Ambiente Jurídico

Desatualização das resoluções do Conama e as inovações legislativas em confronto

Autor

  • Andrea Vulcanis

    é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

31 de dezembro de 2022, 8h00

O último artigo da coluna Ambiente Jurídico de 2022 não poderia deixar de falar sobre os desafios que envolvem a mudança de rumos esperada para as políticas públicas ambientais brasileiras, com a chegada do novo governo, e que são muitos.

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Neste artigo, vamos nos ater a um assunto de grande impacto jurídico e político, que são as desatualizações das normas editadas pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e as inovações legislativas estaduais em confronto, o que coloca em xeque o pacto federativo nacional, em matéria ambiental, criando um ambiente de forte insegurança jurídica, desafiando a Justiça e as instância políticas que chegam ao governo.

O pacto federativo em matéria ambiental se desenvolve em torno das competências concorrente e comum, entre os entes da federação, para legislar e desenvolver ações de proteção ambiental, previstas nos artigos 23 e 24 da Constituição da República.

Em matéria legislativa concorrente, como se sabe, cabe à União legislar sobre normas gerais, restando aos estados o poder regulamentar. Nesse viés, além das leis ordinárias e complementares editadas pelo Congresso Nacional, o Sistema Nacional de Meio Ambiente inclui um outro ente, com poderes normativos, que é o Conama.

O Conama, como Conselho Nacional, integrado por governos, setores econômicos e sociedade civil, tem competência prevista no artigo 6º, inciso II, da Lei 6.938/81 para deliberar, nas matérias definidas no artigo 8º da mesma lei, envolvendo normas e padrões de âmbito e vinculação nacional, na matéria ambiental, de forma geral [1].

Estão dentre as competências principais do Conama o estabelecimento de normas e critérios para o licenciamento ambiental e normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente, com vistas ao uso racional dos recursos ambientais.

A regulamentação ambiental no Brasil, como decorrência da Lei 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, partiu e foi conduzida pelo Conama, como órgão deliberativo do Sistema Nacional do Meio Ambiente por muito anos. O Conama exerceu, nesse período, a importante missão de uniformizar a agenda ambiental em território nacional e harmonizar interesses entre os setores interessados e o poder público de todas as esferas da federação.

As atividades do Conama se iniciaram em 1983, com a regulamentação dada pelo Decreto 88.351/83 e, ao longo dos anos, o conselho editou centenas de atos regulamentadores das pautas ambientais, instituindo um amplo arcabouço de normas e padrões de qualidade ambiental, cuja obrigatoriedade foi confirmada recorrentemente pelas cortes judiciais de todo o Brasil. Formou-se um amplo consenso nacional sobre a competência e validade das resoluções do Conama, vinculando particulares e o poder público dos três entes da federação.

Julgado do Supremo Tribunal Federal, do ano de 2020, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.547, do Distrito Federal, entendeu que determinada resolução do Conama constituía ato normativo primário, dotada de generalidade e abstração suficientes a permitir o controle concentrado de constitucionalidade, equiparando-a, portanto, às leis ordinárias e complementares, para os mesmos fins.

Recentemente, o STF, na ADI 4.529, por maioria de votos (6 a 4), ao apreciar lei do estado do Mato Grosso que mudava critérios de licenciamento ambiental para empreendimentos hidrelétricos, dispondo de forma diversa da Resolução 01/86 do Conama, decidiu que, em matéria de licenciamento ambiental, cabe à União estabelecer normas gerais e, com base nessa competência, foi editada a Lei federal 6.938/81 que atribui a disciplina do tema ao Conama, não cabendo aos estados legislarem de forma diversa do que dispõe as resoluções do conselho.

Os dois exemplos de julgados, acima citados, bem demonstram que é consolidado o entendimento da competência do Conama para regulamentar, em caráter vinculante, matérias ambientais.

Ocorre que o Conama, na última década, teve suas atividades bastante reduzidas e até paralisadas no ano de 2022, conforme demonstram os números expressos na tabela abaixo, em que consta a quantidade de atos produzidos pelo conselho, ano a ano, nos últimos 15 anos.

Reprodução

Os números falam por si. A redução das atividades e via de consequência, da modernização e atualização das normas e padrões ambientais, reflete um significativo abalo na missão institucional do Conama, afetando o equilíbrio do pacto federativo, a uniformização mínima e a harmonização do Sistema Nacional de Meio Ambiente.

Observe-se que a desestruturação do Conama, como órgão central na normatização e definição de padrões, coincide com um movimento do Congresso Nacional, motivado certamente por proposições de projetos de lei pelo Poder Executivo federal, deixando de atribuir competências ao Conama na matéria.

Nesse movimento pode-se citar a Lei Complementar 140/11 que define regras de competência entre os entes da federação em matéria ambiental e não atribui nenhuma função ou competência ao Conama. O mesmo se pode dizer da Lei 12.651/12, o chamado Código Florestal, que menciona o Conama com uma única competência para definir outras atividades eventuais ou de baixo impacto ambiental. Também a Lei 14.119/21 que institui a política nacional de pagamento por serviços ambientais que não atribui nenhuma função ao Conama.

Esses três exemplos de leis importantíssimas para o arcabouço normativo ambiental bem demonstram que o Conama foi perdendo, ao longo do tempo, sua força, o que implica, nesse momento, na existência de um extenso conjunto de resoluções editadas desde a década de 1980, quando o conselho foi instituído, que perderam a sua atualidade, considerando que vivemos numa sociedade que produz muita informação e tecnologia e que demanda, portanto, uma constante e presente modernização.

Como consequência da fragilização do Conama, fragilizou-se também o Sistema Nacional de Meio Ambiente, abrindo-se um cenário de grave incerteza e insegurança jurídica, com importante perturbação no equilíbrio nacional, uma vez que os estados da federação passaram a editar normas próprias e diferentes do Conselho Nacional, gerando uma disparidade em território nacional no trato da matéria.

Estamos caminhando, semelhantemente ao que ocorreu com a matéria tributária, em que se estabeleceu uma verdadeira guerra fiscal entre os estados, em decorrência dos incentivos fiscais como fator de atração de investimentos, para uma guerra ambiental. O estado que oferece melhores oportunidades no licenciamento ambiental e outorgas de uso da água, ao aperfeiçoar procedimentos, modernizar a máquina administrativa e regular o acesso aos recursos naturais, observando as melhorias tecnológicas e de processos, acaba saindo na frente na atração de empreendedores e investimentos.

Assim, o ponto que se traz aqui ao debate jurídico é: os estados, considerando o cenário de paralisia do Conama, podem regular seus procedimentos de licenciamento ambiental diferentemente do que dispõem as resoluções do conselho?

Citarei, para ilustrar o raciocínio, o caso específico debatido na ADI 4.529 em que o estado do Mato Grosso editou lei complementar exigindo estudo prévio de impacto ambiental para hidrelétricas com área de inundação acima de 13 km², inserindo critério diferente para a exigência de EIA/Rima, não previsto na Resolução Conama 01/1986, que exige o Estudo para empreendimentos acima de 10 MW. Ou seja, o estado do Mato Grosso definiu, como critério para exigir o EIA, a área de inundação, e o Conama, a potência instalada de geração de energia. O STF decidiu, por maioria, que o estado de Mato Grosso ultrapassou seu poder regulamentar e declarou a inconstitucionalidade do dispositivo.

O julgamento ocorreu no dia 21/11/2022 e o acórdão ainda não está disponível, constando do caderno processual disponível no site do STF apenas a decisão de julgamento e uma matéria jornalística noticiando o caso, por isso não adentrarei ao mérito do julgado mas tratarei da hipótese lá discutida, com o objetivo de responder a nossa questão atinente a possibilidade ou não de os estados poderem dispor diferentemente do Conama.

Observe-se que em 1986, quando a Resolução 01 foi editada, não havia nenhum amadurecimento do sistema de avaliação de impactos ambientais no Brasil e a tecnologia empregada à época pode ser considerada bastante ultrapassada. Naquele momento histórico havia poucos órgãos ambientais em atuação e pouquíssimos licenciamentos ambientais de hidrelétricas. Vamos lembrar que a Usina Hidrelétrica de Itaipu foi construída sem licenciamento ambiental. Suas obras foram concluídas em 1984, depois, portanto, da edição da Lei 6.938/81 que passou a exigir o licenciamento para empreendimentos potencialmente poluidores.

Esse conjunto de circunstâncias históricas deve ser levado em conta pois há um contexto da década de 1980 que determinou a definição do EIA/Rima pela capacidade instalada de potência energética, porque era o conhecimento disponível à época.

Trinta e seis anos depois, tudo mudou. Atualmente, é consenso que os impactos ambientais de hidrelétricas decorrem não da capacidade instalada na geração de energia, mas da área alagada, das desapropriações, remoção de populações e assim por diante. Por sua vez, a tecnologia empregada nas turbinas evoluiu muito; as chamadas hidrelétricas a fio d’água, que empregam modelos de turbinas que geram energia sem a necessidade de grande estoque de água, reduziram enormemente os impactos socioambientais das hidrelétricas. A depender das condições geográficas de inserção do rio, é possível gerar muita energia (potência instalada), com pouquíssima área alagada, e, via de consequência, sem remover pessoas, sem criar ambientes lênticos que impactam a ictiofauna e com vantagens econômicas significativas, embora com menor segurança energética, vez que nos períodos de seca, por não haver muita reservação, corre-se o risco de não se produzir a energia demandada.

Essas evoluções tecnológicas do modelo de produção de energia hidrelétrica não foram, contudo, contempladas pelo Conama. A única resolução geral do conselho que institui uma lista de empreendimentos cujo licenciamento ambiental depende de EIA/Rima é a que consta da Resolução 01/86.

Por sua vez, conforme já referido, o Conselho Nacional segue praticamente paralisado. Os estados, responsáveis pelo licenciamento ambiental de mais de 90% dos empreendimentos brasileiros, passaram então a atualizar, por leis próprias, os modelos de licenciamento ambiental, atendendo as mudanças tecnológicas e buscando uma melhor aproximação com a realidade atual, dada por uma melhor compreensão dos impactos ambientais, depois de milhares de licenciamento concedidos.

O debate que se coloca nesse tema, com viés político diretivo do governo federal, que preside o Conama e não lhe dá andamento, traz para o assunto um viés que vai além do estritamente jurídico. É dizer, entender, em sentido estrito, que as ultrapassadas e irrazoáveis resoluções do Conama devem prevalecer sobre leis estaduais modificadoras, porque se equiparam a normas gerais, é desconsiderar a realidade histórica e os avanços havidos nesse período, simplesmente por amor à teoria jurídica.

No caso das hidrelétricas, se estabelece um paradoxo bastante controverso. Caso o empreendedor decida adotar uma tecnologia atrasada, pelas turbinas normais, provocando grandes áreas de alagamento, com seus significativos impactos socioambientais decorrentes, ele será submetido ao mesmo procedimento de licenciamento ambiental, caso decidisse adotar as tecnologias mais modernas, a fio d’água.

Portanto, as decisões judiciais nessa matéria já não deveriam passar meramente pela teoria jurídica da norma geral em torno das resoluções do Conama, pois isso pode criar situações de instalação de empreendimentos, cujos impactos ambientais sejam maiores, pelo simples fato de não considerar a mudança da realidade conceitual e tecnológica.

A adoção pura e simples de uma teoria jurídica correta — norma geral — pode vir a apresentar consequências bastante adversas. Para proteger o meio ambiente ou manter a integridade da harmonização nacional, poder-se-á, ao fim e ao cabo, desprotegê-lo.

Poderíamos adentrar aqui se, de fato, as resoluções do Conama podem ser consideradas normas gerais ou em que nível de regulamentação uma norma federal pode ser considerada norma geral, mas isso exigiria um outro artigo.

A questão aqui posta é que há uma década, pelo menos, os estados vêm estabelecendo seus próprios atos normativos, em razão da paralisia do Conama, o que exigiu um grande esforço e orquestração a nível estadual para contemplar interesses de cunho local, de modo que não será fácil fazer as inserções dos modelos estaduais, diversos entre si, harmonizando-os no âmbito do Sistema Nacional de Meio Ambiente, daqui por diante.

Ao novo governo está posto o desafio de realizar esse intento. Caso decida por restabelecer o Conama terá muita dificuldade de fazer as pautas avançarem em razão desse histórico da última década que colocou os estados, individualmente, em outros patamares normativos, considerando suas realidades locais. Caso o novo governo decida seguir pela diretriz anterior de normatizar as principais questões, por lei, seguindo com o enfraquecimento do Conama, caberá estabelecer modos e modelos de transição, sobretudo em razão das resoluções vigentes e que perderam a sua atualidade.

Ao que tudo indica, o STF e os tribunais, para acertar e equilibrar essa balança, pelo menos até que o Conama se reorganize, ao apreciarem o confronto entre resoluções do Conama e legislações estaduais, deverão adentrar ao mérito da questão colocada e verificar qual o entendimento, de fato, protege melhor e com mais razoabilidade o meio ambiente. Nesse assunto, as teorias jurídicas, por mais acertadas que sejam, podem se transformar num tiro que sai pela culatra.

 


[1] Art. 6º Os órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, bem como as fundações instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, constituirão o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, assim estruturado:

I …

II – órgão consultivo e deliberativo: o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), com a finalidade de assessorar, estudar e propor ao Conselho de Governo, diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e os recursos naturais e deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida;

Autores

  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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