Defesa da Concorrência

Atualização dos Merger Guidelines dos Estados Unidos

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12 de dezembro de 2022, 17h33

No último ano, intensificaram-se as discussões sobre uma possível atualização das diretrizes para análise concorrencial de fusões e aquisições nos Estados Unidos (Merger Guidelines). Pronunciamentos e iniciativas indicam uma busca de amparo a novas visões sobre o antitruste por parte das autoridades empossadas com a administração Biden. Os debates dizem muito sobre tendências que devem repercutir no Brasil, por tratarem de pontos em comum enfrentados em ambos os países: a presença da dialética na política concorrencial — mais ou menos intervencionista, e mais ou menos aberta a novos valores desvinculados de uma noção de eficiência econômica —, e dos desafios relacionados à economia digital.

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Nos EUA, cabe à Federal Trade Commission (FTC) e ao Department of Justice (DOJ) impedir ou remediar operações que possam diminuir substancialmente a concorrência. O primeiro Merger Guidelines foi publicado pelo DOJ em 1968, com o objetivo de proporcionar transparência sobre orientações aplicadas na análise antitruste de operações. Desde então, houve uma série de atualizações, sendo a última de 2010.[1]

Em julho de 2021, o presidente Joe Biden publicou uma Executive Order on Promoting Competition in the American Economy, encorajando expressamente a FTC a rever o enforcement antitruste atual e expressando preocupação com o suposto surgimento de muitos mercados com poucos concorrentes.[2] Nessa linha, a presidente da FTC, Lina Khan, e o Procurador Geral Antitruste, Jonathan Kanter, em diversos pronunciamentos indicam a necessidade de assegurar que as ferramentas antitruste sejam adequadas à economia moderna de modo que autoridades sejam encorajadas a dificultar ou bloquear mais operações.[3] Veja-se que não se trata de um posicionamento isento de juízo de valor. Ao contrário, tem sido controverso, por se tratar de uma posição bastante crítica à prática antitruste das últimas décadas, considerada fraca pelos novos xerifes. 

De modo geral, a nova linha de pensamento vem do chamado neo-Brandeisian movement, movimento acadêmico e político antitruste nos Estados Unidos que se opõe à escola de pensamento focada nos efeitos de preços e eficiências da escola de Chicago.[4][5] O movimento defende uma abordagem antimonopolista ampla, priorizando o aumento de barreiras às operações e defendendo uma abordagem mais holística do antitruste, que incorpore valores adicionais para além de preços e oferta.

Esse movimento vai além de pronunciamentos: em janeiro deste ano, as autoridades americanas publicaram um Joint Public Inquiry sob o pretexto de buscarem reforço ao enforcement contra operações que consideram anticompetitivas, enviando um questionário (RFI)[6] a participantes do mercado, entidades do governo, economistas, advogados, acadêmicos, consumidores, entre outros.[7] Os seguintes temas foram abordados no RFI: objetivo da análise antitruste; possível presunção de que certas operações seriam anticompetitivas; a definição de mercado relevante para avaliar os efeitos das operações na concorrência; riscos a concorrentes potenciais e nascentes; impactos de poder de compra; e características únicas de mercados digitais.

As informações recebidas em resposta ao RFI podem ser usadas como evidência, em conjunto com pesquisas adicionais das autoridades, para uma possível proposta de atualização das diretrizes dos Merger Guidelines. A partir dos pronunciamentos das autoridades e do texto do RFI já é possível extrair algumas alterações que podem compor tal proposta e, como se verá adiante, não aparecem sem questionamentos e resistência de estudiosos.[8]

No RFI, as autoridades questionam se as diretrizes de fato implementam o objetivo de proibição legal de operações que possam diminuir substancialmente a concorrência ou criar monopólios.[9] As diretrizes indicam certas circunstâncias de mercado que justificariam uma presunção de dano concorrencial baseada na concentração do mercado. As autoridades questionam se os limites de concentração devem ser ajustados para melhorar a eficiência e eficácia de detecção de operações anticompetitivas, e se métricas alternativas ou fatores qualitativos também devem desencadear presunções de dano concorrencial.

Nesse sentido, discute-se a possível proibição/limitação de aquisições que geram concentração horizontal ou integração vertical por empresas altamente capitalizadas ou com alto número de usuários, por exemplo. Alguns pronunciamentos de legisladores consideram até que se deve presumir que operações são anticompetitivas até que as partes provem o contrário. Por outro lado, alguns estudiosos levantam preocupações em relação a tais posicionamentos neo-Brandeisianos: segundo eles, essas mudanças esfriariam as aquisições e potencialmente retirariam da corrida competitiva empresas que frequentemente têm melhores perspectivas de desconsolidar muitos mercados, incluindo os mercados digitais que são propensos a tipping. [10]

Uma possível alteração aos guidelines que parece enfrentar menos resistência é a inclusão de certos conceitos relacionados a "novos mercados" para ajudar o público, os tribunais, os formuladores de políticas e as partes a compreenderem os mercados: concorrência potencial e nascente, plataformas, dados e a relação entre a análise e a conduta em matéria de fusões. Nesse sentido, estudiosos indicam que apesar dos riscos, a revisão das diretrizes oferece uma oportunidade para atualizar e melhorar os textos fundacionais sobre controle de fusões nos EUA.[11]

Outro posicionamento importante das autoridades americanas é o ceticismo em relação aos remédios antitruste. Em pronunciamento em julho de 2021, Khan disse que "enquanto os remédios estruturais geralmente têm um histórico mais forte do que os remédios comportamentais, estudos mostram que os desinvestimentos também podem se mostrar inadequados diante de uma fusão ilegal. Diante disto, acredito que os órgãos antitruste deveriam considerar mais frequentemente a oposição a operações problemáticas".[12] No RFI, as autoridades questionam explicitamente se as diretrizes de fusão deveriam adotar um processo formal e prazos para propostas de remédios.[13]

O texto do RFI sugere que as autoridades estariam considerando substituir o objetivo de busca pelo bem-estar do consumidor por outros objetivos alternativos na análise de operações. Como dito, este é um dos núcleos do movimento neo-Brandeisian, e certamente um dos mais polêmicos. Vários estudiosos indicam posicionamento contrário: em sua opinião, afastar-se do padrão de bem-estar do consumidor prejudicaria necessariamente os consumidores e substituiria um padrão claro por uma série de padrões potencialmente vagos, minando a credibilidade das autoridades, o que também seria prejudicial.[14]

Até mesmo a ideia de vinculação a decisões precedentes que é tão forte nos Estados Unidos, um país com sistema jurídico de common law, vem sendo questionada, sobretudo em relação à definição de mercados relevantes. No RFI, as autoridades buscam possíveis atualizações na análise da definição de mercado para levar em conta a concorrência sem preço e os chamados out-of-market effects. Os questionamentos parecem buscar comparar a importância dada à análise empírica passada ou presente dos mercados versus ao futuro, buscando o que seria adequado para avaliar poder de mercado nas dinâmicas high-tech.

A esse respeito, alguns autores[15] defendem a necessidade de novas diretrizes que sejam consistentes tanto internamente quanto com precedentes vinculativos. Isso porque consideram que a essência do Estado de Direito é que casos semelhantes sejam tratados da mesma forma, e indicam um risco de que as novas diretrizes adotem posições inconsistentes sobre vários tópicos.

No RFI, as autoridades também indicam possíveis atualizações na discussão das diretrizes sobre concorrentes potenciais e concorrentes nascentes, que podem ser fontes-chave de inovação e concorrência. As autoridades parecem sugerir testes mais "indulgentes" para avaliar a importância competitiva de concorrentes nascentes, bem como testes diferentes e mais rigorosos para avaliar a importância competitiva de quaisquer outros concorrentes potenciais. Novamente, este é um tema que configura um bom exemplo de debate entre as diferentes correntes antitruste e encontra-se em franca discussão.[16]

Verifica-se, ainda, um aumento de hostilidade em relação a fusões verticais pelas autoridades, sobretudo por conta de preocupação com efeitos coordenados. Há um ceticismo em relação aos benefícios das fusões verticais e dos remédios tradicionalmente usados para controlar seus riscos competitivos. No entanto, segundo alguns autores, com base no longo histórico de casos, as preocupações das autoridades seriam materialmente exageradas.[17]

Por fim, outra possível alteração nas diretrizes americanas envolve a eliminação ou marginalização do price modeling na análise de operações. Em resumo, a desconexão entre modelos estáticos de previsão de preços e o fato de que a inovação é considerada o driving force de diferenciação tem gerado questionamentos. Alguns autores já sugerem que para resolver essa possível incongruência, os Merger Guidelines deveriam considerar o conjunto de evidências além dos modelos de precificação (sem necessariamente excluir tal análise).[18]

Como se vê, o atual momento de autoreflexão do antitruste está em seu pico, e talvez as propostas de atualização dos Merger Guidelines americano sejam a primeira e principal demonstração prática, pelos defensores das mudanças, dos impactos de sua linha de pensamento sobre a efetiva condução de casos antitruste. Não há consenso. Se as mudanças vierem, provavelmente serão a fórceps, e possivelmente em algum momento deverão encarar o escrutínio das cortes americanas. Em paralelo, porém, é provável que quaisquer alterações nas guidelines mais influentes do mundo tenham impacto em outras jurisdições, incluindo o Brasil.


[1] A esse respeito, ver artigo “The 2010 Horizontal Merger Guidelines: From Hedgehog To Fox In Forty Years” de Carl Shapiro, disponível em: https://www.law.berkeley.edu/wp-content/uploads/2015/04/Shapiro-The-2010-Horizontal-Merger-Guidelines-From-Hedgehog-to-Fox-in-40-Years-2010.pdf. Acesso em 09/12/2022.

[4] Essa “nova” doutrina tem como um dos principais arcabouços teóricos o jurista norte-americano Louis Dembitz Brandeis, razão por que é frequentemente chamada de neo-brandeisiana. Louis Brandeis nasceu em Louisville, Kentucky, Estados Unidos, em 1856. Brandeis defendeu posições hoje reavivadas pelo chamado hipster antitrust.

[5] A esse respeito, ver artigo “O antitruste na encruzilhada” de Eduardo Frade, disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-04/defesa-concorrencia-futuro-antitruste-encruzilhada. Acesso em 09/12/2022.

[6] Disponível em: https://www.regulations.gov/docket/FTC-2022-0003/document. Acesso em 06/12/2022.

[8] O levantamento das possíveis alterações e respectivas críticas por estudiosos foram baseadas no texto “Antitrust Chronicle: Merger Guidelines – November 2022”, publicado pela Competition Policy International (CPI), disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/how-the-new-anti-merger-policy-may-be-the-new-antitrust-paradox/?utm_source=Sailthru&utm_medium=email&utm_campaign=November%20AC%20-%20Merger%20Guidelines&utm_term=daily_nl. Acesso em 06/12/2022.

 

[9] Khan está especialmente preocupada com aquisições por "empresas dominantes": de acordo com a presidente do FTC, as empresas dominantes deveriam ser impedidas de adquirir recursos adicionais para o crescimento, porque a principal preocupação não é facilitar ou proteger a concorrência pelo mérito, mas sim preservar os resultados "estruturais". Disponível em “Antitrust Chronicle: Merger Guidelines – November 2022”, publicado pela Competition Policy International (CPI), disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/how-the-new-anti-merger-policy-may-be-the-new-antitrust-paradox/?utm_source=Sailthru&utm_medium=email&utm_campaign=November%20AC%20-%20Merger%20Guidelines&utm_term=daily_nl. Acesso em 06/12/2022. Acesso em 09/12/2022.

[10] Como Maureen K. Ohlhausen & Taylor Owings em “How the New Anti-Merger Policy May Be the New Antitrust Paradox”, disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/how-the-new-anti-merger-policy-may-be-the-new-antitrust-paradox/?utm_source=Sailthru&utm_medium=email&utm_campaign=November%20AC%20-%20Merger%20Guidelines&utm_term=daily_nl. Acesso em 06/12/2022.

[11] Segundo o autor Daniel Francis em “Revisiting the Merger Guidelines: Protecting an Enforcement Asset”,  disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/how-the-new-anti-merger-policy-may-be-the-new-antitrust-paradox/?utm_source=Sailthru&utm_medium=email&utm_campaign=November%20AC%20-%20Merger%20Guidelines&utm_term=daily_nl. Acesso em 06/12/2022.

[13] Disponível em: https://www.regulations.gov/docket/FTC-2022-0003/document. Acesso em 06/12/2022.

[14] Segundo os autores Mark Israel, Jonathan Orsza & Jeremy Sandford em “New Merger Guidelines Should Keep the Consumer Welfare Standard”, disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/how-the-new-anti-merger-policy-may-be-the-new-antitrust-paradox/?utm_source=Sailthru&utm_medium=email&utm_campaign=November%20AC%20-%20Merger%20Guidelines&utm_term=daily_nl. Acesso em 06/12/2022.

[15] Como Keith Klovers, Alexandra Keck e Allison Simkins em “Treating Like Cases Alike: The Need for Consistency in the Forthcoming Merger Guidelines”, disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/how-the-new-anti-merger-policy-may-be-the-new-antitrust-paradox/?utm_source=Sailthru&utm_medium=email&utm_campaign=November%20AC%20-%20Merger%20Guidelines&utm_term=daily_nl. Acesso em 06/12/2022.

[16] Sobre esse tema, ver o artigo “Análise antitruste de aquisições de empresas nascentes” de Eduardo Frade e Bruna Silvestre Prado. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/analise-antitruste-de-aquisicoes-de-empresas-nascentes-20122021. Acesso em 09/12/2022.

[17] Como Abbott B. Lipsky, Jr., Margaret C. Levenstein e Valerie Y. Suslow. em “The Neo-Brandeisian Approach to Vertical Mergers – A Zipline to Oblivion?”, disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/how-the-new-anti-merger-policy-may-be-the-new-antitrust-paradox/?utm_source=Sailthru&utm_medium=email&utm_campaign=November%20AC%20-%20Merger%20Guidelines&utm_term=daily_nl. Acesso em 06/12/2022.

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