Diário de Classe

Retrospectiva Dasein 2022: fascismo nunca más!

Autores

  • Luã Nogueira Jung

    é doutor e mestre em Filosofia pela PUC-RS pós-doutorando em Direito Público (Unisinos) professor do PPGD Unedsa-RJ e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

24 de dezembro de 2022, 9h43

Estamos chegando ao fim de mais um ano. Nesta época, costumamos lançar um olhar retrospectivo e avaliativo em relação aos acontecimentos e realizações que marcaram o caminho percorrido. Este balanço serve para estabelecermos uma postura crítica em relação àquilo que deve ser melhorado e, ao mesmo tempo, celebrarmos as vitórias e renovarmos a esperança quanto ao futuro. Enquanto membros do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos), grupo de pesquisa coordenado pelo professor Lenio Streck, gostaríamos de desenvolver neste texto a nossa breve retrospectiva do ano, marcada por produções, eventos e diálogos enriquecedores para o debate acadêmico. Enquanto pesquisadores de teoria do direito, preocupados com os rumos da democracia e do constitucionalismo, há de se destacar, também, o período nebuloso pelo qual passamos e do qual, a partir de 2023, desejamos nos afastar cada vez mais.

Nós e nossos colegas de pesquisa, no entanto, não vivemos apenas imersos no mundo das formas teóricas e análises jurídicas. Boa parte de nossas conversas também é ocupada por debates sobre cultura e, claro, futebol. Nesse sentido, ainda que preferíssemos falar de conquistas brasileiras nessas áreas, são nossos hermanos argentinos que merecem reconhecimento. Como todos sabem, a seleção argentina se consagrou tricampeã mundial da Copa do Mundo do Qatar, trazendo a taça para a América do Sul após 20 anos da conquista do Brasil, revertendo, assim, o ciclo de seguidas vitórias de seleções europeias. Em que pese a marcante rivalidade entre as nossas escolas de futebol, o fato é que Lionel Messi e seus companheiros restituíram a autoridade e a tradição do futebol latino-americano, proporcionando a todos nós, como o futebol às vezes o faz, o sentimento de pertencimento comunitário que transcende o mero jogo e os interesses econômicos e políticos (muitas vezes escusos) que o cercam.

Não é apenas em razão do futebol, todavia, que a Argentina merece nossos aplausos. A produção cinematográfica Argentina, 1985, filme dirigido por Santiago Mitre e estrelado por Ricardo Darín, narra a história verídica do Julgamento das Juntas, que processou e condenou militares responsáveis pelo período mais obscuro da vida política do país e, possivelmente, pela ditadura mais cruel dentre aquelas que se estabeleceram na América do Sul na segunda metade do século 20, a exemplo de outros casos como o Brasil, Chile e Uruguai. Estima-se que a ditadura argentina seja responsável pela morte e desaparecimento de mais de 30 mil pessoas, além do estabelecimento da tortura como método cotidiano de enfrentamento de grupos políticos opositores ao regime. Os promotores Julio Strassera, interpretado por Darín, e Luís Moreno Ocampo, interpretado por Juan Pedro Lanzani, foram os responsáveis por conduzir a acusação contra o núcleo de comandantes militares responsável pela manutenção deste estado de exceção que perdurou por cerca de 20 anos.

O Julgamento das Juntas foi o primeiro no mundo feito por um tribunal civil contra militares que haviam ocupado o poder. Contra todas as expectativas institucionais da época, enfrentando pressões políticas e ameaças, os promotores obtiveram a condenação severa dos principais responsáveis. O esclarecimento e a punição dos militares na Argentina solidificou na consciência coletiva a aversão nacional a este período histórico e à concepção autoritária que o sustentou. Nesse quesito, nossos conterrâneos sul-americanos também deram um passo à frente em relação à nossa história institucional. Como sabemos, o processo de anistia brasileiro não levou a investigação e punição de arbitrariedades do regime militar às últimas consequências, o que, de maneira decisiva, contribui para os discursos anacrônicos e antidemocráticos que ainda persistem no debate público nacional.

Em síntese, o filme 1985 representa um momento de virada para o constitucionalismo contemporâneo e a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário representada na tela espelha, em última instância, o compromisso do Direito com a dignidade humana. Como afirma o professor Lenio em diversas oportunidades, a partir do constitucionalismo contemporâneo a relação entre direito e política é invertida: a promoção de objetivos sociais e a elaboração legislativa passam a ser subordinadas à autoridade dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais. Eis, nesse sentido, a relevância da jurisdição constitucional para a institucionalidade democrática. O Direito e a Constituição passam a ser condição de possibilidade do político. As implicações desta ruptura paradigmática ainda ecoam e geram conflitos no nosso cenário institucional. A normatividade do Direito e a exigência de uma atividade jurisdicional garantidora entram constantemente em choque com o ranço autoritário e com o espírito patrimonialista que persistem no imaginário e nas práticas sociais do nosso país.

Não é à toa que a epígrafe de Os donos do poder, de Faoro, é extraída de Nietzsche: "não apenas da razão de milênios — a sua loucura também irrompe em nós. É perigoso ser herdeiro" (Nicht nur der Vernunft von Jahrtausenden — auch ihr Wahnsinn bricht an uns aus. Gefährlich ist es, Erbe zu sein). Como afirma Streck, a redemocratização e a "virada constitucional" em países de modernidade tardia apresentam um desafio que ainda é atual: afinal, como olhar o novo com os olhos do novo? Como o exercício teórico e prático do direito pode se libertar das amarras de uma tradição que, a partir da hermenêutica filosófica, podemos chamar de inautêntica, e concretizar a frase que encerra a arguição de Julio Strassera no Julgamento das Juntas e que deu nome ao relatório da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep) — Nunca más! — ?

É sobre a relevância do constitucionalismo contemporâneo e do papel da jurisdição para a efetivação e defesa dos princípios democráticos que tratam os dois grandes projetos de 2022 vinculados ao Dasein: primeiro, a publicação da 7ª edição da obra Jurisdição Constitucional, do professor Streck[3]. A obra apresenta aos estudantes, advogados, professores e pesquisadores a relação entre a teoria da constituição e a dogmática constitucional, tendo em vista, de um lado, a referida proeminência da atividade judicial nesta quadra da história e, de outro, o necessário, e nem sempre pacífico, diálogo da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário em sentido geral com as demais instituições e poderes da republicanos. Nesse sentido, a obra é reeditada com um post scriptum inédito intitulado O futuro da jurisdição constitucional.

O outro grande evento promovido pelo Dasein no ano que se encerra foi a realização do 5º Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito — A teoria do Direito e o futuro da jurisdição. Com cerca de 400 participantes inscritos, o evento, que aconteceu entre os dias 25 e 26 de outubro, contou com a participação dos ilustres professores doutor Gilmar Ferreira Mendes, Luís Roberto Barroso, Georges Abboud, Clarissa Tassinari, Rafael Tomaz de Oliveira, Ziel Ferreira Lopes, Luã Nogueira Jung, Gilberto Morbach, Juraci Mourão Lopes Filho e Lenio Streck. Houve também mostra de trabalhos, onde foram realizadas cerca de 30 exposições  que abordaram diversos temas relacionados à filosofia do direito e ao direito constitucional.

Entre textos publicados em periódicos, referimos, por ordem cronológica, o artigo Livre convencimento judicial e verdade: crítica hermenêutica às teorias de Ferrajoli, Taruffo e Guzmán, de autoria conjunta dos professores Lenio Streck e Luã Jung na revista NEJ (Novos Estudos Jurídicos)[4], assim como o artigo O futuro da jurisdição constitucional: diálogos entre mudança institucional e teorias da interpretação, do professor Lenio em parceria com o professor Ziel Ferreira Lopes na Revista de Direitos e Garantias Fundamentais[5].

Também merece congratulações o estágio de pesquisa, doutorado sanduíche, realizado pelo nosso colega Gilberto Morbach na Universidade de Cambridge. Gilberto foi orientado pelo reconhecido professor Matthew H. Kramer, cujas teses acerca do positivismo jurídico exercem forte influência no debate acadêmico global.

Entre as aulas de mestrado e doutorado[6]  ministradas pelo professor Lenio nos programas de pós-graduação em Direito da Unisinos e Unesa, acompanhadas sempre pelos integrantes do grupo, tivemos emblemáticas defesas e qualificações de trabalhos. O colega da Unisinos Guilherme de Oliveira Zanchet defendeu, perante a banca composta pelos professores Gerson Neves Pinto e Luã Jung, a dissertação intitulada Jusnaturalismo e positivismo jurídico: Moralidade, método e caminho do meio.

No âmbito das pesquisas de doutorado foram defendidas as teses Mediação nos conflitos: uma perspectiva crítica sobre a potencialidade de uma justiça de compartilhamento para a efetivação de direitos e cidadania, de autoria de Cláudia Ernest Pereira Rohden, com banca composta pelos professores: dra. Ísis Boll de Araujo Bastos (Unifesp); dra. Fernanda Marion Spengler (Unisc); dr. Adriano Moura Da Fonseca Pinto (Unesa) e dr. André Luiz Olivier da Silva (Unisinos); As três perguntas fundamentais da crítica hermenêutica do direito: a aplicabilidade de uma proposta de limites à atuação do Poder Judiciário no Brasil, defendida pela professora Isadora Ferreira Neves contou com a participação dos professores dr. Fausto Santos de Morais (Imed); dr. Ziel Ferreira Lopes (Univasf), dr. Luã Nogueira Jung (Unesa) e dra. Clarissa Tassinari (Unisinos). No segundo semestre deste ano, foram defendidas as teses Jurisdição constitucional de crise: Análise e proposta hermenêuticas para a jurisdição constitucional extraordinária brasileira, de autoria de Pietro Cardia Lorenzoni, perante a banca composta pelos professores dr. André Luiz de Almeida Mendonça (Mackenzie/ministro STF), dr. Gilmar Ferreira Mendes (IDP/ministro STF), dr. Francisco José Borges Motta (FMP) e dr. Anderson Vichinkeski Teixeira (Unisinos), bem como a tese Tribunais de Contas e o controle da atividade-fim da administração pública: políticas públicas e regulação Legitimidade e limites das decisões das Cortes de Contas sob a abordagem de uma teoria da decisão democraticamente construída, de autoria de Maicon Crestani. O trabalho foi avaliado pela banca composta pelos professores dr. Bruno Dantas (FGV/TCU), dr. Rafael Tomaz de Oliveira (USP/Ribeirão Preto); dra. Clarissa Tassinari (Unisinos) e dra. Temis Limberger (Unisinos). Todos os trabalhos podem ser encontrados no repositório de teses e dissertações da Unisinos[7].

Importante mencionarmos, por fim, que foram qualificados promissores projetos de pesquisa ao longo de 2022, a saber: o projeto de dissertação O que é isto: a crítica hermenêutica do direito de Lenio Luiz Streck?, de Vinicius Quarelli, e o projeto de tese A leitura moral da CHD: Teoria do direito e as questões substantivas de justiça, de Luísa Giuliani.

Como a intenção é fazer um apanhado da nossa produção e dos principais acontecimentos, também não podemos deixar de mencionar os colegas que se juntaram ao grupo de pesquisa neste ano. No mestrado, chegaram o Victor Bianchini Rebelo, o Óliver Vedana e a Giovanna Dias, que já participava ativamente do grupo como pesquisadora de iniciação científica desde 2018. No doutorado, ainda em dezembro, recebemos a notícia da aprovação no processo seletivo do colega Lenardo Longen do Nascimento, mestre pela Furb que intensificou os seus diálogos com a Crítica Hermenêutica do Direito a partir encontros dos Grupos de Estudo Hermenêutica Filosófica: uma introdução e Ronald Dworkin: uma introdução, promovidos pelo Dasein, respectivamente, no primeiro e segundo semestres do ano.

Este é um breve apanhado da produção conjunta do nosso grupo de pesquisa, capitaneado pelo professor Lenio Streck. Como o leitor deve ter percebido, todos os trabalhos escritos e debates travados durante o ano refletem o compromisso do professor ao longo de décadas, bem como dos demais membros, com a defesa da Constituição, do Direito e da democracia. Como sabemos, 2022 foi um ano institucionalmente turbulento, em que vozes de um passado não tão distante pretenderam, ainda que de maneira delirante, colocar em dúvida o pacto civilizatório que desde 1988 vigora entre nós. No entanto, como havia de ser, a democracia e o Direito venceram o jogo, mesmo sem poder contar com o  fair play de seus adversários. A partir de cada texto e fala em favor da Constituição, estamos unidos com nossos vizinhos argentinos e demais sul-americanos para dizer, de maneira uníssona: fascismo, nunca más!


[3] O professor Lenio Streck também publicou em 2022 a 2ª edição da obra Para compreender Direito: a hermenêutica jurídica (https://editorial.tirant.com/br/libro/para-compreender-direito-a-hermeneutica-juridica—2-edicao-lenio-luiz-streck-9786559084081) e a obra Precedentes judiciais e a hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015 (https://www.editorajuspodivm.com.br/precedentes-judiciais-e-hermeneutica-2023)

[6] Foi publicado com o financiamento do CAPES/PROEX o primeiro volume do que pretende ser uma coleção com publicações anuais chamada “Diferentes questões jurídicas a partir da Crítica Hermenêutica do Direito”, que reúne os trabalhos dos alunos de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS apresentados na disciplina de Hermenêutica, Interpretação do Direito e Linguagem, ministrada pelo prof. Lenio Streck. O livro é gratuito e pode ser acessado no link: https://www.fundarfenix.com.br/ebook/190hermeneutica.

[7] http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/1565

Autores

  • é professor do programa de pós-graduação em Direito da UNESA; mestre e doutor em Filosofia (PUC-RS); pós-doutorando em Direito Público (UNISINOS); membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos; e advogado.

  • é doutoranda e mestre em Direito Público pela Unisinos (RS), bolsista Capes/Proex e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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