Opinião

Sobre a Lei Henry Borel e a miopia jurídica do Poder Legislativo

Autor

  • Thales Sousa da Silva

    é assessor judiciário no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (matéria cível) servidor efetivo do TJ-DF especialista em Direito Penal e Processual Penal autor no Canal de Ciências Criminais e no Internacional Center for Criminal Studies (ICC) colaborador no Empório do Direito e membro do Clube Metajurídico.

20 de dezembro de 2022, 17h34

Muito tem sido debatido a respeito do que se convencionou designar a "miopia política do Poder Judiciário", mas pouco se tem falado sobre a "miopia jurídica do Poder Legislativo".

Ambos os casos revelam a desconsideração das eficácias, quer no plano social ou jurídico, produzidas pelas proposições jurídicas, que tratarei aqui, de modo genérico, como normas.

Em relação ao segundo desses defeitos, convém trazer a lume as percucientes observações elaboradas por Gilmar Ferreira Mendes [1]:

"A competência legislativa implica responsabilidade e impõe ao legislador a obrigação de empreender as providências essenciais reclamadas. Compete a ele não só a concretização genérica da vontade constitucional. Cumpre-lhe, igualmente, colmatar as lacunas ou corrigir os defeitos identificados na legislação em vigor. O poder de legislar converte-se, pois, num dever de legislar.
(omissis)
É exatamente a formulação apressada (e, não raras vezes, irrefletida) de atos normativos que acaba ocasionando as suas maiores deficiências: a incompletude, a incompatibilidade com a sistemática vigente, incongruência, inconstitucionalidade, etc."

Não raras as vezes, a atuação irreflexiva do legislador prejudica a integridade do sistema de normas, o que se traduz em efeitos práticos socialmente deletérios, ou mesmo na fragilização do caráter cogente dos enunciados normativos.

A propósito, deve-se ter presente que o ordenamento jurídico, na concepção adotada por Norberto Bobbio, é um sistema unificado de proposições, pautadas, todas elas, pelo dever da coerência, que se consubstancia na regra segundo a qual é desautorizada a criação "de normas incompatíveis com outras normas" [2].

Esse singelo critério, de relevância primordial na atividade legislativa, também tem expressão acentuada na doutrina de Donald Dworkin, quem cunhou o conceito de "integridade". Segundo Dworkin, direito é integridade, pois queremos "tratar a nós mesmos como uma comunidade de princípios, governada por uma única e coerente visão de justiça" [3].

Em relação especificamente à Lei nº 14.344/2022, cognominada "Lei Henry Borel", observa-se ter faltado ao legislador reflexão mais amiúde a respeito das eficácias jurídicas e sociais potencialmente produzidas pelo diploma normativo em questão, notadamente no que concerne às regras contidas em seu artigo 26, caput e parágrafos, in verbis: 

"Artigo 26. Deixar de comunicar à autoridade pública a prática de violência, de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina contra criança ou adolescente ou o abandono de incapaz: Pena – detenção, de seis meses a três anos.
§1º A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta morte.
§2º Aplica-se a pena em dobro se o crime é praticado por ascendente, parente consanguíneo até terceiro grau, responsável legal, tutor, guardião, padrasto ou madrasta da vítima."

A primeira reserva a ser feita sobre o texto em destaque é que a legislação incriminadora não atribuiu qualidades especiais ao sujeito ativo do injusto. Por esse motivo, não é possível conceber a aplicação do instituto jurídico da omissão imprópria, acorde com o artigo 13, §2º, do Código Penal [4].

O aludido texto normativo revela que o legislador adotou critério de responsabilização de duvidosa constitucionalidade, orientado pela "participação negativa" do sujeito ativo. A propósito, é curial examinar a seguinte lição doutrinária [5]:

"Ainda quanto à participação, temos a chamada participação negativa (ou conivência), situação em que o agente não tem qualquer vínculo com a conduta criminosa (não induziu, instigou ou auxiliou o autor), nem tampouco a obrigação de impedir o resultado. Não há, na realidade participação, pois a simples contemplação de um crime por alguém que não adota medidas para evita-lo, e nem era obrigado a fazê-lo, não caracteriza o concurso de pessoas, que exige, dentre outros requisitos, conduta que represente relevância causal para o resultado."

Ainda mais importante é a segunda reserva a ser feita acerca do tipo penal em comento. Nota-se que a Lei nº 14.344/2022 tem feição nitidamente vitimológica, pois a finalidade precípua que motivou a sua edição foi instituir mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente.

A despeito dessa particularidade, tem-se que o tipo incriminador reduziu o alcance protetivo das normas tutelares das crianças e dos adolescentes em contexto de violência doméstica, muito possivelmente em virtude do escasso conhecimento, pelo legislador, do ordenamento jurídico-penal.

Isso se diz porque o ordenamento propugnara solução adequada para as hipóteses em que a violência era praticada por ascendente, parente consanguíneo, responsável legal, tutor, guardião, padrasto ou madrasta da vítima, aplicando-se-lhes o instituto da omissão imprópria. Mutatis mutandis, examine-se a seguinte ementa promanada do Superior Tribunal de Justiça:

"HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. OMISSÃO IMPRÓPRIA. IRMÃ DAS VÍTIMAS. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE. AUSÊNCIA DO DEVER LEGAL DE AGIR. TESE NÃO ACOLHIDA. POSSÍVEL ASSUNÇÃO DO PAPEL DE GARANTIDOR. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. INVIABILIDADE. ILEGALIDADE NÃO VERIFICADA. WRIT NÃO CONHECIDO.
1. Os crimes omissos impróprios, nas lições de Guilherme de Souza Nucci, são aqueles que '(…) envolvem um não fazer, que implica a falta do dever legal de agir, contribuindo, pois, para causar o resultado. Não têm tipos específicos, gerando uma tipicidade por extensão. Para que alguém responda por um delito omissivo impróprio é preciso que tenha o dever de agir, imposto por lei, deixando de atuar, dolosa ou culposamente, auxiliando na produção do resultado'.
(Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 19.ed. Rio de Janeiro: Forrense, 2019, p. 140).
2. Muito embora uma irmã mais velha não possa ser enquadrada na alínea 'a' do artigo 13, §2, do CP, pois o mero parentesco não torna penalmente responsável um irmão para com o outro, caso caracterizada situação fática de assunção da figura do 'garantidor' pela irmã, nos termos previstos nas duas alíneas seguintes do referido artigo ('b' e 'c'), não há falar em atipicidade de sua conduta. Hipótese em que a acusada se omitiu quanto aos abusos sexuais em tese praticados pelo seu marido na residência do casal contra suas irmãs menores durante anos. Assunção de responsabilidade ao levar as crianças para sua casa sem a companhia da genitora e criação de riscos ao não denunciar o agressor, mesmo ciente de suas condutas, bem como ao continuar deixando as meninas sozinhas em casa. (omissis)(HC nº 603.195/PR, relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 6/10/2020, DJe de 16/10/2020)".

A título de exemplo, atente-se ao fato de que, anteriormente à promulgação do multicitado diploma legislativo, no caso da eventual prática de lesões corporais com resultado morte, possibilitada pela omissão do ascendente ou responsável legal do menor em comunicar os atos de violência à autoridade pública, ter-se-ia cominada ao omitente a pena de quatro a dez anos de reclusão (artigo 129, §3º do Código Penal), aumentada de 1/3 (artigo 129, §10º, do Código Penal), uma vez aplicada a regra alusiva à omissão imprópria ou espúria (artigo 13, §2º, do Código Penal.

No entanto, com as alterações introduzidas pela cognominada "Lei Henry Borel", o omitente responderá, se muito, à pena mínima de 3 (três) anos de detenção (artigo 26, §1º em composição com o §2º, da Lei nº 14.344/2022).

A diferença é ainda mais significativa em se tratando de violência sexual, pois o delito tipificado no artigo 217-A do Código Penal desafia a pena de reclusão de oito a 15 anos, em muito superior à cominada pelo artigo 26 da Lei 14.344/2022 (detenção, de um a três anos, na forma majorada).

Com esses apontamentos, é fácil concluir que a norma incriminadora prevista no artigo 26 da "Lei Henry Borel", embora visasse a proteger a criança e o adolescente em situação de violência doméstica, reduziu o alcance protetivo das normas tutelares desse segmento de vítimas, consubstanciando na presente hipótese a "miopia jurídica" do Poder Legislativo.


[1] MENDES, Gilmar. Questões fundamentais de técnica legislativa. Revista Eletrônica Sobre a Reforma do Estado. Salvador, 2007.

[2] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6 ed. Brasília: Editora UNB, 1995, p. 111.

[3] MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto de. Do xadrez à cortesia. Dworkin e a Teoria do Direito Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2013.

[4] "§2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado".

[5] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: pare geral. 8 ed. Salvador: JusPODIVM, 2020, p 471.

Autores

  • é servidor do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), especialista em Direito Penal e Processual Penal e autor no Canal de Ciências Criminais e no International Center for Criminal Studies (ICCS).

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