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Para especialistas, Brasil precisa de lei específica sobre falsificação de quadros

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24 de dezembro de 2022, 7h31

O Brasil precisa criar uma lei específica para punir falsificação de obras de arte, pois a legislação em vigência está baseada no Código Penal de 1940, que não prevê um crime específico neste caso e limita-se a tipificar genericamente a "violação de direito autoral" no seu artigo 184, e na Lei 9.610/1998. Essa é a opinião de advogados ouvidos pela ConJur.

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Justiça avalia se quadro Bandeirinhas, de Alfredo Volpi, foi falsificado
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O Brasil tem desempenhado, nos últimos anos, um papel relevante, no panorama artístico internacional, quer como país-fonte quer como país-destino de bens culturais. Bens lícitos e ilícitos. Por um lado, o da licitude, há diversos artistas brasileiros, vivos e mortos, muito bem avaliados no mercado internacional.

"No último ano, nós exportamos US$ 200 milhões em obras de arte, segundo o banco suíço UBS. Além disso, o país tem consumido mais e mais bens culturais, de modo que nossos colecionadores já aparecem entre os atores globais de alta relevância. Nossas grandes coleções privadas só perdem para as francesas em números de obras (69 x 62, em média). Italianos, americanos, alemães, chineses e ingleses ficam atrás", ressalta Marcílio Franca, procurador-chefe da força-tarefa do Patrimônio Cultural do Ministério Público de Contas da Paraíba.

"Por outro lado, o da ilicitude, a Interpol aponta o Brasil como 26º país com maior número de roubos e furtos de arte no mundo. Um desses episódios, o assalto ao Museu Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, em 2006, ainda hoje sem solução, é considerado pelo FBI o 7º maior crime com obras de arte da história. Segundo as red-lists do Conselho Internacional de Museus, urnas indígenas da região amazônica e estatuária religiosa barroca têm sido o alvo preferencial de ladrões de bens culturais. A esse quadro se soma a ampla oferta quase diária de leilões de arte online, presenciais e até por canais de televisão a cabo no país. Ao contrário de outros países, o brasileiro é o colecionador que mais compra em leilões", descreve Franca, que também é professor da Universidade Federal da Paraíba e integrante de órgãos internacionais de proteção a direitos autorais.

De acordo com o procurador, "todos esses indicadores apontam para a necessidade de uma legislação mais eficiente sobre a proteção de bens culturais, para trazer mais segurança jurídica para todos os atores envolvidos — artistas, colecionadores, galerias, casas de leilão, seguradoras, entre outros. Uma legislação melhor tende a minimizar os riscos e a tornar sustentável o boom econômico”.

As falsificações, cópias e vendas de obras de artes estão muito presentes no mercado. Isso se deve a vários fatores, entre os quais a pouca formação técnica de galeristas, leiloeiros e colecionistas, estes últimos sempre desejando a chamada obra-troféu, segundo o advogado Raimundo Taraskevicius Salles. Nesse contexto, as falsificações de arte passam a ser um grande “negócio”. “Para se ter uma ideia do problema, estima-se que entre 300 mil a 400 mil falsificações são colocadas no mercado mundial de artes por ano”, afirma Salles.

“Esse crescimento do mercado brasileiro de arte é bastante considerável nas últimas décadas, com mais artistas reconhecidos internacionalmente, amantes e colecionadores, todos com interesse na rentabilização de suas obras criativas. Tal crescimento foi impulsionado ainda pela popularização de ferramentas digitais para comercialização, casas de leilão, galerias e exposições no ambiente online, que possibilitaram maior acesso e dinâmica ao mercado. Esse crescimento do mercado também trouxe externalidades, e a falsificação de obras se tornou mais frequente”, reitera o advogado Fabrício Polido, sócio de Inovação & Tecnologia e Solução de Disputas do L.O. Baptista Advogados.

Conforme Lisiane Feiten Wingert Ody, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora do livro Direito e Arte, atualmente o Direito brasileiro conta com normas impondo penas de natureza civil previstas na Lei de Direitos Autorais (artigos 102 e seguintes) e os crimes de falsidade documental estão tratados a partir do artigo 296 do Código Penal, assim como o estelionato, estabelecido no artigo 171 da norma. A questão é como dar efetividade a essas ou a novas normas que precisam ser criadas.

Entendimento semelhante é da criminalista Maria Jamile José. “O mercado da arte no Brasil padece com a parca regulamentação — inclusive extrapenal. Além disso, o mercado nacional vem testemunhando rápida evolução do nos últimos anos, tanto em volume e formatos de venda — como sites de leilão virtual, por exemplo -, quanto na tecnologia das obras — como NFTs e hologramas. Assim, novo regramento legal — que englobe aspectos cíveis e criminais — pode ser bem-vindo para trazer mais segurança a compradores e vendedores”, explica.

Para se constatar uma falsificação, “a maior dificuldade reside na perícia e na constatação da falsidade", aponta Edson Knippel, advogado e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. "E também na identificação da falsificação, já que muitas vezes os casos de falsidade não são registrados. A descoberta da falsificação pode redundar na apuração de outros crimes, tais como organização criminosa e lavagem de capitais”.

E por que isso? De acordo com Raimundo Tarakevicius Salles, diante do volume de falsificação que se tem conhecimento, verifica-se que a aplicação de penalidades está muito aquém das ocorrências dessa modalidade de crime. “O fato é que as melhores falsificações de arte no Brasil, encontram-se hoje nas paredes das famílias abastadas brasileiras, que não sabem e sequer suspeitam que são falsos”, observa o advogado.

Nova lei
Uma nova legislação para o segmento, diz Marcílio Franca, precisa estar acompanhada de instrumentos cíveis, administrativos e corporativos que levem o Estado a atuar em várias direções.

"A criminalidade com obras de arte se vale, muitas vezes, das mesmas estruturas logísticas do crime organizado ligado ao tráfico de drogas, de armas e de pessoas, à corrupção e ao terrorismo. A lavagem de dinheiro também está frequentemente associada. Além do mais, quem rouba arte pode vir a maquiar um quadro autêntico para tentar reintroduzi-lo no mercado ou mesmo criar uma obra inteiramente falsa para vendê-la aos mesmos ‘clientes’ habituais. Disso resulta que a criminalidade com bens culturais é complexa e multifacetada, e uma legislação eficiente requer uma abordagem plural", aponta o procurador.

"Uma nova legislação penal sobre falsificação de quadros é oportuna e bem-vinda, mas a norma criminal, a ultima ratio do controle estatal em termos de severidade, velocidade e custo das punições, deve ser acompanhada de instrumentos cíveis, administrativos e corporativos que levem o Estado a atuar nas seguintes direções: 1) salvaguarda do patrimônio cultural, 2) dinamização e incentivo do mercado de arte, 3) proteção dos artistas e dos consumidores de arte, e 4) luta contra o tráfico de bens culturais, a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo com bens culturais", analisa Franca.

O crescimento dos leilões online agravou o cenário das falsificações. Um dos motivos para isso é que, presencialmente, especialistas em artes e colecionadores mais entendidos conseguem avaliar melhor se a obra é verdadeira ou não, destaca Fabricio Polido. Contudo, no ambiente online essa tarefa se torna mais complicada, dependendo de certificações que o vendedor apresenta.

Hoje a legislação criminal é débil em relação a essa prática, demandando processos criminais longos e inconclusivos. Assim, “a criminalização desta conduta deve ficar clara em um novo projeto de lei que venha a tramitar no próximo Congresso Nacional, inclusive com um possível cadastro nacional de leiloeiros, galeristas que possam sejam condenados criminalmente e impedidos de manter se neste mercado”, sugere Salles.

“Atualmente os casos de venda e compra de falsificações ocorrem principalmente no ambiente virtual, no qual produto oferecido possui autenticações fraudulentas. É comum, que os envolvidos na transação aleguem agir de boa-fé, alheios às falsificações, tendo adquirido o produto de terceiros que já possuíam autenticação falsa antes. Em princípio, a criminalização de condutas nesse segmento, salvo pela repressão à falsificação pelo falsário, não deve ser a regra. A parte que compra ou comercializa poderia ser responsabilizada civilmente com indenizações mais significativas a serem pagas para o autor, titular dos direitos de propriedade intelectual ou sucessores”, diz Polido.

Uma nova lei sobre falsificação de obras de arte, segundo os especialistas, deve ainda punir quem pratica a falsificação e quem vende a obra de arte.

“Todos que se aproveitam da falsificação devem ser punidos. Atenção: a cópia em si não é crime. Alguém pode ter reproduzido uma peça para fins de aprendizagem, o que é perfeitamente legal, já que o ser humano aprende, em regra, pela reprodução. É apenas quando a peça é vendida como se original fosse que há crime. Portanto, quem copiou pode ser inocente e quem vendeu pode ser o único responsável”, explica Lisiane Feiten Wingert Ody.

Ela ressalta que quem vende, leiloa, adquire obra falsificada, sabendo que não é original, também deve receber a mesma pena de quem falsifica. “Por sabê-lo e tomar parte na fraude, falsificação ou estelionato, entre outras condutas”, avalia a professora.

Entretanto, é necessário distinguir o comprador que procedeu a todas as cautelas razoáveis, a tal “due diligence”, e atua de boa-fé, daquele outro comprador que não tomou nenhum cuidado, agindo no limite da irresponsabilidade ou má-fé.

“São duas condutas completamente distintas, que merecem tratamento diverso do direito — um deve ser punido, o outro indenizado. Um comprador eventual ou iniciante não pode ser equiparado a um marchand, um negociante profissional de obras de arte ou um colecionador experiente. Hoje, em um rápido passeio pela internet, é possível encontrar vários Tarsila, Iberê, Guignard, Volpi e Di Cavalcanti a preço de banana. Nessas condições, nada disso é crível”, ressalta Marcílio Franca.

Atuação da Justiça
Atualmente, a Justiça brasileira tem julgado os casos de falsificação de obra de arte com recurso complexos, caros e demorados exames de perícia de autenticidade de obras de arte.

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Masp pode já ter abrigado quadros falsificados
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Esses exames envolvem múltiplas metodologias, tais como a proveniência e merceologia da obra, a grafoscopia da assinatura do artista, os aspectos formais e estilísticos da peça, a espectroscopia Raman sobre os materiais químicos utilizados como pigmentos, a fotografia sob iluminação rasante para detecção de relevos estilísticos e caligráficos, a microscopia eletrônica de varredura acoplada a sistemas de análise de raios-x, exames de imagem com luz ultravioleta ou infravermelho, scanners 3D, entre outras.

A busca pela autenticidade de uma obra é um enorme desafio tecnológico multidisciplinar. Nos últimos anos, tanto a Polícia Federal como algumas Polícias Civis, além de boas instituições acadêmicas (Universidade de São Paulo, Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal do Paraná, Instituto Federal do Rio de Janeiro) investiram nessa área pericial, adquirindo equipamentos e capacitando técnicos.

Projetos em tramitação
Tramitam no Congresso Nacional dois projetos de lei sobre o tema, o PL 5.702/2001, do ex-senador Edison Lobão (MDB-MA), e o PL 4.293/2020, do deputado e delegado federal Felício Laterça (PP-RJ, não reeleito). Ambos estão apensados e aguardam a designação de um relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados.

O projeto Laterça se limita a tipificar a falsificação de assinatura do autor que conste de uma futura relação de artistas tombados. O texto não criminaliza a falsificação de obras de arte mais antigas, que não eram assinadas por seus autores. Aleijadinho, por exemplo, nunca assinou uma escultura. O PL tampouco protege artistas contemporâneos, cujas obras ainda não foram tombadas.

“Aliás, o projeto fala em ‘Relação de Artistas Nacionais Tombados’ pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Porém, o Iphan não tomba pessoas, apenas bens. Tampouco é alcançada pelo projeto Laterça uma obra autêntica roubada, cuja aparência é maquiada (mas não a assinatura), apenas para que seja ‘esquentada’ e recolocada no mercado. Também fica de fora do alcance do PL a falsificação, em território nacional, de obras de artistas estrangeiros, criando aqui uma espécie de paraíso normativo”, explica Franca.

O projeto Lobão traz repercussões nas searas cível, administrativa e penal e — com uma redação mais ampla que a do projeto Laterça —criminaliza a conduta de imitar ou alterar com fraude obra de arte e as condutas de circulação econômica de obras fraudulentas. São possíveis alguns ajustes também.

“O projeto Lobão, todavia, já recebeu um parecer pela inconstitucionalidade. O PL cria, por exemplo, um arriscado rol oficial de especialistas técnicos e jurídicos para dar vereditos sobre a autenticidade de obras de artes. O texto não apresenta critérios claros para o ingresso nessa corporação, algo que, à primeira vista, parece conflitar com os princípios constitucionais da livre-iniciativa e livre-concorrência, além de criar ruídos com as competentes áreas técnicas do Iphan, Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e Polícia Federal” analisa o procurador do Ministério Público de Contas da Paraíba.

Há ainda um terceiro projeto de lei em andamento, que, embora não trate especificamente de falsificação de obras de arte, tem repercussão nesse campo. Trata-se do PL 4.516/2019, de autoria do deputado e tabelião Denis Bezerra (PSB-CE, não reeleito). Sob o argumento de aumentar a segurança jurídica e a transparência do mercado de arte, o projeto modifica a Lei de Registros Públicos para tornar obrigatório o registro em cartório de obras de arte de valor igual ou superior a R$ 25 mil.

Entretanto, todos “esses projetos já se encontram desatualizados, visto que não alcançam todas as formas e tecnologias de obras de arte atualmente no mercado”, observa Maria Jamile José.

“Se faz necessário que o novo governo eleito, bem como a nova composição das casas legislativas, promova a discussão com juristas, técnicos e toda área da cultura para elaboração e votação de um novo ordenamento jurídico para tratar deste tema”, sugere Raimundo Tarakevicius Salles.

Casos famosos no Brasil
"No Brasil, aguarda-se atualmente o desfecho do palpitante caso envolvendo Abilio Diniz, empresário do Grupo Pão de Açúcar, e sua mulher, Geyse Marchesi, que, após contato do diretor-presidente do Museu de Arte de São Paulo (Masp), Heitor Martins, na sequência de jantar oferecido pelo casal à cúpula do museu, passaram a questionar a autoria de telas que guarneciam as paredes do lar", conta Lisiane Feiten Wingert Ody. 

"Os quadros em questão eram atribuídos a Alfredo Volpi, sendo designados Bandeirinhas e Bandeirinhas com mastro, e foram adquiridos do marchand Marcelo Barbosa, da galeria Pintura Brasileira. O processo, iniciado em 2017, teve a instrução encerrada em 8 de março de 2021, o que aumenta a expectativa a respeito da solução que será adotada pelo juízo de primeira instância. Não obstante, é bom lembrar que não é raro o impasse entre experts — o que não pode, todavia, servir de fundamento para a ausência de julgamento de mérito”, diz a especialista.

Caso clássico de falsificação no Brasil, segundo Marcílio Franca, é o famoso caso do Picasso do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).

“A gravura encontrada nos porões da autarquia previdenciária, resgatada corajosamente de um incêndio por um bombeiro que arriscou a vida para recuperar uma obra cuja autenticidade é amplamente controvertida. A peça deve ter sido objeto de dação em pagamento por alguma dívida previdenciária. O INSS, porém, nunca revelou de quem recebeu, por quanto foi avaliado e quem atestou a sua autenticidade”, conta.

Houve ainda, em meados da década de 1990, uma grande descoberta de Portinaris "fabricados" na favela do Vidigal, no Rio de Janeiro, ao lado de obras atribuídas a Picasso, Chagall e Miró, todos colocados à venda numa galeria em Ipanema. Nos anos 1970, o italiano Paolo Businco, da galeria Collectio, teria vendido um suposto Modigliani à família Álvares Penteado, doado ao Masp.

Também são famosos os muitos falsos encontrados pelo marchand e leiloeiro Renato Magalhães Gouvêa na coleção do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo do estado de São Paulo, em meados da década de 1970. Durante algum tempo, um shopping no coração de Copacabana, o “Shopping dos Antiquários” ou “Cidade Copacabana”, teve a má fama de ser “o maior entreposto de obras falsas do país”, de acordo com registros da imprensa à época.

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