que lhe dá desprazer e buscar sua felicidade? Será que o sistema de relações de emprego inseguro, instável e mal remunerado lhe dará tal segurança e permitirá que exerça plenamente essa liberdade? Será que através da exacerbação de liberdades individuais (as partes) conseguiremos ter liberdades coletivas (o todo)?

Andar pelas ruas de qualquer cidade brasileira é ver a multiplicação da miséria — será que a ampliação das liberdades individuais permitirá reverter esse quadro? Duvido muito. Só quando as desigualdades forem efetivamente reduzidas — jamais serão extirpadas — é que poderá haver sustentabilidade entre as necessárias liberdades individuais e as imprescindíveis liberdades coletivas. Segurança pública, por exemplo, que é um direito social (que diz respeito ao todo), jamais será alcançada pelo porte de armas (solução individual, para cada parte da sociedade).

O papel do Estado e o controle do orçamento em prol do bem comum é importantíssimo para ultrapassar esse estado de coisas — o que coloca em debate a questão das prioridades na arrecadação e no gasto público, e envolve também a exótica solução brasileira das emendas parlamentares, pois o que deveria ser objeto de satisfação das necessidades coletivas (o todo) passa a ser fracionado (em partes), e, como se sabe, o todo é maior e diferente do que a soma de suas partes.

Um próspero 2022 para todos, coletiva e individualmente.


[1] Não se deve confundir esse autor belgo-francês com o brasileiro Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1837-1891), tenente-coronel do Exército e figura de proa na proclamação da república no Brasil.

[2] Capaldi, Nicholas. Introdução. Constant, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. p. 31.

[3] Constant, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. p. 579.

[4] Idem, p. 596.

[5] Constant, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. p. 596.

[6] Bercovici, Gilberto. A expansão do estado de exceção. Boletim de Ciências Econômicas, v. LVII, t. I (em homenagem ao Prof. Dr. António José Avelãs Nunes), p. 740. Coimbra: Coimbra Ed., 2014, p. 737-754.

[7] Smith, Adam. Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. São Paulo: Nova Cultural, 1996. v. I, p. 74.

[8] Constant, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. p. 375-376.

[9] Hannah Arendt, Sobre a Revolução, tradução Denise Bottmann, São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 184

[10] Comparato, Fábio Konder. Poder político e capitalismo. Boletim de Ciências Econômicas, v. LVII, t. I (em homenagem ao Prof. Dr. António José Avelãs Nunes), Coimbra: Coimbra Ed., 2014, p. 1117, p. 1115-1144.

[11] Arendt, Hannah. A condição humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 83.

[12] Grimm, Dieter. Constitucionalimo y derechos fundamentales. Tradução de Raúl Sanz Burgos. Madri: Ed. Trotta, 2006. p. 161.

[13] Idem, p. 162.

[14] Grimm, Dieter. Constitucionalimo y derechos fundamentales. Tradução de Raúl Sanz Burgos. Madri: Ed. Trotta, 2006. p. 164

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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