Opinião

Lei Contra o Abuso de Autoridade e suas premissas básicas

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

10 de dezembro de 2022, 10h48

A Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019, que cuida dos crimes de abuso de autoridade, depois de muita polêmica, entrou em vigor e, como não podia deixar de ser, transformou-se em instrumento de intimidação e de vingança contra agentes públicos, notadamente os que oficiam diretamente no sistema de persecução penal.

Virou moda acusar membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, além de policiais em geral, de cometerem abuso de autoridade ao exercerem suas funções.

E isso ocorre em razão de interpretação equivocada ou tendenciosa de suas normas.

Evidente que sempre há os bons e os maus profissionais como em qualquer profissão. Infelizmente, a natureza humana é imperfeita e há aqueles em que o poder sobe à cabeça ou mesmo que pretenda, de algum modo, abusando do poder que lhe foi outorgado, obter algum tipo de vantagem indevida ou deliberadamente prejudicar a outrem pelos mais variados motivos.

Nestes casos, indubitavelmente a lei deve ser aplicada e o funcionário público, independente da importância de seu cargo, punido como toda e qualquer pessoa.

A fim de se interpretar adequadamente os dispositivos da Lei nº 13.869/2019, algumas premissas básicas devem ser traçadas.

Genericamente, a lei tutela o correto funcionamento da administração pública e do sistema judiciário, aí incluindo notadamente o da persecução penal, composto por membros do Judiciário, do Ministério Público, das polícias em geral e alguns órgãos que podem lhes prestar apoio, como as Guardas Civis e Receita Federal, dentre outros.

O espírito da lei é que todo agente público desempenhe suas funções dentro da estrita legalidade, não excedendo os poderes que lhe são outorgados pela Constituição e legislação infraconstitucional.

Em nenhum momento as normas penais constantes na novel legislação podem servir de escudo para criminosos de todas as ordens, inclusive do alto escalão dos Poderes da República, intimidando ou até mesmo coibindo o livre exercício dos órgãos da persecução penal. Do contrário, haveria indevida ingerência de um Poder da República em outro, violando o princípio da separação dos poderes, ensejando a inconstitucionalidade da norma penal.

É claro que existe o sistema de freios e contrapesos de modo que um Poder seja fiscalizado pelo outro. Mas isso não pode implicar óbice para que o Poder funcione adequadamente e cumpra seu papel constitucional.

Com efeito, as normas penais existentes na Lei Contra o Abuso de Autoridade não podem levar membros do Ministério Público, do Judiciário e das polícias a não desempenhar adequadamente suas funções constitucionais, sob pena de desestabilização do sistema de justiça criminal com reflexos diretos na segurança pública e na vida da coletividade em geral.

Anoto que grande parte das condutas descritas na nova lei já era prevista na Lei nº 4.898/1965 e no Código Penal, quando tipifica os crimes de denunciação caluniosa (artigo 339) e prevaricação (319), e, nem por isso, os órgãos da persecução penal deixaram de exercer suas funções a contento.

Todas as normas penais incriminadoras previstas na Lei, dentro do espírito de sua criação, exigem um elemento subjetivo do tipo específico, que é a vontade livre e consciente de abusar da autoridade que está investido, consubstanciado na finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Além do mais, não haverá abuso de autoridade na interpretação divergente de normas ou na avaliação de fatos e provas, como expressamente previsto no artigo 1º, §§ 1º e 2º, que trazem o espírito da lei.

Desta norma extrai-se que todos os tipos penais são dolosos e não admitem o dolo eventual e muito menos a culpa. Ou seja, há necessidade de que o agente tenha a vontade deliberada de abusar da autoridade, não bastando a mera tipicidade formal, mas a análise concreta dos fatos, não se esquecendo, ainda, de que a tipicidade material também sempre deverá se fazer presente.

Todos os crimes se processam mediante ação penal pública incondicionada, ou seja, o pontapé inicial é do Ministério Público, que possui a titularidade exclusiva da ação penal pública, nos termos do artigo 129, inciso I, da Constituição Federal (artigo 3º, "caput"). Admitir-se-á ação penal subsidiária da pública nos mesmos moldes do previsto no Código de Processo Penal, quando não houver o oferecimento de denúncia, promoção de arquivamento ou requisição de diligências no prazo legal, ou seja, no caso de inércia do Ministério Público, nada mudando em relação ao sistema previsto no Código de Processo Penal (artigo 3º §§ 1º e 2º).

Lembro, ainda, que, como titular exclusivo da ação penal pública, a decisão pela propositura, ou não, da ação penal, sempre será do Ministério Público, não podendo ser obrigado a promovê-la quando entender que não é o caso, por nenhum outro órgão, nem mesmo pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) ou CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), tampouco pelo STF ou outro tribunal.

Por isso, nem tudo é abuso de autoridade e os fatos deverão sempre ser analisados concretamente para verificar se houve o regular exercício das funções ou se o agente público efetivamente extrapolou os limites legais de modo que sua conduta se adeque perfeitamente a um dos tipos penais existentes na novel legislação, presente, ainda, o elemento subjetivo do tipo específico indispensável para a ocorrência do delito.

Por outro lado, presentes os elementos indispensáveis para a caracterização do delito, a lei penal, que é genérica e impessoal, deve ser aplicada ao agente público que abusou de suas funções, pouco importando quem seja e o grau de importância do cargo ocupado, lembrando que quanto mais importantes as funções exercidas maior deve ser o comprometimento com o bem-estar da população e observância das normas legais.

Se, de um lado, a lei não pode ser empregada para intimidar ou coagir o agente público a se omitir por receio ou medo de ser processado, de outro, deve ser aplicada sem dó no caso de haver efetivo abuso de poder por quem deveria justamente cumprir a legislação, pouco importando o cargo exercido, desde o mais modesto até o mais importante na esfera dos três Poderes da República.

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