Questão de Gênero

Lei Mariana Ferrer: limite à ampla defesa?

Autores

  • Patricia Burin

    é delegada de polícia no estado de Santa Catarina mestra em Direito Constitucional e pós-graduada em Segurança Pública e Criminologia.

  • Fernanda Moretzsohn

    é delegada de polícia no estado do Paraná pós-graduada em Direito Público e pós-graduanda em Direito LGBTQ+.

  • Eduardo Herculano

    é advogado procurador da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (Aacrimesc) e membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abacrim).

25 de fevereiro de 2022, 8h00

Foi intensamente noticiada a conclusão do julgamento do jogador Robinho pela instância recursal máxima da Itália, no qual ele foi condenado por manter relação sexual com uma mulher embriagada em uma casa noturna [1]. Foi veiculada também a informação de que o último recurso teve como um fundamento a suposta restrição ao direito de defesa, na medida em que a instância anterior não teria admitido como prova um dossiê apresentado pelos réus [2]. O dossiê conteria cerca de 40 fotos da vítima, retiradas de suas redes sociais, que a retratariam ingerindo bebidas alcoólicas.

Spacca
As fotos, que tinham a intenção de desqualificar a vítima, foram consideradas irrelevantes pelas cortes italianas, o que nos traz à lembrança a recente Lei nº 14.245, editada no final de 2021 (conhecida como Lei Mariana Ferrer).

Como já tivemos oportunidade de observar [3], a lei operou mudanças em normas processuais com vistas a coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima [4] e de testemunhas na persecução penal dos crimes sexuais. Estabeleceu-se, como regra de conduta processual, que todas as partes e os demais sujeitos processuais presentes em audiência deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa de quem assim não agir. Incumbiu-se à magistratura o dever de garantir o cumprimento desse mandamento, sendo vedada a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objetos de apuração nos autos, bem como a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas (exatamente o que se pretendia fazer no caso italiano).

A norma, em termos de proteção à dignidade da mulher no curso do processo, representa um grande avanço. Mas força levantar um questionamento. A lei cria discussões que nem sequer podem ser suscitadas no processo (como o comportamento social da vítima), ao passo em que a Constituição Federal garante a todos a ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes (artigo 5º, LV). E o garante a título de direito fundamental.

Spacca
Em que medida, então, seria (in)constitucional que a legislação pátria limitasse o direito de defesa? Este artigo pretende discutir este tema e, para o fazer, abrimos a palavra à defesa, na expectativa de um contraponto à nossa visão de delegadas de polícia. Para nossa surpresa, numa visão desapaixonada acerca da defesa do direito de defesa [5], o coautor deste texto, Eduardo Herculano, imediatamente ponderou ser vital que o processo penal contemple garantias fundamentais para todos que estejam envolvidos na persecução penal, independentemente do polo processual que estejam ocupando, seja vítima (evitando vitimização secundária), seja réu, nos alertando para a necessidade de um processo penal legal, instrumental e de garantias.

Sabe-se que o processo criminal é um instrumento de garantia do cidadão contra abusos do Estado. E parece claro o desconforto daqueles que trabalham com o direito de defesa ao se depararem com sua possível mitigação. Mas não se podem hierarquizar violências. Se, por um lado, há direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, há, do outro, o direito à dignidade.

No atual estágio do constitucionalismo, a dignidade da pessoa humana é o núcleo das constituições, seu valor supremo, sendo admissível pensar que seria ela a prevalecer no conflito entre os dois princípios. Mas a questão não é assim tão simples. Primeiro porque nenhuma ponderação pode ser feita em abstrato. Segundo porque o contraditório e a ampla defesa são garantias civilizatórias.

A questão é que, embora a Constituição Federal preconize um modelo garantista de processo penal, o que se espera é o garantismo integral, que não olhe exclusivamente para a vítima e para a sociedade, nem tampouco hiperbolicamente para o réu. Os direitos e garantias fundamentais não gozam de caráter absoluto, podendo o interesse público motivar, ainda que excepcionalmente, a restrição de liberdades. Há de se buscar equilíbrio.

A rigor, nosso ordenamento jurídico já conhece limitações ao direito de defesa. Na ADPF nº 779, o Supremo Tribunal Federal concedeu medida cautelar para firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (artigo 5º, caput, da CF). A liminar obsta à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento [6].

Força, então, convir que a Lei Mariana Ferrer é compatível com os preceitos da Constituição Federal, a despeito de estabelecer uma ponderação prima facie entre o direito de defesa e a dignidade das vítimas de crimes sexuais.

A norma, entretanto, não é imune a críticas.

O atual cenário de política criminal caminha de mãos dadas com o que vem sendo denominado Estado pós-democrático [7]. O Direito, em grande medida, perdeu o caráter normativo e os agentes sociais articulam políticas criminais movidos pelo senso comum e pela repercussão midiática. O Direito Penal de urgência é imediatista [8] e tem feições apenas simbólicas [9] que, no longo prazo, lhe retiram credibilidade e, consequentemente, força. A Lei Mariana Ferrer é reação legislativa à divulgação de uma audiência de instrução e julgamento de uma suposta violência sexual que foi amplamente divulgada na mídia, em que a comunicante foi seriamente interpelada e até mesmo humilhada pelos atores da persecução penal.

Sem sombra de dúvidas, algo precisa(va) ser feito em relação a casos como o ocorrido, de ofensa gritante à dignidade das partes. Entrementes, quando se fala em reforma — expansão penal (principalmente parciais), deve-se analisar o núcleo do problema, sob pena de tudo continuar como está — simbólico, acomodando um atalho legislativo em face da pressão de ocasião, sem considerar, principalmente, os elementos nucleares das normas penais. Além disso, a lei permite, perigosamente, espaços para discricionariedade, à luz de elementos nucleares de difícil equação. Pode-se mencionar, nesse contexto, a categorização de "fato ofensivo a dignidade da vítima ou testemunha" [10].

De qualquer forma, a discussão é pertinente e necessária, tendo a Lei Mariana Ferrer a qualidade de transformar o descumprimento do dever de urbanidade em conduta punível civil, penal e administrativamente. Triste que o sistema tenha sentido necessidade de criar uma norma ordenando que se respeitem as vítimas, especialmente em casos tão delicados como os relacionados à persecução penal de crimes sexuais.

Por fim, vale alertar que embora a lei nada mencione, é evidente que as regras de conduta processual nela veiculadas são aplicáveis a toda a persecução penal, devendo a autoridade policial zelar pela dignidade da vítima e das testemunhas desde a fase investigatória. A despeito de a lei não ter previsto as referidas regras de conduta para a fase pré processual, até por uma questão de respeito à dignidade, deve a autoridade policial, desde o início, adotar as cautelas previstas para a fase processual, obviamente, com as devidas adequações.

O que se espera é que a vítima, no momento em que está mais fragilizada, qual seja, logo após o crime, aquele em que ela está ainda mais vulnerável, tenha sua dignidade preservada. Assim, o delegado ou a delegada de polícia devem, como primeiro garantidor dos direitos fundamentais que é, zelar pelo respeitos aos preceitos previstos no artigo 400-A do CPP, atendo-se aos fatos criminosos, e não à vida pretérita e pessoal da vítima.

 


[1] O que, em nosso ordenamento, configuraria o crime de estupro de vulnerável. Conferir de nossa autoria, o artigo disponível em https://www.conjur.com.br/2021-out-08/questao-genero-embriaguez-causa-vulnerabilidade-vitima-estupro.

[4] Predominantemente mulheres e meninas.

[5] Valle, Juliano Keller, 1973. A defesa do Direito de Defesa: Uma percepção garantista. 1ª ed. — Florianópolis: Habistus, 2017.

[7] CASARA, Rubens. O Estado Pós Democrático: neo-obscurantismo. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.

[8] Como alerta Ferrajoli.

[9] Este termo é usado para caracterizar dispositivos penais "que não geram, primariamente, efeitos protetivos concretos, mas que devem servir à manifestação de grupos políticos ou ideológicos através de declaração de determinados valores ou repúdio a atitudes consideradas lesivas. Comumente, não se almeja mais do que acalmar os eleitores". ROXIN, Claus. Estudos do Direito Penal. Tradução Luis Greco. Rio de Janeiro; São Paulo; Recife: REVOVAR, 2006, P47.

[10] Vale aqui a transcrição do alerta feito por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: "Joga-se novamente tudo para linguagem e sua forma criativa, reinventando o lugar da palavra, que não raras vezes, poderá macular a subversão que o desejo impõe, marcando a disputa entre o princípio do prazer e da razão, uma vez que é o interprete que dá voz a norma". COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e psicanálise: Interlocuções a partir da literatura. 1ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 23.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!