Direito Civil Atual

Internet das coisas pode propiciar benefícios e riscos para os consumidores

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28 de fevereiro de 2022, 12h12

A conexão entre os indivíduos foi engendrada progressivamente nas etapas históricas vivenciadas na seara tecnológica e alavancou-se com a internet, que transformou as comunicações, atribuindo-lhes contornos outrora inimagináveis. Com o evolver das pesquisas científicas, tornou-se também possível a interligação de itens ao sistema informatizado e o seu funcionamento inteligente, ou seja, independentemente da intervenção humana, eis que surge a intitulada internet of things (IoT). A inteligência artificial e o uso de sensores, nas mais diversas coisas inventadas, tornaram-nas capazes de captar ocorrências, do mundo real, e enviar os respectivos dados e informações às plataformas, originando uma rede de smart objects. Nesse novo cenário, uma multiplicidade de utilidades e de questionamentos vão emergindo e colocam a temática entre as relevantes e prementes da contemporaneidade, aguçando os estudos de variadas áreas.

ConJur
Estimativas apontam que, em 2025, aproximadamente cem bilhões de dispositivos estarão conectados o que corresponde 6,58 por pessoa , causando um impacto econômico global de mais de US$ 11 trilhões [1]. A célere evolução da internet das coisas conduziu Jaremy Rifkin a prever que, até 2030, o mundo alcançará um montante de cem trilhões de dispositivos conectados e, nos países mais desenvolvidos, poder-se-á ultrapassar a quantidade per capta de cinco mil [2]. A proeminência econômica do novel ramo tecnológico, para o Brasil, foi destacada pela empresa Cisco, segundo a qual a in­ternet das coisas "pode adicionar 352 bilhões de dólares à economia brasileira até o final de 2022". Em 2025, inovações, baseadas em IoT, podem adicionar R$ 122 bilhões ao PIB do país, tornando possível atingir-se entre 50 a 200 bilhões de dólares [3].

A expressão internet of things, ou IoT, foi cunhada, em 1999, por Kevin Ashton, pesquisador do Massachusetts Institute of Technology, após a concretização de um projeto contratado pela Procter & Gamble (P&G)[4]. O cientista propôs a utilização de etiquetas de radio-frequency identification (RFID) em diversos objetos, possibilitando que fossem reconhecidos e rastreados automaticamente, para fins de suprimentos quando necessários. As informações eram armazenadas eletronicamente e a cadeia de abastecimento da mencionada empresa seria realizada independentemente da intervenção humana. No entanto, questionava Ashton que "a tecnologia da informação de hoje é tão dependente dos dados originados pelas pessoas que nossos computadores sabem mais sobre ideias do que coisas" [5]. Ele propugnava que estes "compreendessem o mundo" sem qualquer dependência, "sentido e agindo com tudo ao seu redor" [6].

A "alta tecnologia", ou "tecno­logia de ponta", proporcionou uma série de inovações e a internet das coisas encontra-se no rol das utilizações criativas da rede. Denominada também de web of things, comunicação machine-to-machine, internet física e computação ubíqua [7], a União Internacional de Telecomunicações a conceitua como uma infraestrutura global, para a sociedade da informação, que "habilita serviços avançados por meio da interconexão entre coisas (físicas e virtuais), com base nas tecnologias de informação e comunicação (TIC)" [8]. No Brasil, o Decreto Federal nº 9.854/19 instituiu o Plano Nacional de Internet das Coisas e criou a Câmara de Gestão e Acompanhamento do Desenvolvimento de Sistemas de Comunicação Máquina a Máquina. Eduardo Magrani ressalta que existem "fortes divergências em relação ao conceito", inexistindo um cenário "pa­cífico ou unânime", porém, de forma geral, afirma que pode ser compreendido como um ambiente de objetos físicos interconectados com a internet, através de sensores pequenos e embutidos [9].

As consequências positivas decorrentes da criação e do desenvolvimento da internet das coisas podem ser visualizadas tanto no âmbito coletivo, quanto individual, englobando os diversos setores das atividades humanas. Quanto aos benefícios para a sociedade em geral, existem resultados comprovados nos campos da saúde humana, ambiental, agricultura, pecuária, alimentação, segurança, organização das cidades, dos serviços públicos e do trânsito. Na esfera individual, identifica-se a presença de vantagens interligadas com a construção, a estrutura imobiliária e habitacional, os veículos, assim como uma variedade de aparelhos eletrônicos e eletrodomésticos [10]. Entretanto, os prementes desafios e as principais questões polêmicas, interligados com as tecnologias da IoT, foram descritos, pela Internet Society, em Relatório, datado de 2015, no bojo do qual foram registrados cinco importantes aspectos que devem ser enfrentados por todos os envolvidos na produção e pelos usários: 1) segurança; 2) privacidade; 3) interoperabilidade e padrões; 4) questões legais, regulatórias e de di­eitos; e 5) questões das economias emergentes e em desenvolvimento [11].

A suscetibilidade de objetos, vinculados à internet of things, a problemas de segurança e de condutas ilícitas por parte dos hackers, conforme Scott R. Peppet associa-se a três fatores que versam sobre questões técnicas, de dimensão e de atualização. O primeiro diz respeito ao fato de que parcela razoável das empresas, que lidam com a IoT, não possui conhecimento e habilitação para a criação de softwares e hardwares de nível satisfatório. O segundo concerne ao tamanho compacto de muitos itens situação que, em regra, obstaculiza uma razoável capacidade para o armazenamento e o pro­cessamento seguro de dados. O terceiro refere-se à constatação de que a maioria destes objetos não é criada com a intenção de atualização constante e progressiva, não sendo aperfeiçoados os sistemas de resguardo das informações [12].

Nas fases de utilização da tecnologia associada à internet of things, que envolvem a coleta, o processamento e a disseminação dos dados, Jan Ziegeldorf, Oscar Morchon e Klaus Wehrle detectaram quatro principais perigos para a privacidade dos usuários [13]. O primeiro é a "identificação", o segundo consiste no "rastreamento"; o terceiro refere-se ao profiling; e o quarto relaciona-se com o "controle do lifecycle" do bem. Podem ser criados verdadeiros dossiês contendo múltiplas informações sobre o sujeito, com o desiderato de realizar associações com outras obtidas pela rede, e disseminá-las para pessoas não autorizados (shoulder surfing). O risco de criação de perfis pessoais, por intermédio de impressão digital em sistemas de radiofrequência (RFID), foi objeto de registro por parte de Radomirovic [14] e Van Deursen [15] e muitas empresas utilizam-se de tal expediente para a criação de uma mídia programática (behavioral retargeting). A inexistência de barreira para a leitura das tags e a fragilidade destas são apontadas por Carlos M. Medaglia e Alexandru Serbanat [16].

O apego exacerbado à rede informatizada e às novidades tecnológicas tem levado muitos seres humanos a se transformarem em "escravos da tecnologia" denuncia Jenny Judge[17] e a contribuírem com o polêmico panorama da desumanização das relações de consumo. A internet das coisas e os seus efeitos negativos podem intensificar este preocupante quadro diante de cinco questões polêmicas, quais sejam: 1) the internet of everything (IoE); 2) of useless things ou of dumb things; 3) intelligent things (IoIT); 4) a obsolescência programada; e 5) a "negação do serviço". As duas primeiras se entrelaçam dada a criação desmedida e, muitas vezes, desnecessária de itens hiperconectados, originando o que se denomina de internet de todas as coisas ou internet de tudo (IoE) 18]. Para Ralph Crouan, vários objetos são inúteis, não trazem verdadeiras novidades ou resultados positivos para a sociedade, além de serem encarecidos [19]. A terceira significa, nas palavras de Karen Rose, Scott Eldridge e Lyman Chapin, que, cada vez mais, os dispositivos apresentam uma interface que não depende de inputs dos usuários, progredindo, mas, pari passu, a política de dados denota-se menos acessível [20]. O descarte de produtos, que não possuem utilidade ou que deixam de funcionar em curto espaço temporal, é extremamente preocupante para os recursos naturais explorados irresponsavelmente [21].

O incessante processamento de dados dos usuários da internet das coisas, para Philip Howard, dará origem às "sociotecnocracias" ou pax technica, eis que os sistemas de governo soberanos serão marcados pelos intensivos informes referentes aos comportamentos, hábitos e crenças dos seres humanos [22]. Na visão crítica de Jenny Judge e Julia Powles, "é apenas mais uma des­culpa para o consumismo desenfreado, cuja única contribuição será a de obstruir os porões com mais lixo desnecessário". Outrossim, objetos domésticos diários "serão transformados em espiões inimigos, colocando-nos sob vigilância constante" [23] e vociferam que "precisamos parar de nos obcecar com objetos 'inteligentes' e começar a pensar com inteligência sobre as pessoas". Propõem uma internet "não de coisas inteligentes, mas de pessoas inteligentes e capacita­das" [24]. Os desafios estão postos e aguardam respostas satisfatórias para a proteção e a defesa dos direitos dos consumidores.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFam).

 


[1] ROSE, Karen; ELDRIDGE, Scott; CHAPIN, Lyman. The internet of things: an overview – understanding the issues and challenges of a more connected world. The internet Society, Geneva, Switzerland, p. 1-80, out. 2015. 4

[2] RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero: a internet das coisas, os bens comuns colaborativos e o eclipse do capitalismo. São Paulo: M. Books do Brasil, 2016, p. 10.

[3] DREHER, Felipe. IoT pode agregar US$ 352 bilhões à economia brasileira até 2022. Computer World, jun. 2015.

[4] ASHTON, Kevin. The 'internet of things’ thing: In the real world, things matter more than ideas. RFID Journal, 22 jun. 2009. Disponível em: https://www.rfidjournal.com/articles/view?4986. Acesso em: 25 fev. 2021.

[5] ASHTON, Kevin. The 'internet of things’ thing: In the real world, things matter more than ideas. RFID Journal, 22 jun. 2009.

[6] ASHTON, Kevin., op. cit.

[7] ROSE, Karen; ELDRIDGE, Scott; CHAPIN, Lyman. The internet of things: an overview – understanding the issues and challenges of a more connected world. The internet Society, Geneva, Switzerland, p. 1-80, out. 2015. p. 12.

[9] MAGRANI, Eduardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018, p. 20.

[10] ROSE, Karen; ELDRIDGE, Scott; CHAPIN, Lyman., op. cit., p. 1.

[11] ROSE, Karen; ELDRIDGE, Scott; CHAPIN, Lyman. The internet of things: an overview – understanding the issues and challenges of a more connected world. The internet Society, Geneva, Switzerland, p. 1-80, out. 2015, p. 12.

[12] PEPPET, Scott R. Regulating the internet of things: first steps toward managing dis­crimination, privacy, security, and consent. Texas Law Review, v. 93, p. 117-120, 2014.

[13] ZIEGELDORF, Jan; MORCHON, Oscar. WEHRLE, Klaus. Privacy in the internet of things: threats and challenges. Security and Communication Networks, v. 7, n. 12, p. 2728-2742, 2013.

[14] RADOMIROVIC, Saša. Towards a model for security and privacy in the internet of things. In: International Workshop on the Security of the internet of Things, I, Tóquio: Keyo University, 2010.

[15] VAN DEURSEN, Ton. 50 ways to break RFID privacy: privacy and identity mana­gement for life. IFIP Advances in Information and Communication Technology, v. 352, p. 192-205, 2011.

[16] MEDAGLIA, Carlo Maria; SERBANATI, Alexandru. An overview of pri­vacy and security issues in the internet of things. XX Workshop de Co­municações Digitais, Nova York, 2010.

[17] JUDGE, Jenny. Are we liberated by tech – or does it enslave us? The Guardian, 9 dez. 2015.

[18] BAJARIN, Tim. The next big thing for tech: the internet of everything. Time, jan. 2014. WEISSBERGER, Alan. Are the internet of things (IoT) & internet of everything (IoE) the same thing? Viodi, maio 2014.

[19] CROUAN, Raph. Corporates must help stop us creating an internet of useless things. New Statesman, jun. 2016, p. 138.

[20] ROSE, Karen; ELDRIDGE, Scott; CHAPIN, Lyman. The internet of things: an overview – understanding the issues and challenges of a more connected world. The internet Society, Geneva, Switzerland, p. 1-80, out. 2015, p. 14.

[21] HOWER, Mike. As "internet of things" grows, so do e-waste concerns. Sustainable Brands, 29 dez. 2014.

[22] HOWARD, Philip. Pax technica. New Haven: Yale University Press, 2015, p. 59-62.

[23] POWLES, Julia; JUDGE, Jenny. internet das coisas ou das pessoas? Trad. Rafael A. F. Zanatta. Outras Palavras, 27 maio 2016.

[24] POWLES, Julia; JUDGE, Jenny., op. cit.

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