Direitos fundamentais

Controvérsia em torno da abertura de novos cursos de medicina

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10 de dezembro de 2022, 16h41

Mesmo desde antes da sua entrada em vigor, a Lei 12.871/2013, que instituiu a política pública designada "Programa Mais Médicos", tem sido objeto de acirrada controvérsia em todos os foros, judiciais e extrajudiciais (esfera política, meios de comunicação, academia, entre outros), atraindo, ademais disso, uma gama significativa de ações submetidas ao crivo do Poder Judiciário, inclusive aportando no Supremo Tribunal Federal (STF). 

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Atualmente, são duas as ações de controle concentrado, designadamente a ADC 81 e a ADI 7.187, relatadas pelo ministro Gilmar Mendes, que tramitam na nossa Suprema Corte. Em causa está a discussão em torno da legitimidade constitucional da exigência da realização de prévio chamamento público como condição para buscar a autorização para funcionamento de novos cursos de medicina, prevista no artigo 3º da Lei 12.871/2013, doravante chamada de "Programa Mais Médicos".

Cumpre sinalar, ainda em sede preliminar, que na ADC 81 a Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup) defende a constitucionalidade da exigência legal do chamamento público, ao passo que na ADI 7.187 o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub) advoga que tal medida viola o direito constitucional positivo brasileiro, ademais de favorecer os grandes grupos econômicos.

No que diz respeito às duas demandas referidas, o ministro Gilmar Mendes decidiu pela convocação de audiência pública, realizada no último dia 17 de outubro — e da qual tivemos a oportunidade de participar na condição de expositor representando o Crub — com o objetivo de obter subsídios de natureza técnica e fática, acerca do "Programa Mais Médicos", com destaque, entre outros pontos, para os impactos do procedimento do chamamento público sobre a oferta — em termos numéricos — de médicos no Brasil, sua distribuição no território nacional, e a qualidade de sua formação.  

Note-se que o STF já teve duas oportunidades para se pronunciar sobre a constitucionalidade de dispositivos da MP nº 621, que institui o "Programa Mais Médicos", a seguir convertida na Lei º 12.871/13, quais sejam, as ADI 5.035 e 5.037, julgadas, em conjunto, em novembro do ano de 2017.

No caso da ADI 5.035 foram questionados os artigos 7º, I, II e §§1º e 2º, I e  II,  §3º;  §1°, I, II e III do artigo 9º, artigo 10 e §§1º, 2º, 3º e 4º e artigo 11, da MP nº 621, tendo a Corte Suprema, por maioria de votos (6 votos a 2) julgado improcedente ação, do que decorreu a declaração da constitucionalidade dos dispositivos analisados, neles não incluso o art. 3º, que trata justamente do chamamento público[1].

Já na ADI 5037, em que foram questionados os artigos 8°; 9°; 10; 11; 13 e 14, da MP nº 621, além do 3º, aqui em discussão, o Tribunal, por maioria, vencido o ministro Marco Aurélio, relator da ação, acolheu a preliminar de ilegitimidade ativa ad causam da requerente e determinou a extinção do processo, de tal sorte que também nesta demanda a questão ora discutida na Suprema Corte não foi apreciada[2].

Calha agregar, que também o STJ não chegou a se pronunciar sobre o tema propriamente dito, visto que, no âmbito do Mandado de Segurança nº 23.975/DF, julgado em 13/9/2019, relatado pela ministra Regina Helena Costa, e ajuizado por ocasião da publicação do edital de chamamento público nº 2/2017, que limitou o número de municípios participantes do processo de seleção para quatro por unidade da Federação, o pleito foi indeferido já quando da apreciação do pedido de provimento liminar, ante a ausência da demonstração de periculum in mora e fumus boni juris. Além disso, a Corte denegou a ordem, em virtude de não ser competente  para julgar ato coator do Secretario de Regulação e Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação, a quem compete o monitoramento e a autorização de funcionamento de cursos de graduação em Medicina no âmbito do "Programa Mais Médicos", conforme a Portaria nº 07/17, do MEC[3].

À vista do exposto, será somente quando do julgamento da ADC 81 e da ADI 7187, que a querela em torno da compatibilidade do artigo 3º da Lei que instituiu o "Programa Mais Médicos" com a Constituição de 1988 (CF) será examinada e decidida quanto ao mérito pelo STF. Em apertada síntese, o que o Pretório Excelso deverá definir, é se é juridicamente legítima a submissão dos processos de autorização de cursos de graduação em medicina exclusivamente ao rito constante na Lei nº 12.871/13 (Lei do "Programa Mais Médicos"), que prevê chamamento público por parte do Ministério da Educação com o intuito de pré-selecionar Municípios que comprovem a necessidade social da oferta de médicos. 

Sobre a questão submetida ao STF e objeto desta coluna, o que aqui pretendemos sustentar, numa primeira rodada argumentativa, é o de que a norma contida no artigo 3º da Lei 12.871/2013 representa uma afronta à CF. Sendo inviável apresentar e discutir aqui todas as teses que sustentam a referida inconstitucionalidade e que foram por nós apresentadas e fundamentadas em parecer jurídico acostado a diversas demandas em tramitação nas instâncias ordinárias da Justiça Federal, selecionamos três (intervenção restritiva desproporcional na liberdade econômica das IES, violação do núcleo essencial da liberdade econômica e ofensa ao princípio da vedação do retrocesso social), que aqui serão sumariamente apresentados, sem prejuízo de, mais adiante, investirmos novamente no tema.  

A primeira e flagrante violação à CF, reside no fato de que a interpretação conforme a qual o artigo 3º da Lei do "Programa Mais Médicos" estabelece procedimento exclusivo do chamamento público para a obtenção de autorização estatal visando à abertura de novos cursos de medicina, resulta em restrição manifestamente inconstitucional da liberdade econômica, ao desatender por completo o princípio e correspondente dever de proporcionalidade.

Relembramos que, entre os fins da Lei 12.871/13, está o de reduzir a desigualdade de oferta de serviços médicos nas regiões do país (artigo 1º, I). Para tal efeito, o meio eleito pelo legislador foi a instituição de "chamamento público" e correspondente pré-seleção de municípios e Instituições de Ensino Superior (IES), tendo em conta a necessidade social da oferta.

No que diz com a primeira etapa do teste de proporcionalidade, a aptidão, mesmo em tese, do chamamento público como sendo meio adequado a fomentar os fins da legislação, merece sérias críticas, dada a inexistência de qualquer garantia de que os profissionais formados em localidades beneficiadas pelo "chamamento público" exercerão ali a sua profissão.

A permanência do graduado na localidade em muito dependerá de variáveis que escapam do domínio do "Programa Mais Médicos", como, dentre outros, a extensão da rede hospitalar e ambulatorial e os postos de trabalhos disponíveis, a infraestrutura dos complexos hospitalares e ambulatoriais e a contrapartida remuneratória pelo exercício da profissão.

Além disso, acerca do critério para diagnosticar a necessidade de profissionais médicos em uma localidade, a própria a Organização Mundial da Saúde (OMS) desaconselha que conclusões sejam retiradas exclusivamente da análise da proporção "médicos por habitantes".

Contudo, é esse o único elemento adotado pela Lei do "Programa Mais Médicos" para a filtragem de municípios e IES aptos a abrir novos cursos de medicina, desconsiderando-se por completo outros fatores relevantes, tais como a extensão do território, o sistema de saúde adotado, o nível socioeconômico, o perfil demográfico e epidemiológico da população, bem como a maior ou menor carência de médicos especializados em determinadas áreas.

Adentrando a segunda fase do teste de proporcionalidade, verificamos que a obrigatoriedade de submissão ao "chamamento público" é manifestamente desnecessária, dada a existência de meio tanto ou até mais eficaz para alcançar os fins da lei, mas que, ao mesmo tempo, é menos restritivo da liberdade econômica e mesmo de outros direitos fundamentais.

Acrescentamos, na esteira do que fez o TCU no Acórdão nº 1869/2016, que além de uma intensa interferência no âmbito de proteção da liberdade econômica, a exclusividade do procedimento de "chamamento público" resulta também em intensa interferência na livre concorrência, favorecendo inclusive a produção de efeitos colaterais indesejáveis, como o aumento do preço das mensalidades e comprometimento da qualidade dos serviços ofertados, dada a escassez de oferta e concorrência. 

Finalmente, também no âmbito da "proporcionalidade em sentido estrito", a conclusão é de que a intensidade da restrição da liberdade econômica é elevadíssima!

Isto porque não se trata da submissão de uma atividade econômica já exercida a determinados condicionamentos estabelecidos em lei, mas sim, de um impedimento integral de que a atividade econômica seja desenvolvida caso municípios e IES não sejam contemplados pelo "chamamento público". De acordo com o artigo 3º da Lei do "Programa Mais Médicos", uma IES sequer pode submeter sua proposta para que tê-la avaliada quanto ao seu mérito, tratando-se, portanto, de uma das intervenções mais gravosas no âmbito de proteção da liberdade econômica.

Se não bastasse o argumento colacionado, a adoção do procedimento de "chamamento público" como via exclusiva para a autorização de novos cursos de medicina, esvazia o núcleo essencial do direito à liberdade econômica.

Reportando-se ao núcleo essencial da livre iniciativa e da liberdade econômica, o STF já entendeu, na ADPF 449, que a regulação estatal não pode privar os agentes econômicos de empreender.

No entanto, a declaração incondicional da constitucionalidade do artigo 3 da Lei do "Programa Mais Médicos" impedirá que agentes econômicos iniciem a prestação de serviços educacionais e, com isso, ingressem em um segmento de mercado a fim de explorá-lo, violando a essência da livre iniciativa e, em particular, da liberdade econômica, sequer sendo permitido que IES com largo prestígio, tradição e recursos humanos, além de infraestrutura suficiente e qualificada, possam submeter propostas de criação de novos cursos de medicina. 

Finalmente, como terceiro argumento a ser invocado, entendemos que a imposição do rito exclusivo resulta em violação do princípio da proibição de retrocesso.

Destacamos que a oferta de vagas no ensino superior de medicina no Brasil, encontra-se aquém dos níveis suficientes, o que justifica a ampliação (e não a redução) das possibilidades de abertura de novos cursos. 

A manifesta insuficiência da aplicação do procedimento exclusivo do chamamento público de modo a alcançar os objetivos do "Programa Mais Médicos", fica claramente demonstrada, quando se relembra que a meta a ser alcançada, em 2013, era de 2,7 médicos por mil habitantes em 2016, usando os parâmetros de 2012 da OCDE. 

Transcorridos seis anos do prazo, em virtude da aplicação do procedimento ora questionado, em 2022 a proporção de médicos no Brasil é ainda bem inferior, isso tomando por referência os critérios da OCDE de 2012, dados que se revelam ainda mais escandalosos considerando que pelos atuais parâmetros da OCDE (2022) o número de médicos para mil habitantes deveria ser de pelo menos 3,5.

Soma-se a isso, que, de acordo com dados oficiais do próprio governo federal de agosto do presente ano, a distribuição desproporcional do número de médicos em termos regionais é manifesta, o que, dentre outros indicadores, se deve ao fato de que 41% dos médicos atuam nas 27 capitais, em que reside aproximadamente 24% da população, restando para os demais municípios brasileiros, em que reside 76% da população, o percentual de 59% dos demais médicos em atuação nos serviços de saúde.

Destacamos — ainda mais tendo em conta os dados citados — que a violação à proibição de retrocesso nas áreas da educação e da saúde foi ainda mais agravada com a publicação da Portaria nº 208/2020 pelo MEC, que, em tese, submeteu a abertura de novos cursos de Medicina ao procedimento definido pela Lei do PMM, assim como pela Portaria 328/2018, que suspendeu as autorizações para a abertura de novos cursos de Medicina até 2023, ademais das Portarias nº 523/2018 e 371/2022, que limitaram o requerimento do aumento de vagas para os cursos de medicina a uma única solicitação, até o limite de 100 vagas.

Tudo isso, ademais de configurar flagrante retrocesso no que diz respeito à efetividade do direito à proteção e promoção da saúde, apenas reforça ainda mais a tese da desproporcionalidade da aplicação do rito exclusivo do chamamento público, tal como previsto no artigo 3º da Lei do "Programa Mais Médicos".

Resta saber, ao fim e ao cabo, se o STF se mostrará sensível a esses e outros argumentos, vindo a se pronunciar pela inconstitucionalidade do rito exclusivo do chamamento público aqui discutido. É, ao menos, o que esperamos que venha a ocorrer.


[1] BRASIL. STF. ADI 5035. Rel. Min. Marco Aurélio. Data de julgamento: 30/11/2017. DJE 283.

[2] BRASIL. STF. ADI 5037. Rel. Min. Marco Aurélio. Data de julgamento: 30/11/2017. DJE 283.

[3] BRASIL. STJ. MS 23975 MC. Rel. Min. Regina Helena Costa. Data de julgamento: 13/09/2019. DJ 17/09/2019.

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