Defesa da Concorrência

O futuro do antitruste na encruzilhada

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4 de janeiro de 2021, 8h02

Em novembro de 2020, o tradicional Fall Forum da Seção Antitruste da American Bar Association teve como tema "O Futuro do Antitruste". A escolha não foi à toa. Muito em razão das discussões crescentes (e populares) sobre o poder de mercado das big techs e seus efeitos sobre a concorrência, o Direito Antitruste se vê hoje em uma encruzilhada.

ConJur
Entre os diferentes painéis de especialistas no Fall Forum, um em específico representou e resumiu de forma bastante direta e singela o atual dilema do direito concorrencial. Em curtas apresentações, debateram os professores Joshua Wright e Lina Khan [1]. Para entendedores de antitruste, a escolha dos nomes equivaleu a uma espécie de "luta do ano", dado o que cada um representa.

Lina Khan, hoje professora da Columbia Law School, é uma jovem estudiosa que se notabilizou como uma das primeiras e mais eloquentes vozes contra o crescimento das big techs, escrevendo artigos que ficaram populares e que criticaram pesadamente o antitruste tradicional, representado especialmente pela Escola de Chicago. A nova linha advogada por Lina Khan e outros foi apelidada caricaturalmente de hipster antitrust.

Joshua Wright é professor da Antonin Scalia Law School, da George Mason University, e é um dos mais conhecidos defensores da ala conservadora do antitruste e dos valores básicos da Escola de Chicago, que, de fato, ainda que com revisões ao longo dos anos, foram o principal guia do Direito Concorrencial americano, e de grande parte do mundo, nas últimas décadas.

Em uma frase simples e, ao que parece, certeira, o professor Wright afirmou: o que definirá o antitruste hoje e no futuro é se ele permanecerá baseado na industrial organization economics ou em outra coisa. Ele próprio, evidentemente, é um defensor da primeira. Sem meias palavras, a professora Kahn defendeu que o antitruste abra espaço, justamente, para se basear em outras coisas. É o que ela chamou, em sua fala, de economic pluralism.

O antitruste dos últimos vários anos tem sido grandemente baseado nos manuais econômicos de organização industrial. Não que não haja correntes e divergências dentro dela própria. Mas, de modo geral, pode-se dizer que é um antitruste fortemente angariado em métodos de análise econômica que, ao final, buscam avaliar se determinadas condutas ou concentrações empresariais gerarão perdas de bem-estar ao consumidor. São chave, nessa análise, especialmente para a Escola de Chicago, mensurações de eficiências econômicas e de efeitos sobre o consumidor final em específico. As variáveis centrais para avaliação do bem-estar dos consumidores são, nessa abordagem, reduções de oferta e aumentos de preços. Escolas como a de Harvard, que se diferenciaram em certa medida de Chicago, tomaram como uma variável adicional importante a eventual redução do número de opções de ofertantes ao consumidor, além de outros fatores, mas ainda assim seguem uma industrial organization economics. Seja como for, a abordagem dessa linha se baseia em um método razoavelmente claro, baseado em poucas variáveis, geralmente objetivas, e altamente permeáveis a mensurações econômicas. Daí o sucesso dessa abordagem. A sua simplicidade deixa de fora, contudo, variáveis que para alguns são importantes.

Entra em cena a proposta de antitruste baseado no pluralismo econômico de Lina Kahn e outros. Os críticos recentes da abordagem do consumer welfare standard do antitruste tradicional propõem que o Direito Concorrencial, ao atacar a formação e ação de oligopólios e monopólios, se preocupe não só com os consumidores finais que adquirem bens e serviços eventualmente mais caros, mas também com uma série de outros agentes que compõem a cadeia produtiva, como pequenos produtores e varejistas. Mais importante (e controverso), porém, defendem que o antitruste, muito mais do que agir para evitar efeitos anticompetitivos de agentes dominantes sobre preços e oferta, deve também coibir os efeitos deletérios de monopólios sobre fatores tão diversos quanto níveis de emprego, salários da mão-de-obra, detenção de dados privados dos cidadãos, concentrações de poder que minem valores democráticos, eliminação do pluralismo de opiniões e outras várias manifestações possíveis que podem surgir diante de um agente com elevado poder econômico.

O debate é bastante legítimo e difícil. Ambas as visões e é evidente que também há caminhos do meio parecem ter em mente, verdadeiramente, o bem-estar dos cidadãos. Mas as diferenças quanto à melhor forma de atingi-lo e sobre a própria ideia do que os cidadãos querem são significativas.

Também parece razoavelmente evidente que, em algum grau, todos entendem que fatores como níveis de emprego, salários, privacidade e pluralismo democrático são importantes. Há, contudo, intensa divergência sobre se essas variáveis devem ser objeto de zelo do antitruste, ou se deveriam ser acobertadas por legislações, regulações e autoridades próprias.

Como não raro acontece, o Direito está alguns passos atrás dos acontecimentos. Esse debate ainda não foi finalizado, mas, diante do avanço dos fatos e das preocupações, as peças vão se mexendo. Em especial, autoridades de defesa da concorrência de todo o mundo, sob pressão, vão tomando decisões em um ou outro sentido, assim como alguns legisladores.

Os perigos decorrentes de uma ou outra abordagem são vários. Muitos temem, é claro, o risco de não tomar ações mais enérgicas e ver situações potencialmente deletérias eventualmente se agravarem. De outro lado, agir de forma açodada em um terreno inteiramente novo gera o risco de piorar certos cenários ou de estancar efeitos positivos, que de fato existem, em vários desses mercados.

Em especial, uma pergunta legítima, no caso de mudanças, é se o pluralismo econômico seria capaz de desenvolver, em curto período de tempo, um caminho analítico suficientemente objetivo, claro e inteligente, que substitua o modelo vigente de tantos anos. Colocando de outra forma: se autoridades antitruste forem instadas a tomar decisões sobre variáveis plurais e novas, sem um direcionamento claro, elas serão obrigadas a decidir o que quiserem, como quiserem. A chamada pelo pluralismo econômico não deixa de ser, abertamente, a defesa por ou antitruste mais "político", mais holístico, menos focado em variáveis econômicas técnicas e fechadas, e atento a outros desejos sociais. Mas é evidente que isso também tem lá os seus riscos, que vão desde maior espaço para politizações, eventuais arbitrariedades ou, simplesmente, decisões tecnicamente ruins.

Na encruzilhada do futuro do antitruste, mudanças estão a caminho. Ainda está pouco claro qual será a sua magnitude. Mas já parece certo que os pneus terão de ser trocados com o carro andando.

 


[1] Ressalta-se que os professores Joshua Wright e Lina Khan não revisaram nem foram consultados sobre o presente artigo, de modo que eventuais falhas na apresentação ou interpretação de suas falas são de responsabilidade exclusiva deste autor.

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