Opinião

Prescrição intercorrente na Lei de Improbidade Administrativa e o ressarcimento ao erário

Autor

  • Thadeu Augimeri de Goes Lima

    é pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp) doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Ciência Jurídica pela Uenp e promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná.

27 de janeiro de 2022, 16h05

Dentre as muitas e profundas alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), uma das mais polêmicas certamente foi a inclusão do instituto da prescrição intercorrente da pretensão sancionatória no artigo 23, § 5º, do diploma legal.

Com efeito, estabelece o dispositivo que, interrompida a prescrição, na forma do § 4º do artigo 23 — isto é, pelo ajuizamento da ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa (inciso I), pela publicação da sentença de procedência da demanda (inciso II), pela publicação de decisão ou acórdão de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal que confirma o teor da sentença de procedência da demanda ou que reforma o teor da sentença de improcedência (inciso III), pela publicação de decisão ou acórdão do Superior Tribunal de Justiça que confirma o teor do acórdão de procedência da demanda ou que reforma o teor do acórdão de improcedência (inciso IV) e/ou pela publicação de decisão ou acórdão do Supremo Tribunal Federal que confirma o teor do acórdão de procedência da demanda ou que reforma o teor do acórdão de improcedência (inciso V) —, o seu prazo recomeça a correr desde o dia da interrupção, pela metade do tempo previsto no caput, que agora é único de oito anos.

Vale dizer, havendo a interrupção do lapso prescricional, em qualquer dos momentos procedimentais acima especificados, ele retoma seu curso e passa a ser de quatro anos, incidindo no intervalo que medeia o marco interruptivo consumado e o próximo legalmente previsto.

Atente-se que a prescrição intercorrente em comento atinge somente a pretensão de aplicação das sanções punitivas cominadas nos incisos I, II e III do artigo 12 da LIA, porém não a pretensão de integral ressarcimento ao erário que pode ser cumulativamente veiculada na ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa, ex vi do caput do dispositivo.

Isso porque, de um lado, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 897 da Repercussão Geral (oriundo do RE 852.475/SP), definiu acerca da imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário fundada na prática de ato de improbidade administrativa doloso, in verbis: "São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa". De outro lado, porque a Lei 14.230/2021 promoveu verdadeira abolitio improbitatis relativamente às condutas culposas ensejadoras de danos ao erário, antes tipificadas como atos de improbidade administrativa no artigo 10 da LIA, de modo que remanescem neste dispositivo tão somente previsões de condutas ímprobas dolosas causadoras de prejuízos aos cofres públicos.

Cumpre frisar que o objeto litigioso da ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa é composto pela verificação judicial do ato ímprobo — nos aspectos da sua existência empírica, da sua autoria e do concurso e/ou benefício nele, do dolo do(s) envolvido(s) e do enquadramento legal da conduta — e pela aplicação e dosimetria das respectivas sanções punitivas e ressarcitórias (estas quando presente prejuízo ao erário), dando azo, no caso de procedência da demanda, a uma sentença com cargas eficaciais declaratória — reconhecimento da prática do ato de improbidade administrativa —, condenatória — imposição das sanções de perda de bens ou valores e de multa civil e da obrigação de ressarcir o dano — e constitutiva positiva — imposição das sanções de suspensão dos direitos políticos e de proibição de contratar e de receber benefícios ou incentivos — e/ou negativa — imposição da sanção de perda da função pública.

Assim, ainda que haja o reconhecimento da prescrição intercorrente da pretensão sancionatória, isso não conduzirá ao imediato e total encerramento do processo, nos moldes do artigo 487, inciso II, do CPC, já que o seu trâmite deverá continuar para que ocorra o julgamento da imprescritível pretensão de ressarcimento ao erário, quando cumulativamente deduzida na ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa.

Logo, duas soluções parecem as mais recomendáveis:

a) ou o feito deve prosseguir sic et simpliciter como uma ação de improbidade administrativa dita atípica — aquela em que não se postula a aplicação das sanções punitivas cominadas no artigo 12 da LIA, mas apenas o ressarcimento ao erário, conforme distinção elaborada a partir do decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.163.643/SP, rel. ministro Teori Albino Zavascki, j. 24/3/2010, p. DJ 30/3/2010 —, caso se entenda que tal figura permanece admitida no ordenamento jurídico pátrio, mesmo após a profunda reforma da LIA operada pela Lei 14.230/2021;

b) ou, caso se entenda que a Lei 14.230/2021 culminou também por abolir a figura da ação de improbidade administrativa atípica, deverá haver a conversão da ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa em ação civil pública de ressarcimento de danos ao erário, com fulcro no artigo 17, § 16, da LIA [1], já que o ato ímprobo doloso que causa prejuízo aos cofres públicos caracteriza também uma lesão ao patrimônio público, bem jurídico supraindividual passível de tutela jurisdicional coletiva, nos moldes do artigo 1º, caput, inciso VIII, da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985).

Qualquer uma das providências acima se mostra salutar sob as perspectivas da efetividade da tutela jurisdicional (artigo 5º, inciso XXXV, da CF/1988), mormente a coletiva, da proteção e busca da recomposição da res publica vulnerada (artigo 37, § 5º, da CF/1988), da economia processual e da instrumentalidade das formas (v.g., artigos 4º, 277, 282, §§ 1º e 2º, 283 e 488 do CPC) e encontra guarida em uma interpretação da Lei Maior e da legislação infraconstitucional que privilegia os seus aspectos ou elementos sistemático e teleológico.

Outrossim, algumas observações merecem ser tecidas para o caso de se entender mais adequada a solução preconizada na alínea b acima, ou seja, a conversão da ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa em ação civil pública.

Via de regra não haverá sequer necessidade de alteração da causa de pedir ou do pedido, pois o fato essencial embasador da demanda — basicamente, o ato de improbidade administrativa doloso ensejador de lesão ao patrimônio público, cujas sanções punitivas se encontram prescritas — continuará o mesmo e a própria pretensão de ressarcimento também já terá sido deduzida na petição inicial.

Contudo, verificando-se no caso concreto a necessidade de aditamento da causa petendi ou do pedido para que ocorra a regular conversão, parece-nos que o artigo 17, § 16, da LIA, c/c o artigo 321 do CPC, independentemente do momento procedimental em que esteja o feito, autoriza o magistrado a oportunizar tal aditamento ao autor da demanda, devendo em seguida possibilitar a manifestação do(s) réu(s), em respeito ao contraditório.

Levada a cabo a referida conversão em primeiro grau de jurisdição, o procedimento seguirá normalmente na forma do rito comum — visto que a LACP não disciplina um esquema procedimental especial completo —, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas, na senda do artigo 14 do CPC.

Ao término do arco procedimental, na sentença, se apto a julgar o mérito, o juiz deverá reconhecer a procedência (total ou parcial) ou a improcedência do pedido de ressarcimento dos danos causados ao erário por ato ímprobo doloso.

Finalmente, a conversão também é cabível nas ações de responsabilização por atos de improbidade administrativa que estejam em grau recursal, pois:

1) se houve a prolação de sentença de procedência, com a imposição do ressarcimento ao erário e eventuais outras sanções, e desde que não seja o caso de declarar a improcedência, bastará ao tribunal respectivo reconhecer a prescrição intercorrente e afastar as sanções punitivas aplicadas, mantendo a condenação à reparação; ou

2) se houve a prolação de sentença de improcedência cujo teor venha a ser reformado, bastará ao tribunal respectivo condenar somente ao ressarcimento ao erário.

Registre-se que, em qualquer das hipóteses acima, mostra-se imprescindível o prévio contraditório, conforme dispõe o artigo 933 do CPC.

 


[1] "Artigo 17. […] § 16. A qualquer momento, se o magistrado identificar a existência de ilegalidades ou de irregularidades administrativas a serem sanadas sem que estejam presentes todos os requisitos para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo passivo da demanda, poderá, em decisão motivada, converter a ação de improbidade administrativa em ação civil pública, regulada pela Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985."

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  • é pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp), doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Ciência Jurídica pela Uenp e promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná.

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