Opinião

Reserva com gol de placa: atuação do ministro Olindo de Menezes

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19 de dezembro de 2022, 17h14

Em tempos em que a punição é comemorada e o desrespeito reiterado aos direitos e garantias fundamentais ignorado, o papel do Poder Judiciário se torna ainda mais importante no processo penal.

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O ministro (desembargador convocado) Olindo de Menezes, que deixou a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, foi, sem dúvida, um dos ministros com mais decisões favoráveis ao respeito a direitos e garantias fundamentais no tempo em que ficou no Tribunal da Cidadania. Sua substituição fará falta! Apesar dos "gols" emplacados, a substituição veio.

A convocação de desembargadores estaduais e federais para atuar transitoriamente no STJ muitas vezes passa despercebida, mas não é o caso, sobretudo em razão da particular maneira em que o ministro (desembargador convocado) Olindo de Menezes atuou. Conforme apontado pela ministra Laurita Vaz na última sessão em regime de convocação, o então desembargador "deixa no STJ lições de simplicidade, dedicação ao trabalho e respeito ao jurisdicionado" [1].

Olindo Menezes já foi convocado no STJ em 2015 e 2016, quando integrou a 1ª Seção e 1ª Turma, responsáveis por julgar questões de direito público. Aceitou o desafio de lidar com o sistema de justiça criminal.

Diante disso, selecionamos alguns julgados importantíssimos de relatoria do ministro (desembargador convocado) Olindo de Menezes, essenciais para a advocacia criminal e defensoria pública.

No Recurso em Habeas Corpus 163.705/MG, a apreensão de drogas decorreu de invasão domiciliar por parte da Polícia Militar, fundada exclusivamente em denúncia anônima de que um veículo havia sido utilizado para a prática de roubo. No caso, os policiais informaram terem  avistado o veículo na rua e verificaram intensa movimentação dentro da casa. Ao se aproximarem, sentiram forte odor de "consumo de drogas, em especial o crack". Assim, decidiram por adentrar no imóvel, quando o paciente pulou o muro para tentar se evadir.

Segundo consta nos autos, os policiais militares conseguiram realizar a abordagem, e em busca pessoal e domiciliar encontraram pedras de crack, arma de fogo e dinheiro. Na decisão que reconheceu a nulidade da invasão domiciliar, trancou a ação penal e revogou a prisão preventiva do paciente, o Ministro ressaltou:

"Constata-se, assim, que não foram realizadas investigações prévias nem indicados elementos concretos que confirmassem o crime de porte de munições de arma de fogo dentro da residência, não sendo suficiente, por si só, a situação retratada pelos policiais, pois não denota urgência a justificar a dispensa de mandado judicial. Nesse contexto, a inexistência de prévia investigação, monitoramento ou campanas no local, ou de eventual movimentação de pessoas na residência indicativa da prática de crime, ou, ainda, de denúncia robusta sobre a habitualidade da conduta, denotam a ausência de justa causa para o ingresso domiciliar sem mandado."

A decisão do ministro (desembargador convocado) foi ao encontro com a atual jurisprudência a respeito da justa causa para invasão em domicílio, inicialmente perfilhada no Recurso Extraordinário 603.616/RO [2], de relatoria do ministro Gilmar Mendes, que em síntese realizada por Renato Brasileiro, assim consignou [3]:

"A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que, dentro da casa, havia situação flagrante de delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agende ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados. Nessa medida, deve ser considerada arbitrária a entrada forçada em domicílio sem uma justificativa conforme o direito, ainda que, posteriormente, seja constatada a existência de situação de flagrante no interior daquela casa. Enfim, deve haver um controle a posteriori, exigindo-se dos agendes estatais a demonstração de que a medida fora adotada mediante justa causa, ou seja, que havia elementos para caracterizar a suspeita de flagrante delito no interior daquele domicílio, autorizando, pois, o ingresso forçado, independentemente de prévia autorização. Em síntese, o modelo probatório deve ser o mesmo da busca e apreensão domiciliar, que pressupões a presença de fundadas razões (CPP, artigo 240, §1º), as quais, logicamente, devem ser exigidas de maneira modesta e compatível com o momento em questão."

Após o posicionamento adotado pelo STF, o STJ tem reconhecido algumas situações em que não resta configurada a justa causa, dentre elas: mera intuição de traficância [4]; denúncia anônima, isoladamente [5] considerada ou somada à fuga [6] do suposto agente; anterior envolvimento do indivíduo com crime de tráfico de drogas [7].

A 6ª Turma, ao revisitar o tema referente à violação de domicílio, no Habeas Corpus nº 598.051/SP [8], de relatoria do ministro Rogerio Schietti, fixou as teses de que as circunstâncias que antecederem a violação do domicílio devem evidenciar, de modo satisfatório e objetivo, as fundadas razões que justifiquem tal diligência e a eventual prisão em flagrante do suspeito, as quais, portanto, não podem derivar de simples desconfiança policial, apoiada, v. g., em mera atitude suspeita, ou na fuga do indivíduo em direção a sua casa diante de uma ronda ostensiva, comportamento que pode ser atribuído a vários motivos, não, necessariamente, o de estar o abordado portando ou comercializando substância entorpecente.

Outro caso analisado diz respeito ao Agravo em Recurso Especial 2.007.595/MG. O ministro (desembargador convocado) Olindo de Menezes absolveu recorrente que havia sido condenado por associação ao tráfico de drogas. No caso, mediante interceptações telefônicas, o Tribunal de Justiça fundamentou a condenação, entendendo por haver estabilidade e permanência entre os réus, porque:

"O contato entre os réus, tendo Eder o papel de captar usuários que desejam comprar entorpecentes, negociar com tais clientes e passar as informações para Wilson, o qual se responsabiliza por obter a droga dos fornecedores, manter sob sua guarda e concretizar a venda, entregando-as para os usuários. Deste modo, havendo elementos concretos e irrefutáveis que evidenciam o dolo de se associar, com a estabilidade e a permanência exigidas para a configuração do crime previsto no artigo 35, da Lei Antidrogas, não há motivo algum para se absolver o apelante."

Na decisão absolutória, o ministro ressaltou que "a divisão simples de tarefas e o depoimento dos policiais acerca dos fatos dão conta de vínculo eventual, não se mostrando suficientes para demonstrar o ânimo associativo estável e permanente entre os agentes, necessário à configuração do crime previsto no artigo 35 da Lei 11.343/2006".

Esse entendimento também vai ao encontro com a atual orientação dos tribunais superiores a respeito dos requisitos necessários para fins de consumação do delito de associação para o tráfico de drogas [9], reforçado que, além de ser necessária a comprovação do vínculo necessário permanente e duradouro, e não apenas habitual, também deve haver comprovação de dolo específico para cometimento do delito [10].

Outra decisão interessante do homenageado se deu nos autos do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 2.003.807/MG. No caso, a minorante do tráfico privilegiado havia sido afastada em virtude da quantidade de drogas apreendidas, bem como na denúncia anônima recebidas por policiais militares de que os recorrentes "eram conhecidos" no meio do tráfico, tal como seus vizinhos relataram envolvimento no narcotráfico.

O relator aplicou o tráfico privilegiado e consignou que a quantidade de drogas, bem como denúncia anônima e testemunhos do "ouvi dizer", não são suficientes para comprovar a dedicação dos recorrentes com atividades criminosas. Abaixo segue trecho do voto:

"aponto que denúncia anônima, embora configure base válida para a instauração de investigação, não pode servir de fundamento para eventual condenação ou, como no caso, para afastar o redutor do tráfico. Ademais, o testemunho indireto (por ouvir dizer) tampouco configura prova idônea para evidenciar a dedicação dos réus à atividade criminosa."

Mais uma vez, o homenageado  demonstrou não apenas seu perfil garantista. Demonstrou, sobretudo, alinhamento com a orientação da jurisprudência do STJ, no sentido de que testemunhos do "ouvi dizer" (hear say[11] não podem ser suficientes para eventual condenação, ou, como no caso, para comprovação de que o réu se dedica a atividades ilícitas.

Noutro caso semelhante, também de sua relatoria, o tráfico privilegiado havia sido afastado porque polícias militares haviam recebido denúncias anônimas de que ele seria o traficante responsável pelo local.

Ao aplicar a minorante, o relator consignou ser "preciso, além da quantidade de drogas, aliar elementos concretos suficientes o bastante que permitam a conclusão de que o agente se dedica a atividades criminosas e/ou integra organização criminosa, não bastando ilações e/ou suposições sem espeque fático válido" [12].

Para finalizar, inevitável tecer considerações a respeito das decisões do Ministro no que diz respeito às buscas pessoais.

Sobretudo após voto histórico do ministro Rogério Schietti, nos autos do Recurso em HC 158.580/BA, o STJ busca consolidar  sua jurisprudência a respeito de quais argumentos são aptos para fins de caracterizar "fundada suspeita" suficiente para que se realize uma busca pessoal.

Ficou consignado neste precedente, "não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial".

Alexandre de Morais da Rosa já bem tratava disso:

"É inválida qualquer abordagem policial com suporte em "intuições", ainda que comprovadas depois, porque a ação pressupõe "causa democrática e objetiva". A "fundada suspeita" decorre de ação ou omissão do abordado, e não simplesmente porque o agente público "não foi com a cara", "cismou", "intuiu" ou porque o lugar é perigoso, pelos trajes do submetido, cor, a saber, por estigmas e avaliações subjetivas, não configurando desobediência a negativa imotivada, sob pena de nulidade da abordagem e, também, prejuízo à licitude da prova (LAA, artigo 22 e 25). Não se pode aceitar como normal a nociva prática utilizada pelos agentes da lei de emparedar toda e qualquer pessoa, destacando discricionariamente os potenciais suspeitos, via estigmas, por violação aos Direitos Fundamentais (inocência e dignidade) [13]."

Seguindo esse entendimento e a referida orientação atual do Tribunal da Cidadania a respeito do tema, o ministro anulou provas obtidas de busca pessoal realizada porque o paciente "apresentou nervosismo" ao verificar a viatura policial. No caso:

"Verifica-se que os policiais faziam patrulhamento de rotina na região, ocasião em que visualizaram o paciente, o qual demonstrou nervosismo com a presença policial. Foi então realizada a abordagem policial do acusado em local público, e, na busca pessoal, foi localizada em seu poder a arma de fogo que o acusado portava sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. […] Se não amparada pela legislação a revista pessoal, que foi realizada apenas com base em parâmetros subjetivos dos agentes policiais, sem a indicação de dado concreto sobre a existência de justa causa para autorizar a medida invasiva, vislumbra-se a ilicitude da prova, e das dela decorrentes, nos termos do artigo 157, caput,e §1º, do CPP […] Ante o exposto, concedo o habeas corpus para absolver o paciente em relação ao delito previsto no artigo 14, 'caput', da Lei nº 10.826/03, com fulcro no artigo 386, II e VII – CPP, determinando-se a sua soltura incontinenti se por outro motivo não estiver preso". (Habeas Corpus 714.749/SP, relator ministro Olindo de Menezes, 6ª Turma, STJ, DJe 06/04/2022).

Trouxemos, aqui, apenas algumas das centenas de decisões do ministro Olindo de Menezes, que não apenas são favoráveis à defesa, mas também são uma expressão positiva no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais de todo aquele que enfrenta um processo criminal. Mais do que um Magistrado à frente da mudança jurisprudencial e atento às particularidades do caso e do jurisdicionado, mostrou para que veio sua segunda convocação.

Nosso muito obrigado! Desejamos boa sorte ao ministro Jesuíno Rissato, que sai da 5ª Turma para ocupar a vaga do ministro  Olindo de Menezes.

 


[2] RE 603616, relator (a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 05/11/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL — MÉRITO DJe-093  DIVULG 09-05-2016  PUBLIC 10-05-2016.

[3] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único  9. Ed. Salvador: JusPODIVM, 2021. p 1.063

[4] STJ  REsp: 1574681 RS 2015/0307602-3, relator: ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de julgamento: 20/04/2017, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/05/2017.

[5] STJ – HC: 512418 RJ 2019/0151602-5, relator: ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 26/11/2019, T6  SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/12/2019.

[6] STJ – RHC: 89853 SP 2017/0247930-4, relator: ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 18/02/2020, T5  QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/03/2020

[7] STJ – RHC: 126092 SP 2020/0096758-5, relator: ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Data de Julgamento: 23/06/2020, T5  QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/06/2020.

[8] HC nº 598.051/SP, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 2/3/2021, DJe de 15/3/2021.

[10] Vide: HC 415.974/RJ, relator ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 03/10/2017, DJe 11/10/2017

[11] Inclusive, tal orientação vem sendo muito utilizada pelo Superior Tribunal de Justiça em casos envolvendo Tribunal do Júri em que a pronúncia se baseia exclusivamente nesse tipo de prova. Sobre isso, vide: "O testemunho indireto (também conhecido como testemunho de 'ouvir dizer' ou hearsay testimony) não é apto para comprovar a ocorrência de nenhum elemento do crime [mormente porque retira das partes a prerrogativa legal de inquirir a testemunha ocular dos fatos (art. 212 do CPP)] e, por conseguinte, não serve para fundamentar a condenação do réu. Sua utilidade deve se restringir a apenas indicar ao juízo testemunhas referidas para posterior ouvida na instrução processual, na forma do artigo 209, §1º, do CPP". (AREsp nº 1.940.381/AL, relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª T., DJe 16/12/2021).

[12] AgRg no Recurso Especial 1.982.713/CE, relator ministro Olindo de Menezes, 6ª Turma, STJ, DJe 28/06/2022.

[13] ROSA, Alexandre Morais da, Guia do Processo Penal Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos, 1ª ed., Santa Catarina: Emais, 2021, p. 625.

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