Embargos Culturais

John Rawls e a Teoria da Justiça: uma alternativa ao utilitarismo

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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18 de dezembro de 2022, 8h00

Em 1971, o pensador norte-americano John Rawls (1921-2002) publicou Teoria da Justiça, seu livro mais discutido. Trata-se de proposta alternativa ao utilitarismo e ao pragmatismo que marcam a tradição filosófica norte-americana.

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Rawls defendeu o liberalismo, no sentido que a expressão carrega na tradição dos Estados Unidos. O liberal, nos Estados Unidos, assemelha-se a um social democrata, em nossa concepção. A afirmação de que alguém seria muito liberal, significaria, nos limites da cultura política anglo-saxônica, quase uma pessoa de esquerda. Essa quase confusão conceitual marca a recepção de Rawls por leitores desatentos a esse pormenor.

A obra de Rawls é de algum modo legatária e continuadora da tradição contratualista. Leitura mais apressada pode apontar para um renascimento do contratualismo, em todas as suas dimensões, seja em Hobbes, seja em Rousseau. Há um ponto, no entanto, que revela uma perspectiva radical por parte de Rawls. A tradição contratualista preocupava-se preponderantemente com a justificação do poder. Rawls preocupou-se em fixar princípios compreensíveis de justiça.

No entanto, a linha argumentativa de Rawls não é factual ou empírica, ao contrário dos argumentos contratualistas. O ponto de partida dos contratualistas não é histórico. Os contratualistas justificavam o poder a partir de elementos abstratos, apelando para um imaginário estado natural, no qual (para Hobbes, por exemplo) o homem seria o lobo do próprio homem.

Rawls também partiu de postulados fantasiosos, a exemplo de conceitos nada empíricos como "posição original" e "véu da ignorância". Os seres humanos estaríamos em posições equidistantes, nas quais desconheceríamos aptidões, desejos, qualidades e características próprias dos contratantes, e a partir de então fixaríamos direitos que atendessem a todos, com ênfase no resultado, que qualificaria um maior benefício par quem tenha menos vantagens iniciais.

Rawls lecionou em Harvard. Foi um neocontratualista de fortíssima inspiração kantiana. Pensou em uma democracia constitucional. A justiça, primeira virtude das instituições sociais, decorreria de acordo que surgiria da mencionada posição original, na qual os homens abstratamente considerados e cobertos por um véu de ignorância, desconheceriam seus próximos, suas virtudes, forças e fraquezas. Conceberiam uma justiça que contemplaria a todos, e que seria marcada pela absoluta inteireza de propósitos. As pessoas que ocupariam a posição original desconheceriam quem são os outros, dado que cobertos todos pelo véu da ignorância. Nessa condição teriam concebido arranjos institucionais justos.

Penso que importante interlocutor e intérprete de Rawls no Brasil seja Nythamar de Oliveira, professor da PUC-RS com impressionante trajetória na filosofia e na teologia. Nythamar captou pontos poucos conhecidos de Rawls, a exemplo das críticas do filósofo norte-americano à política externa dos Estados Unidos, especialmente quanto a intervenções desastrosas contra regimes democráticos; é o caso do Chile. Há um livro de Nythamar, editora por Jorge Zahar, que se qualifica como introdução completa e suficiente ao pensamento de Rawls.

Há também os críticos de Rawls. Refiro-me a Perry Anderson, historiador marxista inglês, que censurou Rawls em Afinidades Seletivas; mais precisamente no capítulo maliciosamente denominado de "Uma Teoria da Injustiça". Anderson implicava que a teoria de Rawls não dialogava com a vida real, a qual não explicaria, e com a qual o pensador norte-americano não se preocuparia. Perguntava Anderson que se o Estado moderno, no fundo de suas convicções e tradições democráticas, fosse tal como descrito por Rawls, como seria possível o impasse quanto à realização da liberdade e igualdade para seus cidadãos. Para Anderson, Rawls poderia ter escrito um livro melhor, que denominaria justamente de uma "teoria da injustiça".

Rawls seguia a tradição utilitarista de Hume, Adam Smith, Mill (pai e filho), combinando-a com os temas centrais do contratualismo, como lemos em Locke, Rousseau e Kant. Progressista e avançado para uns, distantes de nossos problemas para outros, radical para aqueles primeiros, aspartame jurídico para esses últimos, Rawls permanece como um dos mais importantes teóricos da justiça, influenciando, entre outros, Amartya Sen, que levou o Nobel de Economia em 1998.

Teoria da Justiça, de John Rawls, é um livro que matiza época da cultura norte-americana fortemente marcada por um ceticismo institucional, que se contrapunha ao otimismo do pós-guerra. No fundo, uma questão geracional, do ponto de vista de concepções de mundo, e que anunciava um embate entre os desiludidos que queriam transformar o mundo (nosso Mangabeira Unger entre eles), os acomodados que propunham uma leitura moral dos problemas normativos (Dworkin) e os pragmáticos de Chicago (Posner), para quem uma boa decisão judicial é aquela que mais adequadamente alocasse recursos.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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