Diário de Classe

Sobre o Tema 677 do STJ e o problema dos precedentes no Brasil

Autores

  • Giovanna Dias

    é advogada mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Frederico Pessoa da Silva

    é graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

17 de dezembro de 2022, 14h15

Imagine que você esteja sofrendo um cumprimento de sentença contra si em valores com os quais não concorda. Nesse caso, você tem duas opões: ou você paga o débito executado no prazo de 15 dias, sob pena de expedição de mandado de penhora, ou apresenta impugnação, objetivando demonstrar que o valor devido é inferior àquele que está sendo apresentado ou que ele não existe por qualquer razão que seja. Nessa segunda hipótese, o CPC não estabelece a necessidade de apresentação de garantia. Todavia, em clara demonstração de boa-fé, você opta por realizar o depósito judicial do valor que está sendo executado para garantir o juízo e tendo em vista — no âmbito do seu cálculo de risco — o que estabelece o Tema 677 do STJ: 

Na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada".

Em outras palavras, visando manter a sua firme posição de que o débito executado não é devido, você visualiza, com amparo no entendimento de uma das mais altas Cortes do país, a possibilidade de "extinguir a sua obrigação" — o que poderia ser interpretado por você, razoavelmente, como o "estancamento" do seu estado de "devedor" e do seu estado de "mora" —, optando, assim, por realizar depósito de garantia enquanto a sua impugnação é discutida.

O valor depositado vai para uma "conta judicial", ficando sob a guarda de uma instituição financeira depositária. Nesse mesmo momento, você se recorda de ter lido em algum lugar a respeito de outras duas súmulas do mesmo STJ: súmula 271 — "a correção monetária dos depósitos judiciais independe de ação específica contra o banco depositário" — e súmula 179 — "o estabelecimento de crédito que recebe dinheiro, em depósito judicial, responde pelo pagamento da correção monetária relativa aos valores recolhidos". Você também lembra de ter lido algo no Código Civil sobre o depositário ser responsável pela guarda e conservação da coisa como se dele fosse, inclusive com o dever de restituir frutos (art. 629, CC).

Certo de que a sua obrigação será dada por extinta e que o Banco depositário é o responsável pela garantia da não desvalorização do valor depositado, você segue com a sua decisão de garantir o juízo e apresentar a sua impugnação.

Ao final do processo, caso o juiz entenda que você tem razão e julgue procedente a sua impugnação, você poderá levantar a parcela controvertida do valor depositado. Mas, caso entenda que você não tem razão, a impugnação será improcedente e você não poderá levantar o valor depositado, porque ele passará a estar disponível para a outra parte.

Evidentemente, entre a data do depósito judicial do valor executado e a data do julgamento da sua impugnação, corre um lapso temporal em que o dinheiro fica parado na instituição financeira até que seja resolvido o litígio, mas você está "tranquilo", porque, como visto anteriormente, a sua obrigação foi "extinta" e a correção do valor era de responsabilidade do Banco.

Eis que, para a sua surpresa, o juiz julga improcedente a sua impugnação e o exequente exige o pagamento de juros de mora, e, quem sabe, da correção monetária do valor depositado. Também para o seu espanto, a outra parte traz na sua fundamentação decisão do próprio STJ: o REsp 1.475.859/RJ, julgado pela Terceira Turma da Corte, no qual ficou dito que "o depósito judicial apenas extingue a obrigação do devedor nos limites da quantia depositada, mas não o libera dos consectários próprios de sua obrigação". Para completar, você descobre que o REsp n.º 1.820.963/SP, no dia 18 de outubro desse ano, obstaculizou tudo que você tinha pensado – talvez anos atrás – quando apresentou a sua impugnação. A partir dele, o Tema 677 ganhou nova redação, porque foi revisto e reanalisado para o seguinte entendimento:

Na fase de execução, o depósito efetuado a título de garantia do juízo ou decorrente de penhora de ativos financeiros não isenta o devedor do pagamento dos consectários da sua mora, conforme previstos no título executivo, devendo-se, quando da efetiva entrega do dinheiro ao credor, deduzir do montante final devido o saldo da conta judicial".

Veja: você estava confiante de que seu caso seria julgado de acordo com entendimento consolidado da Corte Superior, mas, no meio do percurso, descobre que o entendimento foi modificado pela mesma Corte em um lapso temporal de oito anos.

Mais que isso, se analisar os fundamentos da primeira decisão, de 2014, e da última, de 2020, verá que o acolhimento da revisão do Tema Repetitivo foi fundamento em entendimento contrário ao anterior. Assim, o objetivo não é a simples revisão do Tema para estender a sua interpretação ou para melhorá-la, mas, sim, para produzir compreensão contraditória. Explica-se:

No caso do REsp nº 1.348.640/RS, julgado em 2014, a recorrente pretendia reformar decisão do Tribunal sob o argumento de que o depósito judicial do valor devido afastaria a mora. O Ministro Relator, Paulo Sanseverino afirmou ostensivamente que a questão relacionada com a responsabilidade do devedor pelo pagamento de juros de mora e correção monetária sobre os valores depositados em juízo na fase de execução já havia sido exaustivamente debatida pela Corte Superior, tendo-se firmado entendimento no sentido da responsabilidade da instituição financeira depositária, não do devedor, pela remuneração do depósito judicial.

No entanto, embora a jurisprudência fosse pacífica, havia sido identificado no Núcleo de Recursos Repetitivos — NURER/STJ a subida de uma multiplicidade de recursos especiais referentes essa mesma controvérsia, motivo pelo qual foi necessária a afetação da matéria, em razão disso consolidou-se o entendimento no Tema 677. Ao final, o REsp foi julgado em consonância com a jurisprudência que já estava consolidada, no sentido de que na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada.

No REsp nº 1.820.963/SP, julgado em 2020, exatamente a mesma controvérsia foi posta, só que agora com questão de ordem para revisão do Tema Repetitivo firmando anteriormente. Ao contrário do caso anterior, nesse o Tribunal recorrido havia aplicado o entendimento firmando a partir do Tema 677 no sentido de que uma vez efetivado o depósito judicial na fase de execução, estava o executado isento do pagamento de juros e correção monetária sobre o montante, na medida em que o ônus de arcar com esses encargos é da instituição financeira depositária. No entanto, nesse caso, em razão de ter divergência jurisprudencial sobre o assunto (mesmo com a tese já firmada), o exequente interpôs o REsp para uma reanálise.

Veja-se: Em 2014 o Tribunal recorrente aplicou o entendimento X. O STJ reformou a decisão para ser aplicado o entendimento Y. Em 2020, com fundamento na decisão de 2014, o Tribunal recorrente aplicou, então, o entendimento Y. No entanto, o STJ determinou a revisão desse entendimento porque agora já compreende como sendo X.

Pareceria absurdo, afinal, por que o tema precisaria ser revisado se já houve decisão sobre ele anteriormente pela mesma Corte e o caso concreto é exatamente igual ao leading case? Por qual motivo haveria necessidade de revisão do tema se sequer o caso concreto possui elementos que indiquem a necessidade de uma revisão?

No entanto, mesmo parecendo absurdo, o exequente conseguiu a instauração de procedimento de revisão do entendimento firmado no Tema 677, pois a Corte reconheceu a existência de jurisprudência divergente da consolidada anteriormente, afirmando que o valor depositado judicialmente libera o devedor nos limites da quantia depositada, mas não o libera dos consectários próprios de sua obrigação.

A divergência jurisprudencial sobre o Tema 677 iniciou porque se começou a fazer uma distinção entre "depósito pra fins de pagamento" e "depósito pra fins de garantia do juízo". Alguns Ministros passaram a entender que a obrigação da instituição financeira depositária pelo pagamento dos juros e correção monetária sobre o valor depositado convive com a obrigação do devedor de pagar os consectários próprios de sua mora, até que ocorra o efetivo pagamento da obrigação ao credor.

No entanto, o caso concreto condutor do Tema, em 2014, ainda que tivesse silenciado sobre essa diferenciação já havia dado uma resposta para a questão. Para fornecer uma resposta correta ao REsp de 2020 seria necessária a revisão e reanálise do Tema ou bastaria olhar para a decisão anterior e buscar respostas nela mesma?

O imbróglio representa um problema frequentemente trazido pelos juristas brasileiros: o problema da falta de um sistema de precedentes no país e da frágil segurança jurídica. Veja-se: primeiro firmou-se uma tese, a partir de um Tema Repetitivo, com base em jurisprudência consolidada. O objetivo desse instituto é, justamente, uniformizar e harmonizar a jurisprudência nacional. No entanto, a própria Corte começou a firmar jurisprudência divergente sobre a aplicação da própria tese firmada no Tema 677, chegando à conclusão contrária àquela firmada anteriormente.

Isso é tão evidente que o próprio Relator do REsp nº 1.820.963/SP, em seu voto, afirmou que "a jurisprudência da Terceira e Quarta Turmas passou a oscilar entre a aplicação, ou não, do Tema 677/STJ nas hipóteses em que o depósito judicial não é feito com o propósito de pagamento ao credor" [1]. Afirmou, ainda, que ao mesmo tempo que parte da Corte negava a aplicação do Tema nesses casos, a outra parte realizava a sua aplicação indistinta. E novamente o Tema teve que ser reanalisado para fins de preservação, ou não, da compreensão consolidada anteriormente.

Na semana passada, Lenio Streck publicou novamente sobre o assunto na ConJur [2], onde colocou o problema de reciclar institutos típicos do commom law sem fazer os ajustes necessários ou sem pensá-los na sua essência. Se, de fato, tivéssemos um autêntico sistema de precedentes, não seria necessária a revisão de Tema Repetitivo para tratar de casos análogos ao oriundo do condutor. Aliás, as teses e temas não seriam confundidos com precedentes, cada um teria o seu lugar no ordenamento.

No sistema commom law, o precedente advém de uma decisão judicial consolidada a partir de um caso concreto. E o núcleo central de razões a partir das quais a Corte enfrentou o caso (ratio decidendi) será compreendido historicamente como um padrão a ser seguido nos demais casos análogos. Ou seja, nos casos análogos, a decisão jurisprudencial foi no sentido X, portanto, aplica-se o mesmo sentido. Trata-se de uma interpretação aplicada no binômio particular-particular (de casos concretos) e não de geral-particular. E isso significa tudo, porque é exatamente essa estrutura que diferencia o precedente de um tema repetitivo, de uma súmula ou de uma tese.

Em verdade, precisamente pela compreensão equivocada do que é um precedente judicial é que temas, súmulas e teses assumem o papel central que deveria ser ocupado pela relação entre a decisão e o caso concreto enfrentado. Sabe-se que temas e afins não são precedentes, mas, ao invés de buscarmos o sentido enunciado por esses mecanismos, que nos seria entregue pela busca profunda dos fundamentos que compuseram a razão de decidir do Tribunal, para que, com a observância reiterada, os leading cases que deram origem a essas súmulas ganhem a autoridade de precedentes, optamos por tratar teses como se Leis fossem e o problema permanece: casos como o ora apresentado revelam que não temos um sistema de precedentes e que a insegurança jurídica permanece.

 O ponto é: seria necessária a revisão do Tema 677, ou o próprio leading case que ensejou o tema forneceria respostas para o imbróglio? Talvez essa pergunta devesse ser substituída por uma ainda muito anterior: se a "zona de penumbra" existe e, afinal, estamos condenados a interpretar, antes de pensarmos na implantação de um "pseudo" sistema de precedentes, não seria importante prestar atenção naquilo que a Crítica Hermenêutica do Direito há anos defende: a impreterível necessidade de desenvolvimento de uma teoria da decisão judicial [3] que coloque sobre o Estado Juiz a responsabilidade política que lhe é inerente, partindo-se das noções de coerência, integridade e tradição?

 


[1] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. QO no Recurso Especial nº 1.820.963/SP. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Data de julgamento: 07 out 2020. DJe: 28/10/2020, p. 8.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Equívocos sobre a "cultura de precedentes" à brasileira: novo round. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 8 dez 2022. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2022-dez-08/senso-incomum-erros-cultura-precedentes-brasileira-round>.

[3] Em complemento, é preciso também destacar que o ensino jurídico precisa abandonar a compreensão criteriológica fundada, única e exclusivamente, nas autoridades "criadoras" do Direito — aquilo que Dworkin denomina de "teste de pedigree" —, quando deparado com os problemas práticos que o fenômeno jurídico impõe aos seus operadores. É preciso, na esteira das reivindicações há tanto feitas e refeitas pela CHD, um esforço teórico para o desenvolvimento de uma racionalidade também voltada a fundação de critérios, mas substantivos, traçados a partir das noções de "resposta adequada à Constituição" e apostando na responsabilidade política e institucional dos juízes.

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