Tribunal do Júri

A atenuante inominada em razão da vulnerabilidade da mulher

Autores

  • Thais Pinhata de Souza

    é advogada com experiência nas áreas de Direito Criminal e Fashion Law mestre e doutoranda em Direito pela Universidade do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo professora do curso de extensão Mulheres Encarceradas da UFRJ (Núcleo de Direitos Humanos) e consultora do Departamento Jurídico em Direito Antidiscriminatório do Instituto Nelson Mandela no Rio de Janeiro.

  • Raquel Alves Rosa

    é advogada criminalista mestre em Direito (UFRJ) pós-graduada em Direito (Emerj) professora do projeto e do curso de extensão Mulheres Encarceradas da UFRJ e pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

5 de fevereiro de 2022, 8h00

Como se sabe, a segunda fase da dosimetria da pena se constitui na análise das agravantes e das atenuantes. As agravantes estão descritas nos artigos 61 e 62 e as atenuantes nos artigos 65 e 66 do Código Penal. Trata-se de circunstâncias legais que não integram o tipo penal, mas que alteram o parâmetro punitivo, eis que se revestem de situações consideradas que merecem maior reprovabilidade ou maior leniência.

Spacca
Sobre as atenuantes, o legislador as dividiu em dois grupos: 1) as circunstâncias taxativas do artigo 65, como, por exemplo, o agente ser menor de 21 anos e a confissão; e 2) as atenuantes inominadas, que se configuram como aquelas em que o juiz pode reduzir a pena do acusado "em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei". Tamanha indeterminação e abertura, inclusive, fez com que a doutrina passasse a chamá-las de atenuantes "de clemência".

Na sistemática procedimental do Tribunal do Júri, as agravantes e atenuantes devem ser reconhecidas pelo juiz presidente, desde que tenham sido sustentadas pelas partes em plenário [1]. Assim, cabem às partes, no tempo dos debates, alegar quais circunstâncias se fazem presente no caso concreto [2].

Entretanto, nem sempre foi assim. Até a reforma de 2008, a competência para admitir agravantes e atenuantes era do conselho de sentença. Então, o juiz presidente elaborava quesito perguntando se havia agravantes ou atenuantes, a pedido das partes. Quando a defesa requeria o reconhecimento de atenuante, mas não havia nenhuma taxativamente prevista, o magistrado era obrigado a aplicar de maneira genérica. Perceba-se que a exposição de motivos do Código Penal (reforma de 1983) conta que "instituiu-se, finalmente, no artigo 66, circunstância atenuante genérica e facultativa, ocorrida antes, durante ou após o crime, para a fixação da pena".

Diante de tal previsão legal, a doutrina vem utilizando as atenuantes inominadas também no bojo da teoria da coculpabilidade, esta compreendida como, em diversas situações, a sociedade e/ou o Estado seriam corresponsáveis pela prática de um delito, dada à existência de modelos sociais/institucionais de exclusão e marginalização. Nesses casos, as atenuantes são ferramentas para o magistrado, em atendimento ao princípio da individualização da pena, aproximar o quantum penal do contexto fático da pessoa do acusado, que é, naturalmente, mais complexo do que o frame das hipóteses legais.

No caso do Tribunal do Júri, como visto, as atenuantes (inclusive a inominada) precisam ser sustentadas para o juiz presidente no momento dos debates. E aqui, destaca-se a relevância das hipóteses em que as mulheres são acusadas, pronunciadas e, ao final, obrigadas a sentar na cadeira vexatória do plenário para responder pelo crime de aborto, previsto entre os artigos 124 e 128 do Código Penal. Nesse caso, apesar de, em tese, defender-se a absolvição da acusada, em última hipótese subsiste a atenuante inominada em razão da vulnerabilidade da mulher na materialização de seus direitos sexuais e reprodutivos.

Isso porque a criminalização do aborto impõe extrema vulnerabilidade às mulheres ao restringir a livre fruição de seus direitos e ao colocar seus corpos à margem do atendimento médico oficial e adequado, o que não só é danoso à saúde como muitas vezes fatal, em razão da insegurança sanitária e médica dos procedimentos clandestinos.

Ganhando voz a partir dos movimentos políticos feministas, o alarme para a questão decorre também dos registros que, mesmo diante da discrepância entre o número de abortos realizados e contabilizados, demonstram que a criminalização do aborto empurra as mulheres para a clandestinidade e, assim, para serem parte das elevadas estatísticas de mortalidade materna, não podendo o Estado se eximir dessa matemática de culpa.

Não se olvide que a criminalização do aborto é uma das formas mais evidentes de controle social formal-penal sobre as mulheres, pois trata com repressão criminal uma questão de saúde pública e de dignidade. Ademais, sabemos sobre quais mulheres a seletividade do Estado alcança com mais força e rapidez.

A esse teor, o relatório "Entre a morte e a prisão", publicado pela Defensoria do Estado do Rio de Janeiro [3], mostra que o custo do procedimento realizado em clínicas particulares varia entre R$ 600 e R$ 4,5 mil. Ora, em um país em que o salário mínimo nacional é de, atualmente, R$ 1.212, resta óbvia a constatação de que a proibição empurra as mulheres pobres para procedimentos de alto perigo, fora das clínicas, com a utilização de métodos rústicos, sobretudo com o avanço das gestações.

De acordo com a pesquisa, em decorrência da dificuldade de acesso a procedimentos realizados em clínicas especializadas, as mulheres pobres praticam o aborto com o estágio gestacional avançado, isto é, após as 12 semanas. A ausência de regulamentação impede o gerenciamento da prática.

Nesse sentido, cumpre destacar que o aborto, em si, é um procedimento de baixa complexidade técnica se realizado nas primeiras semanas de gestação, podendo ser tratado inclusive por meio da prescrição de medicamentos. No entanto, a criminalização impõe entraves de alto custo financeiro e emocional.

Não é por outro motivo que, como mostra a referida pesquisa, a criminalização do aborto tem por alvo mulheres de raça e classe bem definidas. Com a combinação de todos os fatores, essas mulheres se submetem a procedimentos mais perigosos, apresentando maiores taxas de complicações. Entretanto, no desespero de não serem presas, sofrem silenciosamente por longos períodos, tendo por medida última a busca do auxílio médico — quando são atingidas pelo poder punitivo, uma vez que, nas unidades de saúde, havendo indício da prática de aborto, a equipe médica informa a autoridade policial respectiva.

O Brasil está fundado sobre uma base racista e patriarcal e, na modernidade, não há Estado apartado da ideia de superioridade de gênero e de raça, explicitada em padrões ideais contra os quais, em contraposição, todos serão "o outro" do sujeito.

Esse "outro" é resultado de diversos eixos de subordinação aos quais estão submetidas determinadas pessoas, sobretudo aquelas cuja retirada de subjetividade se dá com maior força: as mulheres negras, em algo que, conforme nos ensina Grada Kilomba [4], deságua, socialmente, em práticas colonizadoras de silenciamento e de deslegitimação das teorizações propostas a partir das experiências de pessoas negras diaspóricas, o que deve ser aplicado também às mulheres, em geral.

Esse contexto precisa ser levado em consideração no momento da aplicação da pena, sobretudo em relação àquelas mulheres cujos diferentes eixos de subordinação as deixam mais vulneráveis à penalização em larga escala, como é o caso de mulheres negras e indígenas.

E à defesa técnica cabe falar não só sobre o Direito e sobre o crime em plenário, mas também sobre esses mecanismos de criminalização das mulheres, levando, aos jurados e ao juiz presidente, a realidade social e individual da acusada como fundamento de pedidos necessários e realmente individualizadores da pena — como o da atenuante aqui debatida.

 


[1] Em decisão da lavra da ministra Carmen Lúcia, o STF decidiu que as atenuantes de caráter objetivo podem ser reconhecidas independentemente das alegações das partes (STF, 1ª Turma, HC nº 106376, rel. min. Cármen Lúcia, j. em 1/3/2011).

[2] Sobre esse ponto, sugerimos a leitura dos Capítulos 6.5, 6.6, 6.7 e 6.8 da 2ª edição da obra "Plenário do Tribunal do Júri" (PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Plenário do Tribunal do Júri, 2. ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022).

[3] DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Entre a morte e a prisão: quem são as mulheres criminalizadas pela prática do aborto no Rio de Janeiro / Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Coordenação de Defesa de Mulher dos Direitos Humanos, Cejur. – Rio de Janeiro: Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro, 2018.

[4] KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2020. p. 17-18.

Autores

  • é advogada criminalista, doutoranda e mestre em Direito pela USP e professora do projeto de extensão Mulheres Encarceradas, do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ.

  • é advogada criminal, mestre em Direito (UFRJ), pós-graduada em Direito (Emerj), professora do Projeto de Extensão Mulheres Encarceradas da FND-UFRJ e pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ.

  • é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE, Curso CEI) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!