Ambiente Jurídico

A declaração dos juízes sobre a justiça das águas (parte 2)

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12 de fevereiro de 2022, 8h00

Em 2018 realizou-se em Brasília o 7º Fórum Mundial da Água, organizado pelo Conselho Mundial da Água (1) e pelo governo brasileiro, pela primeira vez no Hemisfério Sul, com a participação de várias centenas de entidades e pessoas interessadas. Em paralelo, foi feito um encontro de juízes com o apoio do Programa Nacional das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) (2), Organização dos Estados Americanos (OEA), International Union for Conservation of Nature (IUCN) (3) e do Instituto Judicial Global para o Ambiente (4), com a participação de juízes e ministros de tribunais superiores de mais de cinquenta países. Em 21/3/2018 foi aprovada a Declaração de Brasília dos Juízes sobre a Justiça das Águas, estabelecendo dez princípios que descrevemos em artigos anteriores (5) (6).

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Vejamos no que consiste a Justiça das Águas, termo utilizado em substancioso artigo de autoria do ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça (7); para isso partimos da importância das águas, que distinguem o nosso planeta dos outros corpos celestes conhecidos e são a fonte da vida na Terra. Vimos nos artigos anteriores que a água, considerada como um recurso hídrico ou como um valor ecológico em si, recebe substanciosa proteção constitucional e legal no nosso país; mas a mudança climática e os extremos de calor e frio, chuvas e secas que temos observado no período recente denotam que alguma coisa está errada.

A proteção e a preservação da água repousam na consciência das pessoas, que precisam vê-la como um valor a ser protegido e não apenas usufruído; em uma estrutura legal que dê os contornos desse uso e dessa proteção e preservação; em uma estrutura administrativa que aprofunde os estudos, o conhecimento e adote as medidas necessárias a esse uso, proteção e preservação; e em um Judiciário que cuide, decida e dialogue com as pessoas e com a administração pública de maneira adequada. Uma parte relevante da proteção e da preservação das águas repousa nos ombros dos juízes. No dizer do ministro Herman Benjamin, artigo citado, "regimes legais e precedentes judiciais tradicionais em países em desenvolvimento ou falham em abandonar conceitos e instituições ultrapassadas — herdadas de antigas sociedades agrárias, como o Direito Romano, ou a Revolução Industrial, ou são insensíveis às peculiaridades da água como um recurso vital, ao invés de tratá-la como nada mais que um simples acessório ou uma extensão da terra" (tradução livre). É preciso que, ao lado dos princípios ambientais conhecidos como o poluidor-pagador, usuário-pagador, precaução, as decisões judiciais passem a dar à água a importância que deve ter.

A ênfase na água como um recurso natural, em seu valor econômico e não ecológico, implicou a visão dela como um acessório da propriedade; a preocupação com os proprietários próximos não implicou em uma proteção do interesse coletivo e nem na consideração das implicações sociais, ecológicas, éticas e religiosas. Essa visão individualista refletiu na legitimidade para a propositura de ações, pois apenas as pessoas diretamente afetadas e raramente o Estado, menos ainda comunidades distantes e difusas, redundando em uma proteção deficiente da água (8).

Uma das características da água é a mobilidade; ela se movimenta, passa por terrenos e países diversos (9) e frequentemente muda de lugar; e sua direção, das áreas mais altas para as áreas mais baixas, traz uma necessária e complexa relação, nem sempre bem-vista, entre os povos das áreas altas e das áreas baixas. A mobilidade e a dependência, de pessoas e países, do cuidado com que a água é utilizada em cada passo de seu curso, justifica — o que hoje não é mais contestado — a evolução do domínio privado para o domínio público e diversas alterações no sistema legal e em sua prática, algumas não de todo definidas ainda: a) a função social, que se sobrepõe à propriedade individual da água, justifica uma forte regulação estatal como ocorre no Brasil, vista no artigo anterior; b) a legitimação ativa para a propositura de ações que, minorada entre nós pela forte atuação do Ministério Público, não deixa clara a participação, como autores, de indivíduos ou empresas não diretamente ligados ou vinculados ao curso d'água em questão. Ações têm sido propostas em que o próprio rio ou lago é parte, questão processual ainda obscura; c) não há um órgão judicial de sobreposição que resolva os conflitos entre países, em que o uso da água pelas terras altas cause prejuízo direto ou indireto ao seu uso pelas terras baixas. O mesmo conflito é de difícil solução dentro do próprio país; d) a extensão dos rios, sua passagem por vários estados e comarcas cria conflitos ou dúvida de jurisdição e competência. Pode o juiz de uma comarca dispor sobre o uso da água em outra, sob fundamento do reflexo desse uso na comarca onde atua? Como coordenar a sua jurisdição e a sua visão dessa parte com a visão do todo?; e) a crescente necessidade da água para uso humano, industrial e na agricultura-pecuária, a crescente urbanização que consome e polui, torna complexa e premente a regulação estatal e, mais ainda, a decisão judicial, quando é o caso (10); f) tais decisões interferem no uso de recursos públicos e nas prioridades definidas pelo Executivo e pelo Legislativo, onde os juízes devem encontrar o ponto de equilíbrio entre a deferência e a indiferença judicial à água (no dizer de Benjamin, artigo citado).

A complexidade maior vai avultando conforme nossa consciência evolui. A chamada visão holística, em que a água deixa de ser vista como um recurso econômico ou de uso e passa a ser vista como um valor ecológico em si, sustentáculo de ecossistemas e da vida na Terra, implica que em diversas situações ela não possa ser utilizada, mas apenas preservada; que o uso da água subterrânea, que estamos extraindo sem maior consideração e preocupação, pode trazer problemas geológicos, ambientais e ecossistêmicos graves; que o chamado "direito à água" das populações não pode colocar a água em risco e pode implicar não na condução da água até elas (transposições, canais, perfurações), mas no deslocamento delas até onde a água seja mais abundante; que o crescimento da população, do consumo e a dura realidade da finitude da água coloca em risco a sustentabilidade do desenvolvimento como o entendemos, pondo em risco o acesso (e o direito) à água das gerações futuras. São questões cada vez mais complexas e cada vez mais frequentes à frente dos juízes, os árbitros finais da sua regulação e gestão, a quem cabe distribuir a genuína justiça das águas.

A Justiça das Águas, como imaginada por Benjamin, envolve novos paradigmas: a visão da natureza pública, intergeracional e ecológica da água (a visão holística); a sua posição de relevo no sistema legal, ante sua absoluta essencialidade à vida no planeta; a finitude do suprimento de água doce; a regulação de seu uso da água, desigualmente distribuída, para atender à necessidade da população vulnerável e daquelas culturalmente dependentes dela, como os povos indígenas e as populações tradicionais; o alargamento e a flexibilização do acesso à Justiça, inclusive a legitimação ativa dos rios, lagos e outras entidades ecológicas; a ênfase em mecanismos de prevenção e precaução, que o autor denomina de in dubio pro aqua, como uma ferramenta hermenêutica; a extensão da jurisdição territorial à bacia hidrográfica, além do limite das comarcas.

Termino reproduzindo as palavras do ministro Herman Benjamin no artigo tantas vezes citado: a água é o fundamento da vida, mas também o pilar da civilização, da guerra e da paz, da riqueza e da pobreza e, especialmente, da justiça e da injustiça. A preservação da água é uma demanda da presente, mas também das gerações futuras, uma categoria legal ainda em busca de um lugar adequado na jurisprudência. Ao invés de um obstáculo a exigir a construção de pontes legais e físicas, a água deve ser tratada pela lei e pelos juízes como um convite universal para compreendê-la como a ponte líquida capaz de garantir a dignidade humana e a existência de todos os seres vivos.

 


(1) O Conselho Mundial da Água é uma organização internacional criada em 1996 com sede em Marseille, França, com cerca de 400 entidades governamentais e não governamentais associadas, de sessenta países nos cinco continentes. Sua missão é convencer os líderes públicos e privados que a área é uma prioridade política vital para o desenvolvimento sustentável e equânime do planeta. The World Water Council | World Water Council.

(2) O Pnuma (também conhecido por Unep, a sigla em inglês), um órgão da ONU, é um programa das Nações Unidas voltado à proteção do meio ambiente e à promoção do desenvolvimento sustentável; coordena as ações internacionais de proteção ao meio ambiente e trabalha com grande número de parceiros, incluindo outras entidades da ONU, organizações internacionais, nacionais e não governamentais. É sediado em Nairobi, Quênia. Sobre o Pnuma/Unep – UN Environment Programme.

(3) A IUCN é uma entidade fundada em 1948 e reúne mais de 1.250 organizações, incluindo 84 governos nacionais, 112 agências de governo e um grande número de organizações não-governamentais nacionais e internacionais, com cerca de dez mil membros individuais, cientistas e especialistas. Sua missão é influenciar, encorajar e assistir sociedades do mundo todo na conservação da natureza. União Internacional para a Conservação da Natureza – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

(4) O Instituto Judicial Global para o Ambiente, recentemente estruturado e com sede em Genebra, Suíça, tem como membros juízes de qualquer instância, do mundo, dedicados à questão ambiental.

(7) Para uma análise detalhada da evolução legal e das alterações no conceito da água como bem a ser protegido, vide HERMAN BENJAMIN, Water Justice: The Case of Brazil, Environmental Law Report, Environmental Law Institute, 2018.

(8) HERMAN BENJAMIN, artigo citado.

(9) HERMAN BENJAMIN, artigo citado, nota 14: "Estima-se que mais de 300 sistemas fluviais cruzam fronteiras nacionais e que 47% da superfície terrestre é banhada por bacias fluviais internacionais" (MARC DE VILLIERS, Water 21, 81 (2000).

(10) HERMAN BENBJAMIN, artigo citado, pág. 6: "Disputas judiciais frequentemente surgem não apenas entre os usuários diretos da água (conflitos internos). Conflitos comumente ocorrem entre, de um lado, a coletividade frequente e futura que dependem de, e se beneficiam, da água e, de outro, igualmente constitucionalizados e eticamente legítimos detentores de valores sociais diferentes (conflitos externos). Moradia, estradas, energia, lazer, e, paradoxalmente, mesmo a infraestrutura sanitária são algumas expectativas dos eleitores que, ao mesmo tempo, tem grande potencial de degradar ou mesmo destruir a rede hidrológica, particularmente nas cidades maiores. Uma vez mais, juízes são convidados a decidir estas controvérsias que levantam imensuráveis dilemas morais e contém enorme conteúdo político" (tradução livre).

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