Opinião

A restrição ao iura novit curia na Lei de Improbidade Administrativa

Autor

  • Thadeu Augimeri de Goes Lima

    é pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp) doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Ciência Jurídica pela Uenp e promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná.

3 de fevereiro de 2022, 20h55

Prosseguindo em nossas análises das mudanças promovidas pela Lei 14.230/2021 na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) [1], uma que causou certa perplexidade aos estudiosos foi a restrição que ela impôs ao iura novit curia, conforme os recém-inseridos §§10-C, 10-D e 10-F, inciso I, todos do artigo 17 da LIA [2].

Estabelece o §10-C que, após a réplica do Ministério Público à contestação, o juiz deverá proferir decisão interlocutória (de organização e saneamento do processo), na qual indicará com precisão a tipificação do ato de improbidade administrativa imputado ao réu, sendo-lhe vedado modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor da demanda.

Ao seu turno, o §10-D dispõe que, para cada ato de improbidade administrativa, deverá necessariamente ser indicado apenas um tipo entre aqueles previstos nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA.

Por fim, o §10-F, inciso I, comina expressamente a nulidade da decisão de mérito (sentença ou acórdão) total ou parcial proferida na ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa que condenar o demandado por tipo diverso daquele definido na petição inicial.

Observe-se que a opção legislativa incorporada na LIA destoa do regime adotado no processo penal condenatório relativamente à alteração, pelo magistrado, da qualificação jurídica atribuída pelo acusador ao fato imputado, o que se conhece como emendatio libelli (artigo 383 do CPP). Com efeito, na esfera criminal se permite ao julgador, por ocasião da prolação da sentença condenatória, modificar a classificação do fato imputado, desde que não haja modificação da narrativa fática mesma. Já na ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa, após a reforma operada pela Lei 14.230/2021, procedimento semelhante não mais é admitido, sob pena de nulidade do pronunciamento judicial.

O principal questionamento que se põe diz respeito à (in)constitucionalidade ou à (anti)juridicidade dessa restrição ao iura novit curia [3]. E, para respondê-lo, imperioso compreender melhor se e como a locução latina em tela encontra encampação pelo ordenamento jurídico pátrio.

O iura novit curia surgiu como um adágio, axioma, aforismo ou brocardo, vale dizer, como uma máxima doutrinal dotada de significação jurídica e exarada de forma breve e objetiva, sendo comumente traduzido na expressão "o juiz conhece o Direito" [4]. Sua origem é duvidosa, não tendo sido legada pelo Direito romano clássico. Outrossim, passou a assumir importância somente com o nascimento de uma magistratura de especialistas.[5]

A orientação que se mostra prevalecente é no sentido de que o brocardo em questão haja vindo a lume no Medievo, sendo indubitável que, ainda durante a Baixa Idade Média, ele ganhou amplas repercussão e difusão na Europa continental. Com o passar do tempo, viu-se consagrado como uma característica estruturante dos sistemas processuais jurisdicionais civis filiados à tradição romano-germânica (civil law), vinculando-se mesmo à própria noção que se tem nesses sistemas acerca dos papeis do juiz e das partes na condução do processo [6]. E, como não se poderia esperar diferente, avançou até muitos outros ordenamentos jurídicos ao redor do globo que se viram diretamente influenciados pelos direitos dos países europeus continentais, mormente no mundo ocidental [7].

Refletindo o mais habitual entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca do iura novit curia, António Pinto Leite leciona que ele resume, de um lado, que as partes devem cuidar dos fatos (alegação e prova), ao passo que, do outro, o órgão judicante deve cuidar do Direito [8].

No Processo Civil pátrio, e salvo melhor juízo, parece que o marco expresso da incorporação do iura novit curia, ao menos no plano normativo, deu-se com o Regulamento 737 (Decreto 737, de 25 de novembro de 1850), primeiro Código Processual elaborado no Brasil pelo governo do Império e que se destinava à solução judicial de controvérsias de natureza mercantil. De fato, antes dele, as Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603) e a chamada "Lei da Boa Razão" (1769) estruturaram o Processo Civil dominado pelo princípio dispositivo e movimentado apenas pelo impulso das partes, sendo o procedimento caracterizado pela forma escrita e pelo desenvolvimento através de fases rigidamente distintas, atribuindo-se ao magistrado postura bastante inerte no curso do feito [9].

O artigo 232 do Regulamento 737 preceituava que a sentença deveria "ser clara, sumariando o Juiz o pedido e a contestação com os fundamentos respectivos, motivando com precisão o seu julgado, e declarando sob sua responsabilidade a lei, uso ou estilo em que se funda". Tal disposição guardava plena coerência com o artigo 66, que concernia aos requisitos da petição inicial no rito ordinário, e com o artigo 96, que disciplinava o conteúdo da contestação. Pelo artigo 66, a peça vestibular precisaria conter tão somente os nomes do autor e do réu (§1°); a exposição do contrato, da transação ou do fato dos quais resultassem o direito do demandante e a obrigação do demandado (§2°); o pedido, com todas as especificações e estimativa do valor, quando não fosse determinado (§3°); e a indicação das provas em que se fundava a demanda (§4°). Por outro lado, o artigo 96 impunha que a contestação contivesse simplesmente a exposição dos motivos e causas que pudessem "elidir a ação". Calha observar que em nenhuma dessas peças processuais era exigida a referência aos enunciados normativos ou jurisprudenciais que embasavam a pretensão ou a resistência. A sistemática estabelecida pelo Regulamento 737, assim, deixava transparecer a encampação do iura novit curia [10].

Pouco tempo depois, seguindo-se à proclamação da República, a disciplina do Regulamento 737 foi estendida às causas cíveis em geral, com algumas exceções (Decreto 763, de 19 de setembro de 1890), bem como serviu de molde ao processo civil e comercial perante a Justiça federal (Decreto 848, de 11 de outubro de 1890) [11]. Logo, é razoável inferir que a assimilação do iura novit curia pela cultura jurídica e pelas práticas judiciárias nacionais haja coincidido com tal época, tendo perdurado até a atualidade [12].

Partindo da premissa de que o iura novit curia efetivamente compõe o quadro normativo vigente do Processo Civil, duas indagações básicas se colocam: a primeira relativa à sua natureza dentro da tipologia das normas e a segunda relativa às fontes de onde se origina.

Pensamos que o iura novit curia tem, sim, realidade normativa, isto é, configura uma verdadeira norma regente do sistema processual civil, apesar de não ser mais extraível de algum preceito com clareza igual à do supracitado artigo 232 do antigo Regulamento 737. De forma mais exata, o adágio se traduz juridicamente em um postulado normativo aplicativo, uma norma de aplicação do Direito, que se dirige especialmente (mas não exclusivamente) ao órgão judicante e baliza a atividade dele no processo [13].

Tal postulado normativo aplicativo atualmente resulta da interpretação sistemática do artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) e dos artigos 140, 141, 319, inciso III, e 376 do CPC, criando para o julgador duas situações subjetivas jurídico-processuais: 1) o dever de se instruir de forma completa sobre a matéria jurídica pertinente, vale dizer, de investigar e interpretar corretamente as fontes jurídicas (principais ou subsidiárias) adequadas ao caso sub judice, com primazia à Constituição e às leis; e 2) o poder de ditar no processo a última palavra sobre as normas jurídicas aplicáveis [14].

Ocorre que o iura novit curia não é instituído de modo absoluto, encontrando no próprio sistema jurídico os seus limites. Primeiramente, como norma sem envergadura constitucional que é, e dentro da compreensão escalonada do ordenamento jurídico, está subordinado aos ditames da Lei Maior, entre os quais se destacam as garantias do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e da fundamentação das decisões judiciais (artigos 5º, incisos LIV e LV, e 93, inciso IX). Ademais, ele é excepcionado, por exemplo: nas questões vedadas por lei ao conhecimento oficioso, cuja consideração depende de haverem sido suscitadas pelo sujeito processual interessado (artigo 141, segunda parte, do CPC); na hipótese de delimitação consensual das questões de fato e de direito pelas partes, a qual, se homologada, vincula os litigantes e o juiz (artigo 357, §2º, do CPC); nas formas autocompositivas de resolução do litígio, quando admitidas (artigo 487, inciso III, "a", "b" e "c", do CPC), em relação às quais o magistrado se restringirá a fazer um controle de legalidade e a homologar a solução alvitrada pelas partes; pelo dever de juízes e tribunais de observar em as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, os enunciados de súmula vinculante, os acórdãos proferidos em incidentes de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamentos de recursos extraordinários e especiais repetitivos, os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional e a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados (artigo 927 do CPC); e nas instâncias extraordinária e especial, em que o STF e o STJ se autolimitam no reexame das questões de direito [15].

Mostra-se claro que a configuração normativa do iura novit curia não fica refém de uma diretriz imutável e inflexível, sendo ao revés bastante cambiante no tempo e no espaço. Prova disso, aliás, é o seu desenvolvimento histórico-legislativo no Direito brasileiro, sucintamente referido. Por conseguinte, nada impede que seja moldada diferentemente ou até sobremaneira reduzida, tudo conforme as conveniências jurídico-políticas reinantes em dado contexto.

Disso resulta que os §§10-C, 10-D e 10-F, inciso I, do artigo 17 da LIA, conquanto no aspecto da crítica político-legislativa, e com razão, possam até ser tachados de esdrúxulos, incoerentes, inconvenientes etc., no aspecto estritamente jurídico-dogmático não aparentam padecer de inconstitucionalidade ou antijuridicidade.

 


[1] Já publicadas aqui na ConJur: LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. As ações de responsabilização por atos de improbidade culposos em curso. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-11/lima-responsabilizacao-atos-improbidade-culposos-curso; e LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. Prescrição intercorrente na Lei de Improbidade Administrativa e o ressarcimento ao erário. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-27/goes-lima-prescricao-intercorrente-lia-ressarcimento.

[2] A título exemplificativo e por todos, também aqui na ConJur, v. BARROS, Laura Mendes Amando de. A gritante antijuridicidade contida na nova Lei de Improbidade Administrativa. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-11/barros-gritante-antijuridicidade-lei-improbidade. Acesso em 31 jan. 2022.

[3] Cf. BARROS, Laura Mendes Amando de. A gritante antijuridicidade contida na nova Lei de Improbidade Administrativa, cit..

[4] Em sua formulação latina, analisada sintaticamente, tem-se que curia desempenha a função de sujeito, correspondendo atualmente no vernáculo a juiz, juízo, tribunal ou, genericamente, órgão judicial. Novit é o núcleo do predicado verbal, que constitui a terceira pessoa do singular do pretérito perfeito de nosco, noscis, noscere, novit, notum, e, vertido ao português no infinitivo impessoal, significa conhecer/saber. Iura, por sua vez, traduz-se mais exatamente por direitos, sendo o plural do termo ius, direito, e ocupa na oração a posição de núcleo do objeto direto. V. SENTÍS MELENDO, Santiago. El juez y el derecho: (iura novit curia). Buenos Aires: EJEA, 1957, p. 20-33. Gustavo Calvinho frisa que, traduzida com absoluta pureza, a máxima se converte em "o juiz conhece os direitos", o que inclusive levou alguns autores a sustentarem que se referia aos direitos subjetivos, e não ao Direito objetivo. V. CALVINHO, Gustavo. La regla iura novit curia en benefício de los litigantes. Disponível em: <http://www.petruzzosc.com.ar/articulos/Iura%20novit%20curia.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2022. Em razão de trazer o plural iura, ao invés do singular ius, Pontes de Miranda afirma se cuidar de aforismo de mau latim, mas de excelente enunciado. V. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1973. t. 1, p. 81.

[5] BAUR, Fritz. Da importância da dicção "iura novit curia". Revista de Processo, São Paulo, v. 1, nº 3, p. 169-177, jul./set. 1976. p. 169.

[6] No que concerne à "divisão de tarefas" que se mostra ínsita ao iura novit curia, alude Pontes de Miranda que, enquanto o adágio incumbe o julgador de toda a responsabilidade pelo erro sobre o Direito, as leis processuais deixam parte dessa responsabilidade aos interessados quanto à alegação e prova dos fatos. Razão bastante, sublinha o jurista, para não se identificarem as duas atividades do juiz, de definição da norma jurídica aplicável e de acertamento dos fatos. V. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil, cit., p. XXII.

[7] Cf. DERLÉN, Mattias. Multilangual interpretation of European Union Law. Alphen aan den Rijn: Kluwer Law International, 2009 (Coleção European Monographs, v. 67), p. 314-316; OBERHAMMER, P.; DOMEJ, T.. Germany, Switzerland and Austria: powers of the judge. In: RHEE, Cornelis Hendrik van (Org.). European traditions in civil procedure. Antwerp; Oxford: Intersentia, 2005, p. 303-304; e MANTAKOU, Anna P.. The misadventures of the principle "jura novit curia" in international arbitration  a practitioner's approach. Hellenic Institute of International & Foreign Law, 2014. Disponível em: <http://www.hiifl.gr/wp-content/uploads/MANTAKOUjuranovitcuria.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2022. p. 488-489.

[8] LEITE, António Pinto. "Jura novit curia" e a arbitragem internacional. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, v. 35, p. 169-186, out. 2012. p. 172.

[9] LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. "Iura novit curia" no processo civil brasileiro: dos primórdios ao novo CPC. Revista de Processo, São Paulo, v. 251, p. 127-158, jan. 2016. nº 3.

[10] LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. "Iura novit curia" no processo civil brasileiro, cit., nº 3.

[11] CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO. Teoria geral do processo, cit., p. 113-114.

[12] LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. "Iura novit curia" no processo civil brasileiro, cit., nº 3.

[13] LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. "Iura novit curia" no processo civil brasileiro, cit., n. 3. Impende frisar que o iura novit curia não parece ser um princípio, como usualmente referido pela doutrina e pela jurisprudência, mas sim um postulado normativo aplicativo, que, na lição de Humberto Ávila, consiste em uma norma imediatamente metódica que institui os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto da aplicação, qualificando-se portanto como uma metanorma ou norma de segundo grau. V. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 124.

[14] LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. "Iura novit curia" no processo civil brasileiro, cit., nº 3.

[15] LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. "Iura novit curia" no processo civil brasileiro, cit., nº 3 e 4.

Autores

  • é pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp), doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Ciência Jurídica pela Uenp e promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!