Opinião

O indulto natalino deste ano e o Massacre do Carandiru

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

30 de dezembro de 2022, 13h17

Chamou-me a atenção o presente dispositivo previsto no decreto de indulto deste ano:

"Art. 6º — Será concedido indulto natalino também aos agentes públicos que integram os órgãos de segurança pública de que trata o art. 144 da Constituição e que, no exercício da sua função ou em decorrência dela, tenham sido condenados, ainda que provisoriamente, por fato praticado há mais de trinta anos, contados da data de publicação deste Decreto, e não considerado hediondo no momento de sua prática. Parágrafo único. O disposto no caput aplica-se, ainda, às pessoas que, no momento do fato, integravam os órgãos de segurança pública de que trata o art. 144 da Constituição, na qualidade de agentes públicos".

O dispositivo alcança a todos os condenados no chamado "Massacre do Carandiru", ocorrido no dia 2 de outubro de 1992, há mais de 30 anos, portanto.

Além do mais, o homicídio qualificado só passou a ser considerado hediondo em 1994, data posterior ao denominado "Massacre do Carandiru".

Não há como fazer retroagir qualquer norma penal mais gravosa para antes de sua vigência em razão de expressa determinação do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, e parágrafo único do artigo 2º do Código Penal (princípio da irretroatividade da lei penal mais severa). Portanto, mesmo que o decreto de indulto assim não dispusesse, norma penal ou com repercussão penal só pode retroagir para beneficiar o acusado ou condenado. Nos termos da legislação em vigor, o homicídio qualificado só foi inserido na Lei nº 8.072/1990 como crime hediondo por força da Lei 8.930/1994, que é posterior aos fatos. Dessa forma, a única interpretação constitucional possível é que, como já determina o decreto, para a concessão do indulto o crime não poderá ser considerado hediondo por ocasião dos fatos e não da publicação do decreto.

A graça (ou indulto individual) e o indulto são de competência do presidente da República (artigo 84, XII, da CF). Podem extinguir a pena ou comutá-la (diminui-la ou substitui-la por outra mais branda). Havendo a extinção da pena, a graça e o indulto recebem a denominação de total ou pleno; alcançando alguns aspectos da condenação, seja reduzindo ou substituindo a pena por outra mais branda (comutação), têm a denominação de parcial. Tanto a graça quanto o indulto são concedidos por meio de decreto presidencial e compete ao juízo da execução penal a declaração da extinção da punibilidade ou a comutação da pena dos beneficiados.

Diferentemente da graça, que é individual e alcança pessoa determinada, dependendo de provocação do condenado, do Ministério Público, do Conselho Penitenciário ou da autoridade administrativa, o indulto é medida de caráter coletivo e espontâneo, não necessitando de solicitação. Deverá ser apreciado pelo Poder Judiciário a fim de verificar se determinada pessoa poderá ser beneficiada. Ao magistrado cabe apenas decidir se os requisitos objetivos e subjetivos condicionantes do benefício estão presentes. Preenchidos os requisitos, o juiz, de ofício, a requerimento do interessado, do Ministério Público, ou por iniciativa do Conselho Penitenciário ou da autoridade administrativa, declarará extinta a punibilidade (artigo 107, II, do CP) ou determinará a comutação da pena (diminuição da pena ou substituição por outra mais branda), dependendo do caso.

Assim, como é medida de clemência soberana determinada, no Brasil, pelo presidente da República, presentes os requisitos necessários, cabe ao magistrado apenas declarar extinta a punibilidade do beneficiado, de modo que não cumprirá a pena privativa de liberdade imposta, subsistindo apenas os efeitos secundários da condenação, dentre eles a perda do cargo e o dever de indenizar.

Note-se que, mesmo que se entenda direcionado para determinado fato, como o presidente pode conceder a graça, instituto análogo ao indulto coletivo, com a única diferença material de alcançar pessoa determinada, não vemos inconstitucionalidade ou ilegalidade na sua concessão. Tanto um quanto o outro podem ser concedidos por critério de conveniência e oportunidade do presidente da República, com a limitação constitucional e legal de não serem possíveis aos condenados por crimes hediondos e equiparados (artigo 5º, XLIII, CF, e artigo 2º, I, da Lei 8.072/1990). Portanto, como poderia conceder a graça (indulto individual) a cada um dos condenados, não vejo óbice em perdoar coletivamente a todos os envolvidos naquele triste evento.

Observo, aliás, que a Constituição Federal, que outorga a prerrogativa de o presidente da República conceder a graça (indulto individual) como forma de clemência soberana, não a condiciona a solicitação de quem quer que seja, podendo ser concedida de ofício, justamente por se tratar de ato discricionário de sua competência, sequer necessitando de fundamentação quanto aos motivos que a determinaram. O comando previsto no artigo 188 da Lei de Execução Penal, que diz ser a graça provocada por solicitação do condenado, do Ministério Público, do Conselho Penitenciário ou da autoridade administrativa, além de ser anterior à promulgação da Carta Magna, não pode a ela contrariar, que traz como único impeditivo a impossibilidade de beneficiar os condenados por crimes hediondos e equiparados.

No tocante ao parecer do Conselho Penitenciário (artigo 189 da LEP), cuida-se de ato meramente opinativo, não vinculando o presidente, que, como já dito, pode conceder o benefício por razões de conveniência e oportunidade (discricionariedade).

Como o benefício extingue os efeitos principais da condenação, em tese, somente após o esgotamento dos recursos do MP ou do querelante é que será possível saber qual o crime que o sujeito foi condenado e as penas impostas, lembrando que há delitos em que não é possível a clemência soberana, no caso os hediondos e os equiparados. Mesmo havendo recurso da defesa, o benefício pode ser concedido. No caso de ser provido o recurso defensivo e advier a absolvição, o indulto perde efeito e prepondera a decisão absolutória, que é mais favorável.

Por outro lado, a concessão do indulto antes do trânsito em julgado da condenação não é causa de nulidade e tampouco de indeferimento do benefício. Por economia processual e por não haver nenhum prejuízo para qualquer das partes, basta ao magistrado condicionar o início de seus efeitos (extinção da punibilidade) ao trânsito em julgado para a acusação ou simplesmente suspender o trâmite do seu processamento até aquele momento, o que se dá quando não couber mais recurso do Ministério Público ou do querelante (no caso de ação penal privada).

Ademais, para o caso em apreço, o próprio decreto concessivo diz que o benefício alcança inclusive a condenação provisória, o que afasta qualquer dúvida a respeito da sua viabilidade antes do trânsito em julgado para ambas as partes (acusação e defesa).

Também a concessão da graça ou do indulto não encontra vedação em qualquer diploma internacional. Em nenhum momento os indultados deixaram de ser julgados e condenados. O que ocorreu foi que, por algum motivo, que não necessita ser explicitado (discricionário), o chefe do Poder Executivo Federal, autoridade constitucionalmente competente, resolveu perdoar àqueles que se encontram nas condições do decreto concessivo, alcançando, no caso, os policiais militares condenados pelo denominado "Massacre do Carandiru".

Os homicídios em questão não são considerados pelo direito internacional como de lesa-humanidade, nos exatos termos do artigo 7º do Estatuto de Roma, que exige sejam cometidos "no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque". No caso em comento, foram praticados apenas homicídios e não um ataque generalizado ou sistemático. A intenção era conter a rebelião e tudo saiu do controle, advindo o catastrófico resultado. De qualquer sorte, mesmo que o fosse, o Estatuto de Roma, que contém normas penais, não pode retroagir para prejudicar os policiais, devendo vigorar para o futuro, isto é, posteriormente à sua adesão pelo Brasil, que ocorreu em 25 de setembro de 2002, com a promulgação do Decreto nº 4.388/2002.

Além do que, a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que se pretende aplicar para impedir a concessão do indulto, que seria vedado a crimes contra a humanidade (não achei essa vedação expressa), é um diploma supralegal, isto é, está acima da legislação e abaixo da Constituição Federal, uma vez que não foi submetido ao seu procedimento previsto no artigo 5º, § 3º para que pudesse ser equivalente à emenda constitucional (votação qualificada de 3/5 em dois turnos em ambas as Casas). Dessa forma, as normas nele existentes não podem contrariar à nossa Constituição Federal, que outorga ao presidente da República a prerrogativa de conceder indulto e graça por razões de conveniência e oportunidade. Do contrário, estaria sendo ferida a soberania nacional, o que não pode ser admitido.

E o próximo presidente poderá rever o ato? Entendo que não, por ser ato de vontade do presidente da República àquele momento, exceto se houver algum vício no decreto concessivo, já que cabe à administração pública rever e revogar seus atos que sejam nulos. Na hipótese, a partir do momento da publicação do decreto, os beneficiados passam a ter o direito subjetivo à extinção da punibilidade ou à redução da pena (comutação), que se incorporou a seu patrimônio jurídico. Como é o presidente que o concede e não o Judiciário, que apenas declara o direito, os efeitos do decreto retroagem à data de sua publicação por ser a decisão judicial meramente declaratória e não constitutiva.

No caso de não ser julgada extinta a punibilidade dos beneficiados pelo Poder Judiciário, por algum vício de forma, após esgotados os recursos, é praticamente certo que o próximo presidente da República não editará novo decreto concessivo, e a condenação será executada, com a expedição de mandado de prisão.

Decerto que haverá extensa repercussão no cenário nacional e internacional, haja vista que o processo ainda se encontra em tramitação e a condenação dos policiais envolvidos está sendo reiteradamente mantida nas cortes superiores, tudo a indicar que o cumprimento da pena prisional estaria na iminência de se iniciar.

Enfim, os crimes cometidos, que foram perdoados, não ensejarão o cumprimento da pena privativa de liberdade, mas os policiais perderão o cargo como efeito secundário da condenação, desde que assim determinado na sentença condenatória (artigo 92, I, "b", do CP), que pode atingir até mesmo os aposentados.

Esclareço que não adentro o mérito da concessão e faço apenas uma análise técnica do instituto.

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