Opinião

Boa-fé objetiva e segurança jurídica como limites ao princípio da legalidade estrita

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14 de dezembro de 2022, 13h07

O tema deste artigo diz respeito a um problema tradicional da teoria do Direito Administrativo, qual seja, os efeitos da conduta da Administração que gera expectativas no administrado diante da vedação ao comportamento contraditório. No confronto entre a legalidade estrita e o dever de prestigiar a boa-fé objetiva, em sua face de proteção da confiança legítima, o que deve ser prestigiado?

Embora isso não constitua propriamente uma novidade no Direito Administrativo, fato é que a atual compreensão do tema reforça a necessidade de se respeitar a boa-fé no que se refere ao prestígio da Administração às expectativas derivadas de seu próprio comportamento. Agir de boa-fé exige que se respeite os efeitos das condutas adotadas, máxima essa que vale tanto para o campo das relações privadas quanto para as relações públicas. Aliás, neste último com maior razão, haja vista as exigências éticas constituírem o próprio substrato da noção de Estado de Direito. Como ensina Romeu Bacellar Filho:

"A atuação da Administração Pública deve ser sempre marcada por uma pauta previsível, não havendo lugar para ciladas, rompantes ou açodamentos a caracterizar uma “administração de surpresas”. Submissa ao princípio da legalidade, conformadora da segurança jurídica, haverá de ser prestigiada a irretroatividade legal de preceitos mais gravosos, a previsão de regras de transição, a coisa julgada, a preclusão, a decadência, a usucapião, o direito adquirido e a vedação de aplicação retroativa de nova interpretação [1]."

Há muito já se abandonou a ideia de que a legalidade está sujeita a uma lógica do branco e preto. Há diversos tons dégradé, que traduzem a necessidade de se prestigiar a segurança jurídica, mesmo em casos de potencial ilegalidade. Essa noção encontra trânsito em diversos institutos jurídicos, notadamente os contidos na Lei Federal de Processo Administrativo (Lei n. 9.784/1999, LPAF) e na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942, LINDB).

Em ambos os diplomas se encontram institutos vocacionados justamente a garantir a estabilidade das relações, mesmo em face de eventuais ilegalidades. Apenas para registro, nesse sentido convergem a decadência que se impõe à Administração no que se refere aos atos ilegais por ela praticados (artigo 54 da LPAF), a impossibilidade de nova interpretação com efeitos retroativos (artigo 2º, XIII da LPAF), o dever de deferência às práticas administrativas consolidadas (artigo 24, parágrafo único, da Lindb), a previsão de atos negociais que visem a sanar ilegalidades (artigo 26 da Lindb) e o dever geral de aumentar a segurança jurídica na atuação administrativa (artigo 30 da Lindb). Isso mostra que a concepção formal de legalidade não encontra mais vez em nosso direito positivo.

Hoje não há dúvida que há situações que, mesmo formalmente ilegais, devem ser preservadas em prol de uma compreensão mais ampla de legalidade. Nem mesmo a inconstitucionalidade é vista como um juízo absoluto, cabendo modular os seus efeitos para evitar injustiças e agravos à boa-fé (artigo 27 da Lei nº 9.868/1999).

Talvez a mudança mais evidente tenha se dado no próprio conceito de legalidade, que deixou de ser vista como um gabarito pré-definido por um legislador onisciente para se tornar um procedimento de concretização, por meio da conjugação entre lei e função administrativa, orientado à promoção do bem comum. Conceitos como políticas públicas, relações administrativas e processo administrativo passam a ocupar o espaço da legalidade como juízo formal. Em termos simples, o Direito exige que a legalidade deve ceder em situações concretas em que é inequívoca a boa-fé do cidadão.

É dizer, prestigiar a legalidade não significa aplicar mecanicamente a letra da lei; definir a legalidade diante do caso concreto significa levar em consideração todo um plexo de valores que, eventualmente, levam à necessidade de a própria lei ceder em face de outras regras igualmente dignas de tutela. Como visto, esse é um efeito necessário do aumento da complexidade das relações administrativas, em que há nítida perda do sentido da lei como definidora de valores absolutos. Em outras palavras, proteger a legalidade implica avaliar o quadro da normatividade de forma completa.

Fixadas essas primeiras ideias, importa destacar a importância da segurança jurídica nesse contexto todo, especialmente nas relações público-privadas. Sendo incontestável que à Administração compete dar substância à vontade do legislador, passa a ser relevante avaliar o seu comportamento ao aplicar a lei. As respostas já não se encontram apenas no que diz a lei, abstratamente considerada: o comportamento, a interpretação e aplicação da lei pelo administrador passam a ser relevantes, especialmente para os particulares que balizam seu comportamento em função disso. É por isso que a Administração não pode invocar a letra da lei como modo de se eximir de honrar com as expectativas derivadas da sua conduta, pois sua atuação passa a ser indício de como a lei será interpretada/aplicada.

Daí porque a confiança é um elemento que deve ser prestigiado. Usualmente, os autores associam a confiança legítima à boa-fé objetiva, que por sua vez deriva do princípio da moralidade administrativa [2].  A moralidade administrativa, mais do que interditar a adoção pelo administrador de condutas desviadas da ética, tem valor positivo: ela exige, dentre outras condutas, que a Administração atue de modo a honrar as expectativas que suas ações geram. O que está em causa é exigir que a Administração seja deferente às suas condutas, abstendo-se de comportamentos randômicos, e isso para evitar que o Direito atue como elemento de instabilidade; e não de segurança.

A segurança jurídica compõe elemento indissociável do Estado de Direito, inclusive no que se refere à sua dimensão subjetiva, que é a confiança legítima. Como anota J. J. Gomes Canotilho, segurança jurídica e confiança legítima implicam "[…] calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos" [3]. Em termos diretos: o princípio da segurança jurídica se aplica à Administração que, portanto, está obrigada a ser deferente às expectativas dos particulares fundadas em seu próprio comportamento.

Mais do que uma exigência implícita da atuação administrativa, o dever de atuar em prol da segurança jurídica se encontra expressamente consagrado no artigo 30 da Lindb, que exige que as "autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas". Nessa linha, a legalidade deve ser lida considerando as exigências da segurança jurídica. Não há oposição entre esses conceitos, pois definir a legalidade em sentido amplo passa, necessariamente, por avaliar a confiança legítima gerada pelas condutas estatais. O que ofende a legalidade é analisar apenas a letra da lei, deixando de lado as contingências da segurança jurídica; não o contrário.          

Diante disso, algumas ponderações hão de ser feitas no que se refere ao exame que deve ser realizado pelo administrador público (e a fortiori pelo Judiciário) no sentido de balizar a interpretação em casos em que está em causa a confiança legítima dos administrados.

A primeira baliza metodológica a ser considerada é a boa-fé do particular. O pressuposto de proteção da confiança é que o particular não tenha dado causa ao comportamento ilegal da Administração, induzindo-a em erro ou violando outro postulado ético que informa a relação público-privado. Em certa medida, é a boa-fé o bilhete de entrada na discussão se os atos devem ou não ser conservados, mesmo em contrariedade à legalidade formal. Nosso direito encampa tal perspectiva como se nota no artigo 54 da LPAF, que é taxativo ao indicar que o poder de anulação decai, desde que haja boa-fé do particular.

A segunda baliza diz respeito à estabilidade do comportamento da Administração, que pode se traduzir em elementos diversos, todos convergindo no sentido da aparência de legalidade do comportamento. Quanto maior for a aparência de legalidade do comportamento, menor será a possibilidade de a Administração invocar a mudança de comportamento. Um dos principais elementos que milita nesse sentido é o tempo. Situações de há muito consolidadas reforçam o dever de tutela da boa-fé, vedando a possibilidade de a Administração adotar conduta contraditória.

Nesse contexto assume ainda mais importância a omissão de deveres específicos de decisão. Embora o silêncio da Administração em regra seja lido como uma atividade contra legem, mas sem efeitos externos, fato é que quando houver uma omissão diante de um dever concreto e específico de rechaçar alguma ilegalidade, esse comportamento por si só induz à crença dos particulares da legalidade da conduta adotada.

Aqui a omissão assume o mesmo status de conduta concreta, similarmente aos atos comissivos por omissão. As omissões podem ser genéricas ou específicas. Havendo um dever de manifestação claramente imputado à Administração, a omissão específica por parte da Administração no exercício das competências de tutela da legalidade implica a criação de um estado de convicção acerca da legalidade.

Ademais, além da necessidade de se analisarem as circunstâncias pelas quais o fato foi formado, é importante destacar que nosso direito positivo exige que se ponderem os efeitos do desfazimento do ato, somadas as considerações relativas à eventual possibilidade de se criarem convenções capazes de reequilibrar a balança da legalidade e dos interesses legítimos dos cidadãos.

Tais exigências foram expressamente introduzidas em nosso direito positivo pela Lindb, que condiciona a pretensão de restaurar a legalidade a uma análise das suas consequências concretas (artigo 21). É necessário considerar também se há alternativas capazes de tutelar os interesses da Administração e preservar os interesses dos particulares. O artigo 26 da Lindb impõe tais cogitações sobre a possibilidade da produção de atos consensuais capazes de eliminar incertezas.

Em uma palavra final, falar em respeito à legalidade no direito público passa necessariamente pela discussão que envolve a proteção à confiança legítima gerada no particular pelas condutas da Administração. Há situações que, mesmo formalmente ilegais, devem ser preservadas em prol de uma compreensão mais ampla de legalidade que alcance a proteção à boa-fé do cidadão para, com isso, evitar que o Direito se transforme em instrumento de instabilidade, e não de segurança


[1] FILHO, Romeu Bacellar. A estabilidade do ato administrativo criador de direitos à luz dos princípios da moralidade, da segurança jurídica e da boa-fé, A&C  Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 10, nº 40, abr./jun. 2010.

[2] O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do artigo 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei n° 9.784/99). Revista de Direito Administrativo, vol. 237, jul/set. 2004, p. 272-273.

[3] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 2002, p. 257.

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