Opinião

A Defensoria Pública e o direito constitucional de compor os tribunais

Autor

  • Rodrigo Casimiro Reis

    é defensor público do estado do Maranhão assessor de ministra do Superior Tribunal de Justiça membro da Comissão Criminal do Condege e especialista em Direito Constitucional.

19 de fevereiro de 2022, 6h34

A Defensoria Pública (que adota, em muitas situações, postura contramajoritária) resiste a questionamentos jurídicos (vale lembrar a ADI 3.943 [1]  em que se discutiu a legitimidade da Defensoria para propor ações coletivas , a ADI 5.296 [2]  em que se impugnou a autonomia concedida pela EC n. 74/13 à DPU e à Defensoria Pública do DF — e, mais recentemente, a ADI 6.852 [3]  em que a PGR questiona a prerrogativa de requisição defensorial, ação que estava pendente de conclusão de julgamento quando da confecção deste artigo), revelando que a instituição, mesmo convivendo com cortes orçamentários [4] e posicionando-se na defesa de temas que nem sempre agradam à maioria de ocasião, avança paulatinamente, com respaldo em sua autonomia administrativa e financeira, com o objetivo de assegurar a tutela jurídica individual e coletiva dos mais necessitados, exercendo gradualmente sua função de provedora de justiça [5].

Raul Seixas já recomendava: "Não diga que a vitória está perdida, se é de batalhas que se vive a vida, tente outra vez" [6]. Essa parece ser a tônica que impulsiona a atuação da Defensoria Pública.

Em um Estado como o brasileiro, em que há violação massiva de direitos fundamentais de grande parcela da população, a Defensoria Pública é vocacionada constitucionalmente a garantir a assistência jurídica às pessoas e coletividades necessitadas (hipossuficientes e hipervulneráveis  indígenas, comunidades quilombolas, pessoas em situação de rua ou privadas de liberdade, mulheres vítimas de violência doméstica, entre outras), assegurando que a dignidade de expressiva soma de cidadãos seja efetivada por meio da educação em direitos, da resolução extrajudicial de conflitos e do acesso ao Poder Judiciário.

No que tange aos direitos humanos, o poder constituinte derivado reformador alçou a Defensoria Pública ao patamar de ente responsável pela sua promoção a nível nacional [7] (estando legitimada, inclusive, a acionar os sistemas internacionais de proteção [8]), instituição do sistema de Justiça que, por ser caracterizada pelo perfil de portas abertas, reúne condições para primeiro tomar conhecimento acerca de eventuais abusos e omissões estatais.

Não há, portanto, exagero em afirmar que os defensores públicos, primordialmente em um país como o Brasil, que é marcado pela corriqueira ineficiência do Estado em prestar serviços públicos essenciais de qualidade (relacionados à segurança, saúde, educação etc.), são os agentes do sistema de Justiça naturalmente incumbidos de fiscalizar a execução das políticas públicas, bem como materializar o Estado democrático de Direito.

O projeto constitucional desenhado pelo legislador para a Defensoria nos permite asseverar que a instituição defensorial: 1) materializa a face fraterna e solidária [9] da Carta Magna (garantindo, por meio da assistência jurídica gratuita, o tratamento desigual dos economicamente desiguais); e 2) irradia verdadeira função de anteparo erigido pelo poder constituinte em favor da população vulnerável, obstando que haja a perpetuação na violação de direitos fundamentais das atuais e futuras gerações e viabilizando, por consequência, o progressivo reconhecimento de novos direitos titularizados pelos assistidos.

Destaque-se que o princípio da fraternidade é mencionado no preâmbulo da Constituição da República e vem, paulatinamente, sendo invocado em precedentes da Suprema Corte [10]. Sobre o tema, confira-se lição do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, para quem "(…) a dignidade assume capacidade estruturadora da fraternidade e é por ela estruturada, seja na criação do direito objetivo, seja em função integrativa na hermenêutica constitucional" [11].

Fixadas essas breves premissas acerca da identidade normativa da Defensoria Pública, passo a tratar de questão que já merece destaque nessa caminhada da justa equiparação da instituição defensorial com o Ministério Público e com a advocacia, qual seja, o direito constitucional da Defensoria Pública de compor os Tribunais de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e o Superior Tribunal de Justiça por meio da alteração dos artigos 94, caput, e 104, parágrafo único, II, da Constituição da República, providência que, uma vez implementada, viabilizará que todas as funções essenciais à Justiça estejam devidamente representadas nos tribunais, propiciando, por conseguinte, uma maior democratização do processo hermenêutico e o incremento da pluralização do debate na fase de julgamento.

Referida pretensão decorre da própria simetria existente entre a Defensoria Pública e o Ministério Público, fato reconhecido pela ministra Rosa Weber em voto proferido nos autos da ADI nº 5.296 [12] (oportunidade em que o STF julgou improcedente ação direta que questionava a autonomia da DPU e da Defensoria Pública do Distrito Federal), trecho abaixo transcrito:

"Não bastasse, a particular arquitetura institucional introduzida pela Emenda Constitucional no 74/2013 encontra respaldo nas melhores práticas recomendadas pela comunidade jurídica internacional. (…)
Observo, ainda, que o artigo 127, §2º, da Constituição Federal assegura ao Ministério Público autonomia funcional e administrativa, e no §1º, aponta como princípios institucionais da instituição a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, que a Emenda Constitucional no 80, de 04.6.2014, ao incluir o §4º no artigo 134, também veio a consagrar como princípios institucionais da Defensoria Pública  a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. Densificado, assim, deontológica e axiologicamente, pelo Poder Constituinte Derivado o paralelismo entre as instituições essenciais à função jurisdicional do Estado que atuam na defesa da sociedade, sem desbordar do espírito do Constituinte de 1988".

No mesmo sentido, o ministro Alexandre de Moraes, em voto proferido na ADI nº 6.852, assevera com precisão que:

"Cabe ter presente, ainda, em contraponto ao argumento de desequilíbrio processual entre as partes, a circunstância de que o poder de requisição conferido à Defensoria Pública não diverge daquele atribuído ao Ministério Público pelo artigo 26 de sua respectiva Lei Orgânica Nacional (Lei 8.625 /1993).
O paralelismo deontológico e axiológico entre a Defensoria Pública e o Ministério Público foi muito bem ressaltado pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL na ADI 5296, no voto condutor da eminente relatora, a ministra ROSA WEBER, tendo-se em perspectiva a legitimidade ativa comum a ambas as instituições na proteção de grupos vulneráveis, por meio da ação civil pública; a autonomia que lhes é constitucionalmente assegurada, com competência para auto-organização, independência funcional e, inclusive, propositura de seu próprio orçamento; funções interligadas em prol dos interesses sociais e coletivos, bem como pelos direitos sociais e direitos humanos; além de semelhantes prerrogativas e garantias processuais, como prazo em dobro, intimação pessoal, entre outras".

Nesse ponto, convém refutar eventual argumento de que o acesso da Defensoria Pública à composição dos tribunais pode ocorrer por meio das seccionais e do Conselho Federal da OAB, já que a Suprema Corte, nos autos do RE nº 1.240.999 [13], concluiu julgamento (submetido ao rito da repercussão geral) e definiu, no Tema 1.074, que "é inconstitucional a exigência de inscrição do Defensor Público nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil".

O referido recurso contou com voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes (trecho abaixo transcrito), que, acompanhando o relator ministro Alexandre de Moraes, foi enfático ao reconhecer o quão diversos são as atribuições e os regramentos aplicáveis aos defensores públicos e aos advogados:

"A importância da Defensoria Pública para a consolidação da democracia e a realização da justiça social é inegável. (…)
Com o advento da Emenda Constitucional 80/2014, qualquer possibilidade de crise identitária foi sanada. A Defensoria Pública teve sua personalidade bem definida, com atribuições devidamente explicitadas, sem qualquer espaço para dúvidas ou ilações. (…)
Ocorre que a alteração constitucional de 2014, que modificou a disposição do Capítulo IV da Constituição Federal, eliminou residuais dúvidas em relação à natureza da atividade dos membros da Defensoria Pública. Tais membros definitivamente não se confundem com advogados privados ou públicos. (…)
A diferença entre a atuação de um advogado (particular) e a de um defensor público é clamorosa, perceptível inclusive antes do advento da EC 80/14. (…)".

Adotando raciocínio semelhante, transcrevo trecho do voto proferido pelo ministro Edson Fachin nos autos da ADI nº 6.852:

"Delineado o papel atribuído à Defensoria Pública pela Constituição Federal, resta evidente não se tratar de categoria equiparada à Advocacia, seja ela pública ou privada, estando, na realidade, mais próxima ao desenho institucional atribuído ao próprio Ministério Público. (…)
Ainda mais relevante que as diferenças exemplificativas citadas acima, entendo que a missão institucional da Defensoria Pública na promoção do amplo acesso à justiça e na redução das desigualdades, impede a aproximação pretendida pelo requerente com a Advocacia. Nesse sentido, assim como ocorre com o Ministério Público, igualmente legitimado para a proteção de grupos vulneráveis, os poderes previstos à Defensoria Pública, seja em sede constitucional – como a capacidade de se autogovernar  ou em âmbito infraconstitucional  como a prerrogativa questionada de requisição- foram atribuídos como instrumentos para a garantia do cumprimento de suas funções institucionais".

Dissertando sobre o tema da inconstitucionalidade material de dispositivos da Lei nº 8.906/94 que tratam da Defensoria Pública, Diogo Esteves e Franklyn Roger asseveram que [14]:

"Dessa forma, podemos concluir que todos os dispositivos da Lei nº 8.906/94 que pretendem assegurar aos advogados exclusividade para a postulação em juízo, que visam equiparar a atividade desenvolvida pela Defensoria Pública à atividade advocatícia e que ambicionam manter os Defensores Públicos subordinados à Ordem dos Advogados do Brasil padecem de manifesta inconstitucionalidade material, por violarem o artigo 134, §§2º e 3º da CRFB c/c artigo 2º da EC nº 69/2012 e por subverterem toda a sistemática normativa inerente às funções essenciais à justiça".

A Defensoria Pública, nos termos do artigo 134, §1º, da CF/88, deve ser regulamentada por meio de lei complementar (LC nº 80/94), norma com status diverso da que regula a advocacia (Lei ordinária nº 8.906/94) [15], fato que, por si só, já conduz, salvo melhor juízo, à inconstitucionalidade de qualquer dispositivo do Estatuto da Advocacia que disponha sobre a instituição defensorial.

Ademais, as referidas instituições, após a entrada em vigor da EC nº 80/14, foram alocadas em seções distintas no capítulo da Constituição que trata das funções essenciais à Justiça, tudo a demonstrar (de forma cabal) a desvinculação da Defensoria Pública do regime jurídico que regula a advocacia.

Feitas essas considerações, tem-se que o tema ora suscitado foi objeto, no ano de 2010, de proposta de emenda constitucional de iniciativa do então deputado federal Sérgio Carneiro (PT-BA). O texto da PEC nº 488/2010 propunha a alteração do artigo 94 da CF/88, a fim de que passasse a constar com a seguinte redação:

"Artigo 94  Um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios serão compostos de membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes".

A PEC, proposta antes mesmo da entrada em vigor da EC nº 80/2014 (que ampliou significativamente a missão constitucional da Defensoria), conta com a seguinte justificativa:

"A presente proposta de Emenda Constitucional tem como objetivo homenagear a nobre carreira dos Defensores Públicos. (…)
Entendemos, que essa nobre categoria dos Defensores Públicos devem ter acesso aos Tribunais Superiores através do Quinto Constitucional, previsto no artigo 94 de nossa Carta Maior, assim como já acontece com os membros do Ministério Público e Advogados".

A PEC nº 488/2010 terminou sendo apensada à PEC nº 128/2007, que, ao final, contou com parecer do relator na Comissão de Constituição e Justiça, que delegou o exame da matéria a comissão especial que deveria ser criada para tratar do tema [16]. Ocorre que, até o presente momento, não se tem notícia da efetiva instalação da referida comissão.

Ante o exposto, constata-se que o reconhecimento do direito constitucional da Defensoria Pública de compor os Tribunais de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e o Superior Tribunal de Justiça é questão que merece ser debatida em sede própria (Poder Legislativo) e que reflete o status constitucional de que já usufrui a instituição defensorial no cenário jurídico nacional.

 


[1] ADI 3943, relator (a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 07/05/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-154  DIVULG 05-08-2015  PUBLIC 06-08-2015 RTJ VOL-00236-01 PP-00009.

[2] ADI 5296, relator (a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 04/11/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-280  DIVULG 25-11-2020  PUBLIC 26-11-2020.

[3] Tribunal Pleno, relator ministro Edson Fachin.

[4] A Defensoria Pública da União, no início do ano de 2022, já se viu prejudicada com um corte de 60% nas despesas com pessoal no orçamento do ano corrente. Disponível em Disponível em: <https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/orcamento-da-dpu-tem-corte-de-60-em-despesa-de-pessoal> Acesso em 27 jan. 2022.

[5] ESTEVES, Diogo. SILVA, Franklin Roger Alves. Princípios institucionais da Defensoria Pública.
2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. P. 75.

[6] SEIXAS, Raul. In Novo Aeon. Rio de Janeiro, Phillips Records, 1975.

[7] Artigo 134, caput, da CF.

[8] Artigo 4º, III e VI, da LC nº 80/94.

[9] Artigo 3º, I, da CF/88.

[10] Ver ADI 4277, relator ministra Ayres Britto, Pleno, julgado em 5/5/2011; ADI 4388, relatora ministra Rosa Weber, Pleno, julgado em 03/03/2020.

[11] O Princípio Constitucional da Fraternidade: Seu Resgate no Sistema de Justiça. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019, p. 84.

[12] ADI 5296 MC, relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 18/05/2016, PUBLIC 11-11-2016.

[13] RE 1240999, relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 04/11/2021,  PUBLIC 17-12-2021.

[14] Op. cit. P. 134.

[15] Nesse sentido, confira-se julgado do STJ: AgInt no REsp 1719664/RO, relatora ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/06/2020, DJe 25/06/2020.

Autores

  • é defensor público do Estado do Maranhão, ex-analista judiciário do STJ, ex-assessor da Corregedoria Nacional de Justiça e especialista em Direito Constitucional.

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