Opinião

As ações de responsabilização por atos de improbidade culposos em curso

Autor

  • Thadeu Augimeri de Goes Lima

    é pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp) doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Ciência Jurídica pela Uenp e promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná.

11 de dezembro de 2021, 13h10

A Lei 14.230/2021, como é bem sabido, promoveu numerosas e profundas alterações na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), tanto nos seus aspectos materiais quanto nos seus aspectos processuais, de modo que não soa nada exagerado o epíteto de "nova LIA" que lhe foi atribuído por muitos estudiosos [1].

No plano substancial, uma das mudanças mais marcantes advindas do novel diploma legal consistiu na abolitio improbitatis relativamente às condutas culposas ensejadoras de danos ao erário, antes tipificadas como atos de improbidade administrativa no artigo 10 da LIA. Com efeito, remanescem no dispositivo tão somente previsões de condutas ímprobas dolosas causadoras de prejuízos aos cofres públicos.

Outrossim, constata-se na doutrina e na jurisprudência forte tendência de se conferir retroatividade às disposições materiais mais favoráveis incorporadas na LIA pela Lei 14.230/2021, notadamente a partir da interpretação extensiva do artigo 5º, inciso XL, da CF/1988, c/c o recém-introduzido §4º do artigo 1º da LIA.

Portanto, a prevalecer tal exegese, a abolitio improbitatis em comento haverá de incidir sobre todas as condutas culposas ensejadoras de danos ao erário já praticadas e anteriormente tipificadas como atos de improbidade administrativa no supracitado artigo 10 da LIA, inobstante a fase em que se encontre eventual persecução delas (investigação ou processo judicial, em primeiro grau ou em grau recursal).

Todavia, no que tange às ações de responsabilização por atos de improbidade administrativa culposos em curso, ainda que se reconheça a retroatividade in mellius da exclusão das figuras ímprobas culposas, isso não deve conduzir peremptoriamente à imediata improcedência da demanda (cf. o artigo 487, inciso I, c/c o artigo 493, ambos do CPC) ou à extinção do processo sem resolução de mérito, por carência superveniente do interesse de agir (cf. o artigo 485, inciso VI, do CPC).

De fato, apesar da descaracterização como ato de improbidade administrativa, a conduta culposa que haja causado dano ao erário configurará ainda um ato ilícito gerador da obrigação de reparar, no campo da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, ex vi dos artigos 186 e 927 do Código Civil e em consonância com o artigo 37, §5º, da CF/1988, assim como uma lesão ao patrimônio público, bem jurídico supraindividual passível de tutela jurisdicional coletiva, nos moldes do artigo 1º, caput, inciso VIII, da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985).

Logo, parece-nos pertinente e mais acertado que o juiz, nesse caso de abolitio improbitatis, ao invés de julgar improcedente a demanda ou extinguir o feito sem resolução de mérito, aplique a regra do artigo 17, §16, da LIA [2] e, ouvindo previamente as partes e em decisão motivada, converta a ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa culposo em ação civil pública de ressarcimento de danos ao erário [3].

Cuida-se de providência salutar sob as perspectivas da efetividade da tutela jurisdicional (artigo 5º, inciso XXXV, da CF/1988), mormente a coletiva, da proteção e busca da recomposição da res publica vulnerada (artigo 37, §5º, da CF/1988), da economia processual e da instrumentalidade das formas (verbi gratia, artigos 4º, 277, 282, §§1º e 2º, 283 e 488 do CPC), a qual encontra guarida em uma interpretação da Lei Maior e da legislação infraconstitucional que privilegia os seus aspectos ou elementos sistemático e teleológico e não afronta garantias processuais de quaisquer das partes, visto que o devido processo legal deverá ser observado em sua inteireza no trâmite da ação civil pública.

Frise-se que, em princípio e via de regra, não haverá sequer necessidade de alteração da causa de pedir ou do pedido, pois os fatos essenciais embasadores da demanda  basicamente: a conduta, o resultado lesivo ao erário, o nexo causal entre aquela e este e a culpa stricto sensu do(s) agente(s)  continuarão os mesmos, apenas recebendo do julgador a requalificação normativa adequada sob a égide do Direito vigente (jura novit curia), e a própria pretensão de ressarcimento, quase certamente, também já terá sido deduzida na petição inicial, porque se tratava de uma das consequências sancionatórias previstas na redação original do artigo 12, inciso II, da LIA para os atos de improbidade administrativa culposos.

Contudo, verificando-se no caso concreto a necessidade de aditamento da causa petendi ou do pedido para que ocorra a regular conversão da ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa culposo em ação civil pública de ressarcimento de danos ao erário, parece-nos que o artigo 17, §16, da LIA, c/c o artigo 321 do CPC, independentemente do momento procedimental em que esteja o feito, autoriza o magistrado a oportunizar tal aditamento ao autor da demanda, devendo em seguida possibilitar a manifestação do(s) réu(s), em respeito ao contraditório.

De outro lado, não se cogitará de modificação da legitimidade ad causam ativa, isto é, a ação civil pública decorrente da conversão da ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa prosseguirá sob a condução de quem houver ajuizado esta, não incidindo o artigo 3º da Lei 14.230/2021 [4], eis que, diferentemente da pertinência subjetiva exclusiva do Parquet para a ação de improbidade, hoje preconizada pelo reformado artigo 17, caput, da LIA, o artigo 5º da LACP estabelece a legitimidade concorrente e disjuntiva do Ministério Público (inciso I) e da pessoa jurídica interessada, quer seja a União, o Distrito Federal, estado, município, autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista (incisos III e IV), para a propositura da demanda coletiva em defesa do patrimônio público.

Em suma: o MP ou a Fazenda Pública continuará à frente da ação  originalmente de responsabilização por ato de improbidade administrativa culposo  que tenha ajuizado, uma vez convertida em civil pública.

Levada a cabo a referida conversão em primeiro grau de jurisdição, o procedimento seguirá normalmente na forma do rito comum  visto que a LACP não disciplina um esquema procedimental especial completo , respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas, na senda do artigo14 do CPC.

Ao término do arco procedimental, na sentença, se apto a julgar o mérito, o juiz deverá reconhecer a procedência (total ou parcial) ou a improcedência do pedido de ressarcimento dos danos causados culposamente ao erário.

Finalmente, a conversão ora sugerida também se faz cabível nas ações de responsabilização por atos de improbidade administrativa culposos que atualmente estejam em grau recursal, pois:

1) Se houve a prolação de sentença de procedência, com a imposição do ressarcimento ao erário e eventuais outras sanções, e desde que não seja o caso de declarar a improcedência, bastará ao tribunal respectivo aplicar a novatio legis in mellius, mantendo a condenação à reparação, afastando as demais sanções aplicadas e requalificando normativamente os fatos e a sua consequência jurídica, à luz do artigo 37, §5º, da CF/1988, dos artigos 186 e 927 do CC e do artigo 1º, caput, inciso VIII, da LACP; ou

2) Se houve a prolação de sentença de improcedência cujo teor venha a ser reformado, bastará ao tribunal respectivo aplicar a novatio legis in mellius e condenar somente ao ressarcimento ao erário, também requalificando normativamente os fatos e a sua consequência jurídica, à luz do artigo 37, §5º, da CF/1988, dos artigos 186 e 927 do CC e do artigo 1º, caput, inciso VIII, da LACP.

Registre-se que, em qualquer das hipóteses acima, mostra-se imprescindível o prévio contraditório, conforme dispõe o artigo 933 do CPC.

 


[1] Nesse sentido, aqui na Conjur, confiram-se, por exemplo e por todos, MARTINS, Tiago do Carmo. O dolo na nova Lei de Improbidade Administrativa. 3 dez. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-03/tiago-martins-dolo-lei-improbidade-administrativa; GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel; RODRIGUES, João Paulo Souza; BORGES, Sabrina Nunes. Aspectos polêmicos da Lei de Improbidade: um diálogo com o professor Ricardo Leonel. 3 dez. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-03/opiniao-aspectos-polemicos-lei-improbidade-administrativa; LEONEL, Ricardo de Barros. Processo e procedimento na nova Lei de Improbidade Administrativa. 26 nov. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-26/ricardo-leonel-processo-procedimento-lei-improbidade; e MEDINA, José Miguel Garcia. A nova Lei de Improbidade Administrativa e os processos em curso. 24 nov. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-24/processo-lei-improbidade-administrativa-processos-curso.

[2] "Artigo 17 – […] §16. A qualquer momento, se o magistrado identificar a existência de ilegalidades ou de irregularidades administrativas a serem sanadas sem que estejam presentes todos os requisitos para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo passivo da demanda, poderá, em decisão motivada, converter a ação de improbidade administrativa em ação civil pública, regulada pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985".

[3] Neste ponto, concordamos com MEDINA, José Miguel Garcia, op. cit., in verbis: "Não se pode descartar, ainda, a possibilidade de se requerer a conversão da ação de improbidade administrativa em ação civil pública, nos termos do §16 do artigo 17 da lei reformada. Por exemplo, pode-se entender que não cabem as sanções por improbidade administrativa (que se assenta no §4º do artigo 37 da Constituição Federal), mas tem lugar a condenação por indenização (com base no § 5º do artigo 37 da Constituição), e que, embora não seja cabível ação de improbidade, tem lugar a ação civil pública com propósito ressarcitório".

[4] "Artigo 3º – No prazo de um ano a partir da data de publicação desta Lei, o Ministério Público competente manifestará interesse no prosseguimento das ações por improbidade administrativa em curso ajuizadas pela Fazenda Pública, inclusive em grau de recurso.
 §1º. No prazo previsto no caput deste artigo suspende-se o processo, observado o disposto no artigo 314 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

 §2º. Não adotada a providência descrita no caput deste artigo, o processo será extinto sem resolução do mérito".

Autores

  • é pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp), doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp) e promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!