Opinião

Dosimetria da pena e bem jurídico: um debate necessário

Autores

  • Eugênio José Guilherme de Aragão

    é ex-ministro da Justiça e sócio fundador do escritório Aragão e Ferraro Advogados.

  • Carolina Costa Ferreira

    é doutora em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) professora do programa de pós-graduação em Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e da graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília (Ceub) e advogada do Aragão e Ferraro Advogados.

22 de fevereiro de 2022, 15h06

A fundamentação de decisões judiciais parece ser uma das questões mais importantes das ciências criminais. Mario Pisani [1] nos lembra que, em 23 de setembro de 1774, a "pragmática" por meio da qual Fernando IV de Bourbon pretendia reformar a administração da Justiça e uma das principais medidas era superar a "pura autoridade dos doutores", para que decisões fundamentadas pudessem ser conhecidas por todos. É corolário de um Estado democrático de Direito que, em observância ao devido processo penal, na expressão já clássica do professor Antonio Scarance Fernandes [2], as decisões judiciais sejam plenamente fundamentadas, como também estabelece o artigo 93, inciso IX, da Constituição [3]. Porém, a complexidade da administração da Justiça no Brasil, a organização do Poder Judiciário e a extrema atenção voltada ao sistema de Justiça Criminal fazem com que as decisões em matéria penal sejam objeto de leis, estudos e, naturalmente, ainda mais decisões judiciais.

No processo penal, para além da definição sobre a fundamentação das decisões judiciais indicada na Constituição, o CPP estabelece, em seu artigo 315, que a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre "motivada e fundamentada", indicando, em seus parágrafos a necessidade de definição concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem tanto medidas cautelares anteriores e alternativas à prisão preventiva quanto a prisão preventiva. A redação do §2º do mesmo artigo ainda cuida em dizer o que não se pode considerar decisão fundamentada: mera indicação de ato normativo, sem a sua devida exegese; o emprego de conceitos jurídicos indeterminados, sem justificativa fática ou jurídica para eles (como, no caso da prisão preventiva, a famigerada "garantia da ordem pública", muito utilizada para expressar insatisfações pessoais ou reproduzir estereótipos na aplicação da lei penal [4]); invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; não enfrentar todos os argumentos indicados no processo para fundamentar seu entendimento e finalmente, deixar de seguir súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento [5]. Parece desnecessário que tenhamos explicações tão taxativas na legislação a respeito do que constitui ou não uma decisão fundamentada, mas a prática penal cotidiana, infelizmente, nos indica o oposto: é necessário que tenhamos critérios cada vez mais objetivos para a definição de padrões decisórios adequados a um Estado democrático de Direito.

No caso das sentenças penais, tal adequação é ainda mais importante: trata-se da decisão, o ato jurídico, o texto narrativo [6] no qual se encontram diferentes concepções sobre comportamentos individuais que mereçam uma resposta do sistema de Justiça Criminal. De forma ainda mais específica, o Código de Processo Penal determina que as sentenças sejam compostas por relatório, fundamentação e parte dispositiva, sob pena de nulidade. Em relação mais específica à responsabilização penal, a dosimetria da pena em sua modalidade trifásica, na forma dos artigos 59 e seguintes do Código Penal, delega a juízes e juízas a tarefa de organizarem circunstâncias judiciais muito diversas como 'personalidade" ou "motivos do crime" de forma objetiva. Para auxiliar magistradas e magistrados de todo o Brasil nesta tão importante tarefa, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) publicou, em 2018, o "Manual de Decisões Penais", com check-lists para as principais decisões em matéria penal. Sobre a dosimetria da pena em sentenças penais, o manual indica que a sentença é "o momento mais importante da atividade judicial", e que "os tribunais superiores exercem um controle cada vez mais rigoroso sobre as escolhas feitas pelos juízes e tribunais de origem, que devem explicitar as razões que os levaram a fazer suas escolhas sobre as espécies e as quantidades das sanções cominadas para o comportamento delitivo apurado na ação penal" (p. 23).

Quando se observa a jurisprudência do STJ a respeito da dosimetria da pena, destacamos um entendimento peculiar, que tem sido acompanhado por muitos Tribunais de Justiça estaduais e Tribunais Regionais Federais: na hipótese da imposição da causa de aumento em relação ao concurso de crimes, prevista no artigo 70 do Código Penal, seria possível a imposição da causa de aumento à metade caso a pessoa processada tenha cometido por "seis ou mais vezes" a mesma conduta [7].

Tal entendimento é válido, sem dúvida alguma, pois tenta estabelecer um critério minimamente objetivo a uma questão prática. No entanto, a discussão que propomos, aqui, é a necessidade de articulação da necessidade de construção de critérios para a decisão judicial — questão tão discutida sob o ponto de vista da Sociologia do Direito, da Filosofia do Direito e, no campo das ciências criminais, tanto pela Política Criminal [8] quanto pelo Processo Penal —, mas, sobretudo, a importância da correlação desses critérios à dimensão do bem jurídico-penal violado e, em tese, protegido pela imposição da sanção criminal.

Tatiana Badaró [9] explica que a origem da noção de bem jurídico-penal coincide com a derrocada do Ancién Regime e o surgimento do Estado de Direito. Assim, a primeira dimensão para a conceituação de bem jurídico dialoga com a noção de danosidade social, "oriunda da substituição da ordem divina pela ordem humana como referência para a identificação do fato delituoso" (Badaró, 2017, p. 26). Após os primeiros delineamentos, Birnbaum, em 1834, define crime, pela primeira vez, como uma ofensa a bens, e não a direitos, indicando uma dimensão material importante; o debate se desenvolve com Birnbaum e Feuerbach, no sentido de se considerar o perigo de lesão como elemento do bem jurídico, ou seja: é necessário haver o risco da perda de algo ou a privação de um bem para que o Direito Penal possa atuar. Para Feuerbach, há a necessidade de ampliação do direito subjetivo, com o uso do Direito Penal para esferas de proteção que se refiram à lesão ou à ameaça de lesão; nesse sentido, haveria a necessidade de diferenciação (legislativa) entre as sanções para a consumação e a tentativa de violação a bens jurídicos, o que implicaria, aqui, na aplicação da proporcionalidade na esfera da criminalização primária.

Avançando à análise sobre a proteção aos bens jurídicos, segundo Manuel da Costa Andrade e Jorge de Figueiredo Dias, Binding foi o primeiro a utilizar o termo "bem jurídico" (Rechstgut). O crime necessitaria da legalidade para conferir segurança jurídica à atuação do Estado — e, nesse sentido, critérios para a atuação do Direito Penal precisariam ser desenvolvidos e aplicados. Na lição de Franz von Liszt, bem jurídico é o "interesse juridicamente protegido" [10]. Tal formulação teórica é muito importante para refletirmos tanto sobre a noção de "interesse" — o que, no campo da política criminal, permite-nos interpretações tanto no sentido da criminalização quanto da descriminalização de determinadas condutas — quanto sobre como protegemos aqueles elementos que são considerados centrais no controle penal.

Reflexões em torno da definição de bem jurídico são o ponto de partida para a análise da necessidade de acionamento ou não do sistema de Justiça Criminal, até mesmo para a definição da atipicidade da conduta, como na aplicação do princípio da insignificância. A relevância do bem jurídico pode nos remeter à necessidade de definição legal das penas, bem como a discussão sobre o uso do princípio da proporcionalidade em matéria penal [11], tanto nos processos de criminalização primária quanto secundária. Assim, o momento da dosimetria assume especial relevância, já que se trata do momento em que o Estado, representado pelo sistema de Justiça Criminal, expõe à sociedade o fruto de suas reflexões. Por essa razão, o já mencionado manual da Enfam recomenda que, para a definição da dosimetria, "deve-se guiar pelo princípio da proporcionalidade para determinar tais acréscimos e reduções de pena" (p. 24).

Em relação ao concurso de crimes, no precedente do STJ acima mencionado, o caso menciona a prática de mais de nove crimes de roubo — crime contra o patrimônio particular, com o emprego de violência ou grave ameaça. No entanto, não é difícil encontrar o uso dessa mesma decisão como precedente em relação a bens jurídicos totalmente distintos, como a Administração Pública, o meio ambiente ou a ordem econômica. Importante pensar que o bem jurídico tutelado, em cada uma dessas situações, é distinto, provocando diversas formas de se pensar a respeito da necessidade e da proporcionalidade de imposição de pena. Além disso, há nítido risco de se atribuir maior reprimenda por meio dessa causa de aumento de pena em casos em que os elementos normativos do tipo já foram medidos por meio da proporcionalidade legislativa. O mesmo STJ tem jurisprudência consolidada no sentido de que "elementos inerentes à própria configuração do delito não podem ser considerados para a exasperação da pena-base" (HC 185.633/ES, relatora ministra Laurita Vaz, 5ª Turma, julgado em 21/6/2012, DJe 28/6/2012).

Para que tais distorções não ocorram, é fundamental compreender como e em que sentido a dimensão de bem jurídico é observada na dosimetria da pena. A indicação mínima do objeto jurídico é premissa, mas certamente não esgota a dimensão de proteção do bem jurídico. Como nos provoca Winfried Hassemer, não há nada de "simbólico" na aplicação do Direito Penal que resulta em prisões preventivas, penas pecuniárias ou medidas cautelares impostas exageradamente [12]. E, exatamente em razão da urgência provocada pelo sistema penal, se a própria magistratura reconhece ser a elaboração da sentença penal o coração de sua atividade, a atuação judicial precisa ser fundada em princípios, de forma proporcional e socialmente responsáveis.

 


[1] PISANI, Mario. Notas para a história da motivação no processo penal. Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, n. 1, p. 67-72.

[2] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

[3] "Artigo 93, IX – IX — Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação".

[4] Sobre o conceito de ordem pública, cf. ZACKSESKI, Cristina; GOMES, Patrick Mariano. O que é ordem pública no sistema de justiça criminal brasileiro? Revista Brasileira de Segurança Pública. Disponível em: https://revista.forumseguranca.org.br/index.php/rbsp/article/view/595 Acesso em 9 fev. 2022.

[5] O TJ-SP é bastante conhecido por não seguir súmulas e precedentes de Tribunais Superiores, o que já foi tema deste Conjur: https://www.conjur.com.br/2020-ago-04/ministros-stj-criticam-desobediencia-jurisprudencia-criminal

[6] Na expressão de Carlos María Cárcova, a sentença é a reconstrução de uma narrativa baseada em duas versões, de diferentes pontos de vista, e "vence" quem oferece a versão mais sedutora, lógica ou completa à magistratura. Assim, associando Direito e Literatura, a decisão judicial é uma reescrita, uma reinterpretação, em que fatos e fundamentos jurídicos são diversamente associados.

[7] Um exemplo do uso deste entendimento é o Habeas Corpus nº 159.599/RJ: "[…] ROUBO. CONCURSO FORMAL. CAUSA DE AUMENTO. CRITÉRIO NUMÉRICO. SEIS DELITOS. EXASPERAÇÃO FIXADA DE 1/2 (METADE). AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE.
1. Esta Corte Superior possui o entendimento de que a exasperação da pena, que pode variar de 1/6 (um sexto) a 1/2 (metade), para os crimes cometidos em concurso formal, deve ser aplicada de acordo com o número de delitos cometidos. 2. No caso dos autos, cometidos seis crimes de roubo agravado em concurso formal, não configura ilegalidade a fixação de aumento de pena no percentual de 1/2 (metade), por força do art. 70 do CP. 3. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa extensão, denegada a ordem" (HC 159.599/RJ, rel. ministro JORGE MUSSI, 5ª TURMA, julgado em 27/3/2012, DJe 17/4/2012).

[8] Nesse texto, utilizamos a ideia do Professor Nilo Batista, no sentido de que a Política Criminal é um conjunto de princípios e recomendações que informam a política legislativa, judiciária, de segurança pública e penitenciária no Brasil, em seus diversos e complexos níveis (BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 34).

[9] BADARÓ, Tatiana. Bem jurídico penal supraindividual. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.

[10] LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Allemão. Trad. José Hygino Duarte. Brasília: Senado Federal, 2006. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bd000147.pdf Acesso em 10/2/2022.

[11] Segundo Paulo Queiroz (2013, p. 88), "o princípio da proporcionalidade em sentido estrito tem uma tríplice dimensão: (1) proporcionalidade abstrata (ou legislativa), que ocorre quando se tem que eleger as sanções (penas e medidas de segurança) mais apropriadas (seleção qualitativa), bem assim ao estabelecer a graduação (mínimo e máximo) dos castigos (seleção quantitativa); (2) proporcionalidade concreta ou judicial (ou individualização), que deve orientar o juiz quando do julgamento da ação penal, promovendo a individualização da pena conforme a culpabilidade do réu, aferida segundo as circunstâncias jurídico-penalmente relevantes, podendo chegar em alguns casos à absolvição mesma, se se entender, por exemplo, pela aplicação do perdão judicial ou do princípio da insignificância; (3) proporcionalidade executória, que corresponde à individualização da pena durante a execução penal, conforme o mérito do condenado, progredindo de regime, obtendo livramento condicional, indulto ou eventualmente regredindo de regime etc. O princípio, portanto, tem tríplice destinatário: o legislador, o juiz e os órgãos da execução penal".

[12] HASSEMER, Winfried. Direito Penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 209.

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