Opinião

Controle da valoração da prova documental ilícita no Processo Civil

Autor

  • Luiz Roberto Hijo Sampietro

    é doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP) especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD) bacharel em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT) advogado professor de Processo Civil no Núcleo de Direito à saúde da ESA/OAB-SP e em cursos de pós-graduação lato sensu.

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14 de dezembro de 2022, 20h35

Ao cunhar a regra prevista no artigo 1º, o legislador do atual CPC quis deixar bem claro que o processo civil brasileiro deve ser organizado, regrado e aplicado em simetria com a Constituição. Trata-se da função jurisdicional submetida aos cânones do modelo constitucional de processo civil [1], e não de mera ideologia, inspiração filosófica ou opção teórica do intérprete [2]. Seguindo as orientações do dispositivo de abertura do CPC, o artigo 369 é um preceptivo de envergadura, na medida em que 1) consagra o devido processo legal ao admitir que os litigantes se valham de todos os meios típicos e atípicos para provar a veracidade das alegações sobre fatos pretéritos [3]; 2) coíbe a utilização de prova ilícita para fomentar o convencimento judicial; e 3) equipara o grau de proibição constitucional da prova obtida de forma "moralmente ilegítima" ao da prova ilícita.

Relativamente à prova "moralmente ilegítima", há dissenso doutrinário. Os que são contrários sustentam que a expressão "moralmente legítimos", que está no artigo 369 do CPC, é um texto expletivo, ou seja, de realce, parecendo um resquício do tempo em que os princípios não tinham força normativa, ou a simples utilização de termos jusnaturalistas pelo legislador [4]. Por outro lado, os que defendem a diferença alegam que a legalidade e a legitimidade moral do meio probatório já eram alvos de preocupação do CPC/73 no que tange à admissão da prova [5]. Com maior razão, subsiste a diferença após o advento da Constituição de 1988 e o Código de Processo Civil de 2015. Ainda, existe uma terceira posição, que associa a cláusula "meios moralmente legítimos" às provas atípicas [6]. De nossa parte, faremos alusão conjunta a ambos os meios, pois entendemos que ela resguarda o mínimo de substrato moral exigido pela regra da boa-fé objetiva do artigo 5º do CPC.

No que tange à prova documental, o autor e o réu devem instruir a petição inicial e a contestação com os documentos capazes de amparar as versões dos fatos, que são antagônicas (CPC, artigo 434, caput). Há reforço dessa diretriz com relação à petição inicial, que deve ser instruída com os documentos indispensáveis à propositura da ação (CPC, artigo 320). Segundo a letra da lei, admite-se a juntada de prova documental aos autos a qualquer tempo se o documento for novo, a teor do que preconiza o artigo 435 do CPC [7]. Ainda, a regra do artigo 436 do CPC traz as possibilidades de comportamento da parte adversa quando algum documento é juntado aos autos: 1) impugnação da admissibilidade; 2) impugnação da autenticidade; 3) arguição do incidente de falsidade documental; e 4) manifestação sobre o teor do documento.

Essa visão panorâmica revela que os instantes da prova — proposição, admissibilidade, produção e valoração — funcionam de modo específico para a prova documental: há inversão desse procedimento, uma vez que o interessado faz a juntada da documentação aos autos (proposição e produção) e, depois do contraditório, o juiz faz a admissão [8] e, se o caso, dá o valor ao respectivo meio de prova. O cerne da discussão reside nesse ponto: para decidir sobre a admissão da prova, o juiz já terá entrado em contato com o referido meio probatório. Então, como prevenir o viés trazido pelo conteúdo da prova ilícita/imoral no instante em que a decisão for proferida?

O psicólogo Seymour Epstein desenvolveu a teoria segundo a qual o cérebro humano opera de maneira dual: há um sistema mais rápido e outro, que é mais lento. Tal concepção teórica foi popularizada pelo também psicólogo e economista Daniel Kahneman, que, em 2002, venceu o Prêmio Nobel de Ciências Econômicas com a obra Thinking, fast and slow. Para Kahneman, o sistema intuitivo, chamado de "sistema 1", é rápido, eficiente, automático, inconsciente e pouco preciso. O modo automático de funcionamento cerebral é extremamente útil para a resolução de problemas simples e triviais, além de quase não exigir esforço. Em contraposição, o sistema reflexivo ("sistema 2") é meticuloso, reflexivo, detalhista e lento. O "sistema 2" entra em cena para a resolução de problemas mais complexos, que exigem grau superior de meditação do indivíduo [9]. Fundamentado nesse sistema dual de funcionamento do cérebro, o neurocientista Joshua Greene relata que o cérebro humano foi projetado para a vida tribal, isto é, para conviver harmoniosamente com indivíduos que partilham dos mesmos hábitos, crenças e valores, e para lutar contra aqueles que pertençam a outro grupo. Quando o ser humano toma contato com a informação, são ativados os "sistemas 1 e 2", compostos, respectivamente, da amídala e córtex pré-frontal ventromedial, e córtex pré-frontal dorso-lateral. Veja a ilustração abaixo[10]:

Reprodução
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O detalhe é que o cérebro não soluciona os problemas a que é submetido com apenas um dos sistemas. Mesmo que o assunto demande ponderação, o "sistema 1", que é o destinado à rápida resolução de problemas, influencia a linha analítica do "sistema 2"[1]. Por isso, o indivíduo que é o juiz da causa sofrerá o viés do conteúdo da prova ilícita/imoral, ainda que o respectivo meio seja retirado dos autos [2]. Para inadmitir a prova ilícita/imoral, o magistrado necessariamente precisa ter contato com ela. Isso já é o suficiente para que as impressões trazidas pelo documento obtido de forma ilegal/imoral já consigam influenciar o convencimento do juiz.

Para prevenir a ocorrência de viés cognitivo trazido por prova ilícita/imoral, seria possível imaginar, de lege ferenda, um procedimento prévio de admissibilidade da prova documental, a ser realizado por outro magistrado. No entanto, além de provavelmente tornar a prova documental muito custosa e demorada, essa proposta deveria transformar o primeiro grau de jurisdição em órgão colegiado, o que também provocaria reflexos na dotação orçamentária a ser empregada no Poder Judiciário.

Dada a impossibilidade de eliminação apriorística do viés do juiz que depara com prova documental ilícita/imoral nos autos do processo, ganha em importância o controle posterior da admissibilidade do referido meio de prova, externado na fundamentação judicial e no sistema racional de valoração da prova (CPC, artigo 371). Tal sistema, defendido por filósofos e estudiosos do direito probatório [3], terá a virtude de iluminar o raciocínio do juiz, indicar que ele pode ter sofrido o viés da prova documental ilícita/imoral [4] e direcioná-lo para uma decisão que se apoie nos meios de provas lícitos que estão nos autos.

 


[1] GREENE, Joshua. Moral tribes, p. 122-123. Assim também WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil. 2ª ed. São Paulo: RT, 2020, p. 182.

[2] Com toda a razão, Paulo Osternack Amaral menciona que não há muita complexidade na elaboração de argumento-blindagem para mostrar que a decisão foi tomada somente com base na prova lícita. (Provas: atipicidade, liberdade e instrumentalidade. 3ª ed. São Paulo: RT, 2021, p. 254)

[3] FERRER-BELTRÁN, Jordi. Prueba y verdad en el derecho. 2ª ed. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 35 e seguintes. Vitor de Paula Ramos ilustra com precisão o modelo objetivo de valoração da prova: "Pode-se dar o caso, por exemplo, de que o juiz, ouvindo uma gravação obtida por meios ilícitos, esteja convencido da culpabilidade do réu. Não obstante, não aceitará como provada a hipótese de que o réu é culpado, diante da inexistência, objetivamente, de elementos de juízo suficientes nos autos a favor da hipótese da culpabilidade". (Prova testemunhal. 2ª ed. Salvador: Juspodium, 2021, p. 41-42)

[4] Para Fabio Nunes de Martino, seria importante que os juízes compreendessem o funcionamento do processo de decisão e a possibilidade de eles serem atingidos por falhas cognitivas. Assim, eles poderiam se precaver contra os vieses para reduzir as indesejadas influências deles nos procedimentos decisórios. (Ciências cognitivas e o diretio: compreendendo como se dá a mecânica da decisão judicial. In: WOLKART, Erik Navarro; MILAN, Matheus (Coords.). Neurolaw: direito, neurociência e sistema de justiça. São Paulo: RT, 2021, p. 126-127)

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD), bacharel em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT), advogado e professor de Processo Civil em cursos de pós-graduação lato sensu.

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