Retrospectiva 2022

Ano foi de impactos duradouros no direito concorrencial

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23 de dezembro de 2022, 9h28

2022 foi marcado por mudanças importantes no arcabouço legal do direito da concorrência e na estrutura do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Em abril tomaram posse Alexandre Barreto de Souza (presidente do Cade entre 2017 e 2021), como superintendente-geral, e Gustavo Augusto de Lima, como conselheiro, preenchendo posições vagas desde 2021. Em junho, tomou posse o conselheiro Victor Oliveira Fernandes, recompondo o quórum do Tribunal do Cade, que não estava completo desde meados de 2021.

Spacca
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Além dessas nomeações, o ano foi marcado por alteração relevante na estrutura da Superintendência-Geral (SG), com a criação unidade especializada na investigação de condutas unilaterais. Após o sucesso do fortalecimento do programa de combate a cartéis e da consolidação do regime de análise prévia de atos de concentração, a comunidade antitruste no Brasil e no mundo discutiam a importância de o Cade passar a imprimir mais esforços na investigação de condutas unilaterais. Condutas unilaterais são conhecidas pela dificuldade em sua análise, já que exigem uma distinção muitas vezes sutil entre concorrência vigorosa (que o direito da concorrência busca promover) e condutas exclusionárias capazes de gerar efeitos anticompetitivos. A criação de uma unidade especializada pode ser um passo importante para a evolução dos parâmetros de análise de condutas unilaterais e maior celeridade nas investigações.

No que diz respeito ao arcabouço legal do direito da concorrência, houve importante desenvolvimento com a promulgação da Lei nº 14.470/2022, que introduziu alterações à Lei nº 12.529/2011 buscando criar incentivos a ações de reparação privada de danos concorrenciais, ainda raras no Brasil. Dentre as principais alterações introduzidas pela nova Lei, destacam-se: (a) danos gerados por condutas concertadas e influência a conduta comercial uniforme deverão ser ressarcidos em dobro (double damages); (b) empresas que celebrarem Acordos de Leniência e Termos de Compromisso de Cessação com o Cade estarão isentas da reparação de danos em dobro e de responsabilidade solidária por danos causados por outros infratores; e (c) o prazo prescricional para ações de reparação de danos será de 5 anos contados da ciência inequívoca pela vítima, que a Lei estabelece como a "ocasião da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo Cade". Essas alterações devem ser consideradas com atenção, pois podem resultar em mudanças importantes no panorama das ações de reparação de danos por cartéis nos próximos anos.

O ano também foi prolífico em casos que demandaram atenção e discussões detalhadas no âmbito do Cade. Muitos deles geraram precedentes importantes que serão referências em futuros casos. Analisamos os principais casos divididos entre os três principais eixos de discussão: (i) análise de atos de concentração (fusões e aquisições); (ii) análise de condutas unilaterais (especialmente casos de abuso de posição dominante); e (iii) condutas colusivas (cartel e troca de informações sensíveis).

Análise de atos de concentração
O Cade analisou atos de concentração complexos ao longo de 2022, que demandaram a imposição de remédios para a proteção da concorrência. Por isso, o ano foi marcado pela aplicação de uma variedade de pacotes de remédios estruturais e comportamentais, elaborados de maneira específica para cada situação concreta. Merecem destaque os seguintes casos:           

– Em janeiro, o Tribunal do Cade aprovou, com restrições, a incorporação, pela Bus Serviços de Agendamento S.A., que atua na comercialização de passagens rodoviárias online,  da totalidade do capital social da J3 Operadora, que atua na integração e intermediação entre plataformas online e viações rodoviárias (serviço de Global Distribution System — GDS)[1]. O Tribunal entendeu que as integrações verticais entre as atividades das empresas despertavam riscos de fechamento de mercado, condicionando a aprovação da operação a remédios comportamentais que incluem o fim de políticas de exclusividade, obrigações de isonomia e não discriminação, e governança do acesso a informações concorrencialmente sensíveis.

– Em fevereiro, o Tribunal aprovou com restrições a venda dos ativos de telefonia móvel da Oi para suas concorrentes Tim, Claro e Telefônica (em conjunto "TTC")[2]. Em votação apertada, o conselheiro relator defendeu a reprovação da operação, argumentando que resultaria em prejuízo à competição no mercado de serviço pessoal móvel. A operação acabou aprovada, com voto de desempate proferido pelo presidente do Cade, condicionada a uma série de remédios comportamentais e estruturais, incluindo o fornecimento de acesso a espectro a concorrentes no mercado de telefonia móvel e a alienação de infraestrutura passiva.

– Em maio, o Tribunal aprovou a aquisição[3] da totalidade das ações do Grupo Big pelo Atacadão, do Grupo Carrefour, condicionada a remédios estruturais consistentes no desinvestimento de unidades de varejo de autosserviço nos municípios em que a participação combinada das partes era muito elevada. De maneira semelhante, em junho, o Tribunal aprovou a aquisição[4] da Extrafarma pela Pague Menos, condicionando-a ao desinvestimento de determinadas unidades nas regiões Norte e Nordeste.

– Em agosto, o Cade aprovou, com restrições, a compra, pela Ream Participações, da Refinaria Isaac Sabbá (à época subsidiária integral da Petrobras)[5]. A operação, que foi parte de uma série de obrigações assumidas pela Petrobras junto ao Cade para promover a entrada de novos agentes no setor de refino de petróleo, foi inicialmente aprovada pela SG, chegando ao tribunal após recursos de distribuidoras de combustíveis e GLP. Diferentemente da SG, o tribunal entendeu que a operação geraria riscos à concorrência, condicionando a aprovação a remédios que buscam aumentar a rivalidade no fornecimento de combustíveis e garantir o acesso de rivais ao terminal aquaviário da Reman.

– Em dezembro, o tribunal aprovou com restrições a formação de joint-venture, sediada na Alemanha, entre Volkswagen, BMW, Mercedes-Benz, BASF, Bosch, Henkel, SAP, Schaeffler, Siemens, T-Systems e ZF, com o objetivo de criar uma plataforma para possibilitar trocas de dados na cadeia produtiva do setor automotivo de forma a promover cooperação tecnológica e inovação[6]. A SG havia aprovado a operação sem restrições, mas o tribunal decidiu avocar o caso para aprofundar a análise. Ao final, a aprovação foi condicionada a remédios voltados à governança nas interações e trocas de informações entre os usuários dos sistemas de tecnologia da JV.

– Ainda em dezembro, o Tribunal aprovou sem restrições a aquisição da Operadora de Plano de Saúde SulAmérica pela Rede D’Or[7]. Após a aprovação pela SG, o Ato de Concentração contou com um número recorde de recursos ao Tribunal por parte de terceiros interessados, que apontaram riscos de fechamento de mercado e acesso a informações concorrencialmente sensíveis.

Condutas unilaterais
Quanto a condutas unilaterais, destacaram-se ao longo do ano casos envolvendo acordos de exclusividade e práticas alegadamente discriminatórias em face de rivais. Em especial, vale destacar os seguintes casos:

– Em fevereiro, o Cade concedeu medida preventiva solicitada em Recurso Voluntário[8] interposto pela TotalPass Participações Ltda. (TotalPass) para suspender cláusulas de exclusividade e paridade (Most Favoured Nation — MFN) firmadas com academias de ginástica pela GPBR Participações Ltda. (GymPass) no âmbito de investigação iniciada em 2020[9]. Conforme o entendimento do tribunal, tais cláusulas seriam capazes de fechar o mercado contra concorrentes da GymPass. Em setembro, o tribunal decidiu homologar proposta de Termo de Compromisso de Cessação[10] apresentada pela GymPass limitando a utilização de cláusulas MFN e de exclusividade pela empresa.

– Em setembro, a SG arquivou investigação[11] iniciada por representação do Yelp, empresa de busca local por serviços e estabelecimentos comerciais, envolvendo acusações de suposto desvio do tráfego de usuários dos serviços de busca local em favor dos próprios serviços de busca local pelo Google. A SG entendeu que, mesmo considerando conservadoramente serviços de busca vertical como parte de um mercado relevante distinto do mercado de buscas gerais, não seria possível afirmar que a busca geral do Google constituiria um insumo essencial. Além disso, a SG reconheceu que existem outros meios de acesso a usuários disponíveis às plataformas de busca vertical, como a contratação de publicidade, e que os resultados do Local Universal ocupariam espaço limitado na página de resultados do Google. Ainda, a SG concluiu que o posicionamento do Local Universal seria uma escolha de design legítima do Google, e que os dados de tráfego gerado pelo Google a serviços de busca local mostrariam que não houve qualquer efeito negativo à concorrência.

– Em outubro, a SG arquivou investigação[12] iniciada por representação da Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador (ABBT), envolvendo acusação de que a plataforma de delivery iFood se utilizaria da dependência de empresas de vale-benefício em relação ao acesso a sua plataforma para usar indevidamente dados de rivais para prospectar clientes, praticar subsídios cruzados e discriminar concorrentes do "iFood Benefícios", seu próprio vale-benefício. Após investigar as acusações da ABBT, a SG concluiu que não existiriam indícios de que rivais dependem do iFood, uma vez que o valor gasto via vale-benefícios na plataforma seria muito inferior ao total gasto no mercado. Além disso, o crescimento do iFood Benefícios não seria superior ao de seus rivais e não haveria indícios de discriminação. Por fim, o iFood não teria capacidade de usar dados de rivais que utilizam sua plataforma para alavancar sua posição no mercado de vales-benefício porque seus consumidores utilizam, em sua maioria, outros meios de pagamento que não vales-benefício.

– Em outubro, o tribunal confirmou medida preventiva para limitar contratos de exclusividade para a venda de cervejas celebrado pela Ambev com bares, restaurantes e casas noturnas, no âmbito de investigação[13] iniciada após representação da Heineken. Segundo a maioria do Tribunal, contratos de exclusividade junto ao chamado "canal frio", que inclui bares, restaurantes e casas noturnas, poderiam resultar em fechamento de mercado aos rivais. A medida preventiva proíbe que a Ambev assine novos contratos de exclusividade ou renove contratos em curso em determinadas localidades onde alto grau de fechamento foi verificado. A medida também é aplicável à Heineken nessas localidades em unidades da Federação em que a empresa possua 20% ou mais de participação de mercado.

Condutas colusivas
Em 2022, o Cade manteve a tendência dos últimos anos de analisar mais rigorosamente evidências e declarações apresentadas por signatários de acordos de leniência ou TCCs. Além disso, manteve sua política rígida de persecução e condenação de cartéis, com destaque aos mercados de resinas, transporte marítimo de veículos, telefonia e gás de cozinha. Temas como troca de informações sensíveis e influência à conduta uniforme também foram objeto de discussões detalhadas.

– Em março, o Tribunal do Cade condenou[14] empresas envolvidas em cartel no mercado de resinas. Conforme apurado, uma empresa de consultoria teria funcionado como facilitadora do cartel, fornecendo espaço para troca de informações sensíveis entre concorrentes e monitorando o cumprimento do cartel. Ainda em março, o Tribunal votou pela condenação[15] de suposto cartel internacional no transporte marítimo de veículos.

– Em maio, o Tribunal condenou[16] as empresas de telecomunicações Oi, Claro e Telefônica por prática concertada envolvendo a formação de consórcio para participação em licitação dos Correios.

– Em setembro, o Tribunal homologou[17] acordos com empresas investigadas por suposta troca de informações sensíveis no mercado de trabalho brasileiro da indústria de healthcare. Para o cálculo das contribuições pecuniárias recolhidas pelas empresas, decidiu-se pela utilização como base de cálculo das despesas totais das empresas com recursos humanos no ano anterior à instauração do Processo Administrativo, e não o faturamento obtido pelas empresas em seus mercados de atuação, a fim de garantir proporcionalidade às multas esperadas.

Agenda para 2023
No próximo ano, o Tribunal do Cade passará por grande renovação, dado que serão encerrados os mandatos de quatro dos seis atuais conselheiros. Os novos integrantes do tribunal poderão participar de decisões envolvam temas controversos, como a análise de efeitos de condutas unilaterais, o padrão de prova aplicável em casos de cartel, a utilização de vantagem auferida para balizar multas por condutas colusivas e os remédios necessários para que operações complexas sejam aprovadas. O Cade seguirá tendo de se posicionar quanto aos limites das interfaces entre o antitruste e temas como proteção de dados pessoais,  mercado de trabalho e  meio ambiente. Ainda o Cade demonstrou em 2022 que está atento a condutas unilaterais, especialmente em mercados digitais e mídia, de forma que se espera o desenvolvimento de investigações nesses mercados.

Quanto ao aspecto institucional, há expectativa de que o CADE publique, em 2023, um Guia para Análise de Atos de Concentração Vertical, que complementará o já conhecido Guia de Atos de Concentração Horizontal (Guia H). A Superintendência-Geral instituiu grupo de trabalho para elaborar o novo Guia em 2022, e os trabalhos devem envolver a realização de estudos e pesquisas sobre integrações verticais, além de benchmarking sobre normas e guias estrangeiros. É possível, ainda, que as alterações introduzidas pela Lei nº 14.470/2022 resultem em aumento do volume de ações de reparação privada por práticas colusivas perante o Judiciário.


[1] Ato de Concentração nº 08700.004426/2020-17.

[2] Ato de Concentração 08700.000726/2021-08. Nosso escritório atuou representando a Associação Neo e a Algar Telecom em duas intervenções de terceiro em contestação à operação.

[3] Ato de Concentração nº 08700.003654/2021-42.

[4] Ato de Concentração nº 08700.005053/2021-74.

[5] Ato de Concentração nº 08700.006512/2021-37.

[6] Ato de Concentração nº 08700.004293/2022-32.

[7] Ato de Concentração nº 08700.003959/2022-35. Atuamos representando um dos terceiros interessados.

[8] Recurso Voluntário nº 08700.007228/2021-88.

[9] Inquérito Administrativo nº 08700.004136/2020-65

[10] Requerimento nº 08700.006611/2021-19

[11] Inquérito Administrativo nº 08700.003211/2016-94. Atuamos representando o Google neste caso.

[12] Inquérito Administrativo nº 08700.001797/2022-09.

[13] Inquérito Administrativo nº 08700.001992/2022-21. Atuamos representando a Heineken neste caso.

[14] Processo Administrativo nº 08700.003718/2015-67.

[15] Processo Administrativo nº 08700.001094/2016-24. Atuamos representando uma das empresas neste caso.

[16] Processo Administrativo nº 08700.011835/2015-02.

[17] Requerimentos nºs 08700.001742/2021-18, 08700.001663/2021-02, 08700.001552/2021-92, 08700.002147/2021-91, 08700.002471/2021-18 e 08700.001017/2022-12, referentes ao Processo Administrativo nº 08700.004548/2019-61.

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