Garantias do Consumo

As surpresas de final de ano: PL 596/2022 pode enfraquecer o Procon-SP

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21 de dezembro de 2022, 8h00

O Código de Defesa do Consumidor estabelece, em seu artigo 1º, tratar-se de lei de ordem pública e interesse social. Assim, seus preceitos são de cumprimento obrigatório para todos os atores das relações de consumo, devendo aqui serem considerados os fornecedores, os consumidores e, também, o Estado, em todas as suas concepções.

Em seu Capítulo VI, precisamente nos artigos 55 a 60, estão dispostas as normas relativas à aplicação das sanções administrativas que, reguladas pelo Decreto 2.181/97, vêm dando lastro às atividades dos Procons, órgãos da administração direta ou indireta e ao Ministério Público, como é o caso do Procon de Minas Gerais, que baixam por portarias as respectivas normas de tramitação do procedimento administrativo, observada a lei federal e sua regulamentação.

Os Procons, como sujeitos do Sistema Nacional de Proteção do Consumidor, têm desempenhado um papel desafiador, especialmente nos últimos quatro anos, no controle e fiscalização das atividades de fornecimento de produtos e serviços, especialmente neste período pós-pandemia, em que a aceleração da economia se impõe, ao lado do necessário aquecimento do mercado de trabalho.

Assim, o reconhecimento e fortalecimento dos Procons é imperativo, como órgão garantidor da defesa do consumidor e que tem o papel de desempenhar legitimamente a função constitucional do Estado, nos termos do artigo 5º, inciso XXXII da CF, de promoção da defesa do consumidor.

Não raro, o cidadão é surpreendido, especialmente nos últimos dias do ano, com proposituras que se apresentam sem uma justificativa de fins alinhados com os verdadeiros princípios constitucionais, que asseguram a promoção de direitos individuais e sociais, o que preocupa. E é o que parece ter ocorrido no âmbito do estado de São Paulo, onde foi requerida urgência na tramitação de um projeto de lei (PL) que interfere diretamente nas atividades da Fundação Procon, projeto este que acabou de ser apresentado à Casa Legislativa e que demanda, s.m.j., a realização de estudos e discussões mais profundas sobre o tema, fugindo, também, de qualquer caráter de urgência que justifique a sua apreciação sem a participação dos atores do cenário que abrange.

No último 19/10, foi apresentado na Alesp o PL 596, de 2022, que dispõe sobre a alteração da Lei nº 9.192/1995, que instituiu a Fundação Procon em São Paulo, propondo alterações de procedimentos administrativos de fiscalização, autuação, da dosimetria da pena, aplicada às infrações às normas de proteção e defesa do consumidor, entre outros assuntos da mesma importância. Além de problemas de técnica legislativa que talvez possam ser reparados em uma revisão de redação, há problemas de ordem constitucional instransponíveis.

Em que pese a louvável iniciativa do parlamentar em refletir a respeito da defesa do consumidor, verifica-se nas entrelinhas da propositura a existência de forte interferência nas atividades da Fundação Procon, ao lado de sérios riscos de enfraquecimento das suas atividades de fiscalização.

Em uma rápida passada de olhos, é possível traçar uma linha divisória dividindo o exame da proposta sob o ponto de vista de duas ordens: (1) dispositivos que tratam de matéria de regulamentação, e que hoje já constam das atividades do órgão, com fundamento no Decreto 2.181/97, ou nas portarias editadas pela Fundação, e (2) dispositivos que, por sua vez, confrontam a norma federal, precisamente o CDC.

De início, s.m.j., parece que a propositura padece de vício de inconstitucionalidade formal, por usurpar competência reservada do Poder Executivo, seja por (a) tratar de matéria se sua competência legislativa, ou (b) por tentar regular por lei, matéria típica de decreto [1].

O PL, ao propor a inserção de 44 novos dispositivos à lei de criação da Fundação Procon, traz à norma detalhamentos procedimentais da atividade interna do Procon, hoje todas reguladas por portarias, nos termos de suas competências legais, a partir da regulamentação da norma por decreto federal.

A jurisprudência do STF é assente no sentido de que o processo legislativo deve observar, rigorosamente, as regras de iniciativa reservada constantes da CF estabelecidas, que foram estabelecidas, também, em simetria, pelas Constituições Estaduais (CE), inclusive observando que nem mesmo o sancionamento pelo Executivo convalida tais impropriedades. A interpretação restritiva das normas constitucionais que dispõem sobre as competências legislativas é imperativa [2].

O artigo 47, II, XIV e XIX da CE paulista, ao estabelecer as competências privativas do Poder Executivo, em simetria com o artigo 61, §1º, II e 84, II e VI da CF, dispõe a respeito da prerrogativa do Poder Executivo para legislar sobre organização e funcionamento da administração estadual, assim como o exercício da sua direção, aqui abrangendo, também, a fixação ou alteração dos órgãos da administração, posição acolhida pela corte superior repetidamente. Assim é que o referido PL, ao estabelecer a possibilidade ou não da realização de auto de infração digital, traçar atribuições para órgãos internos da fundação com especificação dos setores os quais deverão apreciar o auto de infração ou o conteúdo da decisão, estabelecer formas de pagamento com obrigatoriedade de descontos em determinadas circunstâncias, invade atribuição privativa do Poder Executivo ferindo, consequentemente, o princípio da separação dos poderes, cláusula pétrea da CF. Essas normas implicam clara interferência no modus operandi da fundação, refletindo alteração de organização interna, assunto que não é da alçada do Poder Legislativo.

Aliás, sobre a matéria há importantes precedentes do STF afirmando e reafirmando que em matérias sujeitas à administração o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo, não cabendo, portanto, a desconstituição, por lei, de atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais, sob risco de transgressão ao princípio da divisão funcional do poder [3]. A fixação do papel de cada um dos órgãos internos da fundação, respeitadas as suas competências legais, é atribuição do Poder Executivo, no exercício do poder de regulação e administração do Estado [4].

Os detalhamentos do procedimento com especificação dos setores internos pelos quais deverá tramitar o processo administrativo [5], parece interferir na alçada da organização administrativa da fundação, assim como aqueles que interferem na forma de pagamento das multas, impondo descontos no valor da multa paga à vista, prevendo a possibilidade de pagamento parcelado, renunciando parte da receita nessas hipóteses, impondo, ainda, a não antecipação de vencimento das demais parcelas não pagas, se não houver pagamento de uma delas [6].

Quanto ao segundo traçado, neste particular, preliminarmente verifica-se que o PL, na contramão dos valores que nos impõe o Estado Democrático de Direito, estabelece o sigilo dos processos administrativos, quando hoje, especialmente com o uso da tecnologia digital, a consulta pode — e deve — ser acessível a qualquer interessado. O artigo 2º da proposta dispõe que o processo administrativo de fiscalização, autuação e sancionatório referente às violações das normas de proteção e defesa do consumidor, estabelecidas nas Lei Federal nº 8.078/90, será sigiloso até decisão final, exceto em relação ao autuado ou procuradores constituídos nos autos. No caso, é claro o confronto ao inciso LX do artigo 5º da Constituição Federal, e ao artigo 37 da mesma Carta, que garantem ao cidadão a publicidade dos atos administrativos e processuais, em atendimento aos interesses sociais. Daí parecer, s.m.j., padecer a proposta de vício de inconstitucionalidade material.

Outro ponto que, por via indireta, segue o caminho da inconstitucionalidade material, diz respeito à criação da sanção de advertência [7], tipo este inexistente no artigo 55 do CDC. Em que pese a competência legislativa do Estado para legislar sobre produção e consumo, nos termos do disposto no inciso V do artigo 24 da CF, esta competência é concorrente, e como tal, resta ao Estado a competência suplementar, quando as regras gerais não foram estabelecidas pelo ente federal.

Assim é que a norma estadual não pode enfraquecer o sistema sancionatório regrado pelo CDC para criar sanção a ser, necessariamente, aplicada ao infrator da lei, mormente em caráter impositivo como dispõe o artigo §1º do artigo 23-Z da propositura, segundo o qual a pena de advertência deverá ser sempre a primeira penalidade a ser aplicada ao infrator, retirando do Estado a possibilidade de um juízo discricionário acerca da melhor medida para o caso concreto, considerando a gravidade da infração e o dever de preservar a vida, a saúde e o bem-estar dos consumidores. Caso um fornecedor coloque no mercado um produto que resulta morte dos consumidores, há razoabilidade em mera advertência ainda que seja a primeira vez que isso tenha ocorrido?

Particularmente, o disposto neste artigo é uma barreira para o sistema sancionador estipulado pelo CDC. Não se descuida que a atuação na proteção dos consumidores vai além da aplicação de sanções, sendo certo que o poder discricionário do Estado. poderá, em determinadas situações, no desempenho do dever de inserto no inciso IV do artigo 4º do CDC, oferecer programas de educação e informação de fornecedores, com vistas à melhoria do mercado de consumo, o que pode se traduzir na fixação de prazos para adequação de condutas, desde que não particularizados, mas que representem medidas setoriais para uma ou outra área de fornecimento, observadas a conveniência e oportunidade da medida.

A inconsistência do projeto de lei fica ainda mais evidente quando se considera que a apreensão e inutilização de produtos são sanções administrativas, segundo o artigo 56, II e III, do CDC. Como o PL 596/22 estabelece que a primeira sanção é obrigatoriamente de advertência, a Fundação Procon não poderia retirar do mercado produtos fora do prazo de validade ou mesmo com vícios que possam acarretar risco à vida ou à saúde dos consumidores.

O Projeto de Lei, ainda, visa limitar o valor da sanção de multa, apresentando critérios estranhos àqueles previstos de forma vinculante no artigo 57 do CDC. Assim, pela redação do artigo 23-A-I do PL, será levado em consideração apenas o "valor do produto ou serviço anunciado no ato da fiscalização cuja infração foi verificada" (§2º) e a natureza da da infração (§3º). De imediato, verifica-se que o PL busca afastar a condição econômica do fornecedor da dosimetria da multa, em clara violação do CDC e do princípio da isonomia. Além disso, a gravidade da infração não pode ser mero multiplicador, conforme pretende o projeto de lei. Ora, um antibiótico que seja comercializado sem o princípio ativo ou contaminado, ainda que possua valor unitário baixo, tem um potencial lesivo extremamente grave. Ou mesmo a comercialização de produtos alimentícios contaminados.

Não sendo suficiente reduzir o valor da pena-base das multas, o projeto de lei ainda cria a figura do concurso formal, visando beneficiar os fornecedores que cometem mais de uma infração do mesmo tipo. Assim, cometer mais infrações fica mais vantajoso do ponto de vista econômico.

A técnica legislativa também falta ao estabelecer atenuantes para a sanção de multa (artigo 23-A-J), uma vez que algumas das hipóteses configuram verdadeiro bis in idem. A título de exemplo, haverá atenuante quando a infração não causar risco à vida, à saúde e à segurança dos consumidores, mas apenas as infrações do Grupo IV do Anexo I tem esse potencial. Logo, essa atenuante sempre incidiria na sanção para as infrações dos demais grupos. Sem contar a atenuante de impossível compreensão de "a ação do infrator não ter sido fundamental para concepção do fato".

Ainda se extrai das entrelinhas da propositura, medidas que implicam o afastamento da aplicação das sanções previstas no CDC, se comprovada a cessação da infração, o que a rigor não isenta o fornecedor da responsabilidade pela infração cometida. Há dispositivo prevendo que o fornecedor deverá comprovar a cessação de prática infratora ou apresentar plano de correção da infração cometida, sob de aplicação da sanção de suspensão do fornecimento do produto ou serviço, quando o CDC, norma cogente, impõe a aplicação da sanção sempre que constatados vícios de qualidade ou quantidade por inadequação ou insegurança do produto ou do serviço, como garantia do direito à saúde e segurança do consumidor, exarado no artigo 6º, I do CDC [8].

Em outras circunstâncias a medida prevê, ainda, a partir da autuação, a possibilidade de apresentação de um plano de reparação de danos ou de cessação da prática infratora, como medida a sustentar a não aplicação da sanção ao infrator.

Tem-se, pois, que o projeto de lei visa afastar e diminuir as possíveis sanções que o poder público pode aplicar em caso de infrações contra os direitos do consumidor, reduzindo o desincentivo econômico para que os direitos dos consumidores sejam respeitados. Não apenas em detrimento dos consumidores, mas também dos fornecedores que pautam sua atividade pela observância da lei.

Por fim, a técnica legislativa parece equivocada ao dispor que a medida autoriza a alteração da Lei 9.192/95. Pode uma lei "autorizar" a alteração de outra lei? S.M.J. uma lei altera, ou não, uma outra. A pergunta é: o legislador cometeria tal equívoco? A falta de técnica legislativa é problema de menor importância, sendo certo que a mera revisão de redação poderá saná-la.

Em conclusão, é claro que a preocupação que se deixa aqui consignada é mesmo em relação ao mérito da propositura. O requerimento de tramitação em regime de urgência nos assusta, sendo certo que a sua justificativa pautada, tão somente, na necessidade diante da relevância da matéria, não parece ser suficiente a justificar a ausência da ampliação da discussão de seu conteúdo com os órgãos paulistas que compõem o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, principalmente considerada a sinalização do forte intuito de enfraquecimento das atividades de controle e fiscalização do mercado de consumo desempenhado pela Fundação Procon, em atendimento às normas do CDC.

 


[1] Artigo 61, da CF e, em simetria, Art. 47 da CE

[2] A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. (grifou-se) (ADI 724-MC, rel. min. Celso de Mello, j. em 07-05-92) conf. Bernardo Rohden Pires in ob. cit.

[3] ADI-MC 2,364-AL

[4] ADI 3.254-ES; v.u. 16/11/2005 (…) É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação.

[5] Arts. 23-P a 23-T, entre outros.

[6] Arts. 23-A-M a 23-A-P

[7] Artigo 23-Z do PL 596/2022 – Alesp

[8] Arts. 23-A-D e 23-A-F

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