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Qual é a importância do PLC 17/22, o chamado Estatuto dos Contribuintes

Autor

  • Elidie Palma Bifano

    é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

21 de dezembro de 2022, 10h42

No encerrar do ano de 2022, para todos os que militam na área tributária, se faz relevante verificar quais as matérias que transitam nas Casas Legislativas e que podem, de fato, representar novidades na vida dos contribuintes brasileiros. Afora os debates sobre a reforma tributária, chama a atenção o PLC (projeto de lei complementar) nº 17/2022, que institui o Código de Defesa do Contribuinte, alterando o Código Tributário Nacional, o Código de Processo Civil, o Código Penal, além de diversas leis complementares e ordinárias. No último dia 17 de novembro projeto, já examinado pela Câmara dos Deputados e encaminhado por seu presidente ao Senado, a fim de ser submetido à apreciação dos senadores.

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De forma geral, todo norma designada como Código/Estatuto dos Contribuintes, também Código de Defesa do Contribuinte, é editada para proteger o contribuinte e evitar mecanismos e técnicas de cobrança de tributos efetivadas à margem dos princípios que regem a matéria tributária, comportamento que representa violação ao sistema e que deve ser de imediato afastado. Sabe-se que diversos países, de há muito, instituíram seus códigos de defesa do contribuinte e essa experiência pode redundou em frutos que podemos colher. É o caso do México  (Ley Federal de los Derechos del Contribuyente,  de 2005), da Espanha (Ley de Derechos y Garantías de los Contribuyentes, Lei  nº 1, de 1998, aprovada pelas Cortes Gerais da Espanha e integrada à  Ley General Tributária, Lei  nº 58, de 2003, que a alterou), do Canadá (Taxpayer Bill of Rights de 1985) e dos Estados Unidos da América (Taxpayer Bill of Rights, de 1988).                                                                          

 Considerando-se que o sistema tributário brasileiro ganhou espaço e contornos definitivos na Constituição, que lhe dedicou um capítulo inteiro, certamente muitos indagarão acerca da real necessidade de introdução e implantação de um Código de Defesa dos Contribuintes, ou seja, se ele de fato não estaria já escrito em nossa Lei Maior. Nossa conclusão é no sentido de que se faz necessário escrever o Estatuto dos Contribuinte, pois, a despeito do robusto tratamento constitucional conferido à matéria tributária, são inúmeras as violações aos direitos dos cidadãos contribuintes que se observam em todos os níveis da Federação.

 De outro lado, é sabido que em alguns países onde esse tipo de norma foi introduzido, especialmente à época de sua edição, ocorriam constantes violações dos direitos dos contribuintes, vinculadas à ausência de educação/cultura em matéria tributária, o que resultava em baixa arrecadação, como no caso do México [1].  Observe-se que, no Brasil, tais elementos também estão presentes: violações e desconhecimento da lei, a despeito da presunção constitucional sobre conhecimento pleno do sistema normativo pelo cidadão. 

Esta não é a primeira tentativa de introdução de um Código de Defesa do Contribuinte no país, destacando-se que a despeito do tratamento conferido pela Lei Maior à matéria tributária, alguns Estados da Federação também editaram seu Estatuto do Contribuinte, como é o caso do estado de São Paulo que, com a Lei Complementar nº 939/2003, instituiu o Código de Direitos, Garantias e Obrigações do Contribuinte. Esse diploma legal está dividido em cinco capítulos que contêm, dentre outras matérias, os direitos, garantias e obrigações do contribuinte, os deveres da administração fazendária e o chamado Sistema Estadual de Defesa do Contribuinte. O artigo 6º do código em referência contempla as obrigações dos contribuintes, dispositivo que não se coaduna, a nosso ver,  com a índole de lei da natureza de um Código do Contribuinte, de vez que tal matéria já vem tratada na Constituição e no Código Tributário Nacional. Além disso, repete disposições contidas em outras normas já inseridas no sistema, como: tratar com urbanidade o funcionário público (artigo 331 do Código Penal, crime de desacato); apurar e declarar o imposto (artigo 121, Código Tributário Nacional); apresentar as informações solicitadas (artigos 194, 196 e 197 do Código Tributário Nacional); manter os documentos pelo prazo previsto em lei (artigo 195, parágrafo único, Código Tributário Nacional). A essa norma, em nosso entender, falta o espírito próprio de uma Estatuto do Contribuinte [2].

No ano de 2011 foi apresentado à Câmara dos Deputados o PL nº 2557, instituindo o Código de Defesa do Contribuinte brasileiro, em nível federal, calcado no modelo paulista. De acordo com sua Exposição de Motivos, que faz expressa referência à Lei Complementar Paulista nº 939/2003, a proposta objetiva dispor sobre a proteção dos direitos fundamentais do contribuinte brasileiro, de forma a "coibir ações infundadas, com fundamento nos princípios constitucionais de respeito à função social das normas tributárias e à dignidade humana". Seu principal objetivo, de acordo com a Exposição de Motivos, é "promulgar os direitos, obrigações e garantias de forma a trazer maior proteção ao contribuinte brasileiro". Também propõe a criação do Sistema Nacional de Defesa do Contribuinte, em nível federal, que terá como órgão principal o Conselho Nacional de Defesa do Contribuinte, de forma similar à adotada em outros países. Esse Projeto, a nosso ver, peca por se desviar de sua natureza, nos mesmos termos do Código Paulista, repetindo as obrigações dos contribuintes já tratadas no Código Tributário Nacional. Tem, contudo,  o mérito de consolidar disposições esparsas, assim facilitando a consulta e aplicação da matéria. Desde 2019 aguarda Parecer do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).

No que tange ao PLC nº 17/2022, a nosso ver, ele está calcado na lei espanhola acima  referida, reproduzindo muitas de suas disposições. Entretanto, desfruta ele de muitas qualidades, sendo a primeira delas a proposição de normas gerais sobre direitos e garantias aplicáveis na relação tributária do contribuinte com as Administrações Fazendárias (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). O contribuinte para tais fins é definido como  qualquer pessoa física ou jurídica que a lei obrigue ao cumprimento de obrigação tributária ou que, a despeito de inscrita nos cadastros como tal, realize quaisquer ações que se enquadrem como fato gerador de tributos.

O PLC nº 17/2022, se aprovado, será lei de caráter nacional, uniformizando as regras de proteção ao contribuinte para todo o país. A sua Exposição de Motivos esclarece, com muito acerto, que "desde a gênese de nosso sistema tributário, observa-se a lógica de se privilegiar o Estado em detrimento do contribuinte, que é quem o sustenta".  E essa constatação, em nosso entendimento, é generalizada em todos os níveis da Federação. De fato, para aqueles que laboram na seara tributária é nítido que essa prática é generalizada entre todas as Fazendas Públicas, visto que pressionar o contribuinte mostra-se excelente instrumento, na maior parte das vezes, para atingir e incrementar a arrecadação.

 Os autores/propositores dessa norma concluem que boa parte dos abusos que se observam na relação contribuinte-Estado derivam da própria Fazenda, sem prévia vênia do Congresso Nacional ou das outras Casas legislativas. Afirmam que "Tais questões são lamentáveis e ocorrem na medida em que foi conferida extensa tácita autonomia à Fazenda Pública". E é isso que se deve coibir.

 A nosso ver, os artigos 3º e 4° são a alma do PLC nº 17/2022. Assim, dispõe o artigo 3° que, além dos princípios gerais que regem a administração pública, a Fazenda deve submeter-se a princípios específicos no que tange aos contribuintes, dentre eles:  respeito às suas expectativas sobre a aplicação da legislação tributária; redução da litigiosidade, inclusive pelo uso preferencial de formas alternativas de resolução de conflitos; observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos contribuintes; facilitação do cumprimento das obrigações tributárias, com a utilização de formas simples e suficientes para propiciar adequado grau de certeza e segurança; adequação entre meios e fins que imponha menor onerosidade aos contribuintes; indução da conformidade tributária; reconhecimento da vulnerabilidade do contribuinte perante a atuação sancionatória da Fazenda Pública; presunção de boa-fé do contribuinte no âmbito judicial e extrajudicial; elaboração e aplicação de legislação tributária que considere o grau de cooperação do contribuinte e os fatores que possam influenciar a capacidade de cumprir regularmente suas obrigações.

O artigo 4° descreve os direitos dos contribuintes, destacando-se alguma disposições inovadoras no ambiente brasileiro, absorvidas da experiência espanhola, em sua maior parte : acessar informações mantidas pela Fazenda  e efetuar retificação, complementação, esclarecimento ou atualização de dados incorretos; eximir-se de fornecer documentos e informações aos quais a Fazenda possua acesso ou que já lhe tenham sido entregues anteriormente; ter seus processos decididos em prazo razoável; não ser submetido a cobranças de tributos e de multas em montante superior ao legalmente devido. O artigo 5° prevê uma lista de obrigações para o contribuinte, todas elas contidas em outras normas do sistema, o que, a nosso ver, se afasta dos propósitos do Código de Defesa do Contribuinte.   

O artigo 6° introduz regras para o Fisco, designadas como atuação cooperativa perante os contribuintes que incluem medidas de transparência e de participação dos contribuintes, até a promoção, de ofício, de ações e campanhas de orientação. Dentre essas proposições, destaca-se a identificação dos contribuintes que, a critério fiscal, sejam considerados bons pagadores e cooperativos com a aplicação da legislação tributária, com o objetivo de facilitar o cumprimento das obrigações tributárias por tais pessoas.  Por fim, o artigo 7º prevê que a Fazenda Pública priorize a resolução cooperativa e, quando possível, coletiva das controvérsias.

A partir do Código de Defesa do Consumidor, nos termos ora propostos, a Fazenda  estará obrigada a rever o tratamento que vem dispensando aos contribuintes, para assim dar cumprimento aos ditames legais, suportados em ditames constitucionais. A adoção da expressão "menor ônus possível para o contribuinte" no cumprimento de suas obrigações, deve ser entendida como a possibilidade de pagamento do tributo sem entraves, custos adicionais ou obrigações acessórias de difícil/impossível cumprimento. A essas disposições, como garantia do contribuinte, some-se a presunção de boa-fé de que ele passará a desfrutar na sua interação com a Fazenda, judicial e extrajudicialmente, nos termos do artigo 4°.

Certamente que o ambiente tributário estará totalmente alterado se o PL nº 17/2022 for aprovado nos termos como recepcionado pelo Senado. Muitas disposições da Constituição adquirirão substância e deixarão de ser meramente programáticas para, de fato,  se consubstanciarem em ações. Além disso, pensando na facilitação que deve ser trazida para o contribuinte, o PLC nº 17/2022 prevê em seu artigo 8° a obrigatória disponibilização em ambiente digital e centralizado, de forma atualizada, transparente, acessível e organizada, das informações relevantes para o atendimento das obrigações tributárias pelos contribuintes. O artigo 11, por fim, traz medida altamente moralizadora impedindo que a Fazenda Pública adote o montante de créditos tributários lançados ou da quantidade de autos de infração e notificações de lançamento lavrados como critério para a concessão de bônus de eficiência ou produtividade a seus membros.

Além destas disposições comentadas, há muitas outras que merecem ser referidas, mas que o serão, certamente, em outra oportunidade. 

É interessante observar que os exemplos de outros países cada vez mais têm sido adotados pelo Brasil, sempre que se mostrem compatíveis com nosso sistema jurídico e tenham sua utilidade comprovada. Assim o PLC nº 17/2022 incluiu determinações contempladas, de há muito, na legislação estrangeira sobre a matéria, garantindo ao contribuinte um tratamento digno e condizente com os preceitos constitucionais.

Além disso, o PLC nº 17/2022 objetiva pôr termo a discussões travadas em âmbito administrativo e/ou judicial como é o caso do tema da solidariedade em matéria tributária e  sua caracterização. De toda sorte esse Projeto deverá ser objeto de discussão no Senado, quando poderá ser aperfeiçoado. É muito importante que se faça o acompanhamento de sua evolução nessa Casa congressual, pois ele representará, se aprovado nos termos propostos, uma mudança muito grande no sistema jurídico-tributário nacional.    

Em conclusão, o PLC nº 17/2022 atende ao principal fundamento de um Código do Contribuinte que é a proteção do cidadão, em sentido amplo. O movimento por introduzir norma dessa natureza, como se observa, é universal, apontando para uma crescente preocupação com a proteção da pessoa humana e, por extensão, à pessoa jurídica atrás da qual está o cidadão. No caso brasileiro, apesar da abundância de preceitos constitucionais de proteção ao contribuinte, é impositivo reconhecer a necessidade de um Estatuto de Defesa do Contribuinte como forma de evitar violações aos seus direitos que podem ser observadas e constatadas em todos os níveis da Federação, tendo como decorrência o imenso contencioso tributário que se vem formando, aliado ao alto custo de manter a regularidade fiscal.

Urge que o PLC nº 17/2022 seja examinado e aprovado pelas Casas Legislativas, para que o contribuinte possa ter um porto seguro que permita coibir abusos por parte, não só das autoridades fiscais, mas também do legislador ordinário, para que possa cumprir a lei com segurança e não sob ameaça de imposição de sanções não autorizadas pela Constituição.


[1] Cf. Exposição de Motivos do Projeto da Ley Federal de Derechos de los Contribuyentes.

[2] Assim o afirmamos em As violações aos direitos dos contribuintes e a edição de um Código (Estatuo) dos contribuintes, in Estudos de Direito Tributário, em homenagem ao Prof. Roque Antônio Carrazza, coord. Fernanda D. Parisi et alt., v. 1, São Paulo: Malheiros, 2014, pp. 166-190.

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  • é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

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