Garantias do Consumo

O futuro dos planos de saúde: propostas no âmbito da defesa do consumidor

Autor

  • Maria Stella Gregori

    é advogada de Gregori Sociedade de Advogados professora de Direito do Consumidor da PUC-SP diretora do Brasilcon e ex-diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

28 de dezembro de 2022, 8h00

Os planos de saúde no Brasil são regulados pela Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, que fixa as regras para as operadoras de planos de assistência à saúde e para os próprios planos sob a observância da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

A Lei dos Planos de Saúde prevê a cobertura assistencial de todas as doenças previstas na Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial de Saúde, a partir de um rol de procedimentos e eventos em saúde fixado pela ANS, de acordo com a segmentação do plano adotada, isto é, ambulatorial (consultas, exames e tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral), hospitalar (internação); hospitalar com obstetrícia (internação e assistência a parto), odontológica (procedimentos realizados em consultório) e referência (ambulatorial e hospitalar com padrão enfermaria).

Nesses 24 anos de regulação dos planos de saúde, muitos avanços foram alcançados, mas como o direito, tal qual os movimentos da sociedade, é dinâmico, ainda se observam pontos de dissonância, especialmente em relação à proteção do consumidor estruturada no Código de Defesa do Consumidor, que acabam sendo dirimidos pelo Poder Judiciário.

A judicialização da saúde no Brasil, tanto a pública como a suplementar, tem aumentado muito nos últimos anos. O Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde (Geps), da Universidade de São Paulo [1], que acompanha os dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao divulgar análise em junho de 2022, demonstrou que no tocante aos planos de saúde ela aumentou quatro vezes nos últimos dez anos, com crescimento de 391%. Destacam-se as negativas de cobertura, justificadas por não constarem do rol de procedimentos da ANS.

Além do Judiciário, a sociedade também busca a satisfação de seus direitos no âmbito administrativo, por meio dos Procons, Consumidor.gov e das agências reguladoras. Segundo dados de 2021, o Sindec/MJ [2] e o Consumidor.gov [3] receberam respectivamente 1.6% e 0.8% de reclamações referentes aos planos de saúde. A ANS, por sua vez, também recebeu, em 2021, mais de 150 mil reclamações de consumidores que não são atendidos adequadamente por suas operadoras.

O setor de saúde suplementar, especialmente, no que tange à proteção do consumidor é conflituoso e, nesse cenário, o Poder Judiciário, nas questões relativas aos planos de saúde, assume um papel ativo, porque tem a última palavra e a responsabilidade de pacificar os conflitos.

A insegurança jurídica que permeia o setor é um dos fatores preponderantes que ocasiona a crescente judicialização. Isso se dá porque se trata de um tema complexo, em que a solução dos problemas não está clara nas regras vigentes e, também, por ser uma relação de consumo diferenciada, ao afetar um bem constitucionalmente indisponível que é a vida.

A prestação da saúde envolve uma série de questões que têm impacto econômico e social, especialmente com o aumento do desemprego, a perda da renda dos consumidores e o envelhecimento da população, somados a uma expectativa positiva de vida mais longa, além dos custos assistenciais subindo rapidamente em função da vertiginosa incorporação de novas tecnologias, levando-se em conta que os recursos são finitos e agravados pela pandemia global do novo coronavírus decorrente da Covid-19. Acrescente-se as informações que não são compartilhadas entre operadoras, prestadores e consumidores, o que agrava os frequentes conflitos entre os atores do setor.

Por conta disso é importante, quando se inicia um novo governo, refletir sobre o futuro dos planos de saúde e incluir no debate alguns temas que merecem ser incorporados.

Inicialmente, o governo, ao definir as políticas públicas do setor de saúde, deve integrar as informações entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e o sistema privado. É também fundamental para a gestão em saúde investir em mecanismos de informação mais clara e transparente.

O segundo ponto a ser destacado é em relação às indicações dos diretores para a ANS e para os seus cargos comissionados, que devem ser de profissionais técnicos capacitados de notório saber e ilibada reputação, devendo, ainda, ser estabelecidos investimentos para a capacitação contínua dos profissionais da saúde.

No que se refere, especialmente, à regulação da saúde suplementar, é importante que seja acompanhada a Comissão Especial dos Planos de Saúde, na Câmara dos Deputados, com mais de 265 PLs apensados ao PL 7.419/2006, para alterar a Lei dos Planos de Saúde. Entende-se que, para o aperfeiçoamento da regulação, a discussão deve partir dos avanços conquistados até hoje e não retroceder com ideias, que alguns defendem, de planos subsegmentados, acessíveis ou populares, com cobertura reduzida e custos mais baixos. Esses planos podem ter somente consultas, exames, tratamento de alguma doença determinada ou internação hospitalar ou atendimento de pronto socorro. Propõem-se também a liberação de reajustes de mensalidades dos planos individuais, maiores prazos para prestar o atendimento, o fim do ressarcimento do SUS, a redução de multas aplicadas pela ANS e o enfraquecimento de sua atuação. Os defensores dessas propostas sustentam que a oferta de menor cobertura, implicará planos mais baratos, ampliará o acesso ao consumidor e viabilizará, às operadoras, a volta do oferecimento de planos individuais no mercado e, consequentemente, desafogará o SUS. Destaca-se que há alguns anos as operadoras adotaram a estratégia de deixar de oferecer os planos individuais por entenderem que as regras atuais são muito mais flexíveis aos planos coletivos, que hoje representam cerca de 80% do que é comercializado. Em relação a este tema, concorda-se com o estudo elaborado pelo Instituto de Estudos em Políticas de Saúde (Ieps) [4], criado pelo economista Armínio Fraga, que diz que essa ideia sobrecarregará o SUS e aumentará a desigualdade no acesso e na judicialização da saúde.

Cabe salientar que, no início do governo do presidente Lula, em 2003, foi criado um Fórum de Saúde Suplementar, representado por todos os setores envolvidos, com o objetivo de avaliar o marco jurídico vigente, identificando seus prós e contras. Dentre as diretrizes definidas pelo governo de então, constava a Diretriz 3, que se referia à cobertura assistencial, estabelecendo a não permissão à subsegmentação. Nesse diapasão, seria oportuno que o governo Lula 3 constituísse um fórum semelhante e mantivesse a posição adotada anteriormente.

Em relação ao rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS, que trata da cobertura mínima obrigatória pelas operadoras de planos de saúde, entende-se que foi um avanço a aprovação recente da Lei 14.454, de 21 de setembro de 2022, mas vê-se com preocupação a possibilidade da indicação de um procedimento ou medicamento, indicado por um médico, que possa não ter comprovação científica ou não aprovação de um órgão técnico regulador (ex: pílula do câncer ou cloroquina). O legislador deveria ter utilizado a locução aditiva (e) e não a alternativa (ou), portanto, seria oportuno que revisitasse o tema, para alcançar segurança jurídica.

Nesse tema referente à cobertura, seria importante avaliar a hipótese da criação de um órgão técnico único para avaliar a incorporação de novas tecnologias, pautado na medicina baseada em evidência, tanto para o SUS como para saúde suplementar.

É imprescindível, também, a adequação das normas de defesa do consumidor na regulação dos planos de saúde, isto é, a compatibilização ao Código de Defesa do Consumidor.

É fundamental revisitar o Conselho de Saúde Suplementar (Consu), órgão deliberativo de representação interministerial, que tem como atuação definir diretrizes e políticas públicas para elaboração de ações pela ANS, mas desde os primórdios da regulação ficou inerte delegando competência à ANS. Foi restabelecido e proposto um plano para o enfrentamento da Covid-19, um ano após o início da pandemia, ao definir uma política que extrapola a Lei dos Planos de Saúde e sem a participação da ANS, violando a sua autonomia.

Outro tema que merece atenção é a necessidade do atendimento integrado com prontuário eletrônico pessoal e, também, tornar definitiva as práticas de telemedicina e teleconsultas.

Outro assunto que merece aperfeiçoamento é a indução de novos modelos de remuneração dos profissionais de saúde vinculados à qualidade e à eficácia, como alternativa ao fee for service, que estabelece o pagamento de acordo com a solicitação, ainda muito utilizado e gera desperdício.

Seria bastante oportuno o envio ao Poder Legislativo de um PL com tipificação de crimes contra fraude e de desvios de recursos na saúde.

Todo o debate da saúde deve ser focado no cidadão e consumidor, lembrando sempre que o atendimento deve ser humanizado, respeitando a dignidade humana. É fundamental para construirmos um país mais justo, igualitário e solidário estarmos todos unidos, dialogando para encontrarmos um caminho com políticas públicas eficazes.

Desse modo, para que essas propostas sejam incluídas no debate, faz-se urgente a participação e o envolvimento de todos os atores desse setor: o poder público, as operadoras, os prestadores de saúde e, especialmente, os órgãos e entidades de defesa do consumidor. Visando o quê? A consolidação de um mercado de saúde responsável, transparente, ético e justo, para a efetiva construção de um setor virtuoso, com ganhos positivos, em que todos os agentes possam se beneficiar, buscando o tão almejado equilíbrio, a fim de se garantir os avanços conquistados e rechaçar qualquer forma de retrocesso ao marco regulatório da saúde suplementar.

 


[1] Mario Scheffer. Decisões judiciais sobre planos de saúde têm recorde histórico em São Paulo. GEPS-DMP/FMUSP São Paulo: 2022.

[2] www.justiça.gov.br/consumidor/sindec. Acesso em 19.12.2022.

[3] www.consumidor.gov.br/pages/indicador/infográfico. Acesso em 19.12.2022.

[4] https://ieps.org.br/nota-tecnica-24/

Autores

  • é advogada, mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, professora da PUC-SP, diretora do Brasilcon, ex-diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e assistente de direção do Procon/SP.

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