Ambiente Jurídico

Dimensões dos danos causados ao patrimônio cultural

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

10 de dezembro de 2022, 8h00

O dano ao patrimônio cultural pode ser conceituado como toda lesão causada por atividade humana positiva ou negativa, culposa ou não, que implique, direta ou indiretamente, em perda, privação, diminuição ou detrimento significativo, com repercussão negativa aos atributos e funções de bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro.

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Os danos ao patrimônio cultural são, infelizmente, cotidianos e se revelam das mais variadas formas. Na maioria das vezes eles decorrem do uso nocivo da propriedade e de condutas (comissivas ou omissivas, dolosas ou culposas) do poder público e de particulares.

A destruição, deterioração, inutilização de prédios e documentos históricos, a descaracterização e o abandono de edificações tombadas, a demolição às pressas e às ocultas de bens inventariados ou em processo de tombamento, a pichação de sítios arqueológicos rupestres, a extração e o comércio clandestinos de fósseis e bens de valor arqueológico, a subtração e o comércio descontrolado de imagens sacras coloniais, a explosão de grutas que guardam vestígios arqueológicos e paleontológicos para exploração de recursos minerais, a pichação de monumentos urbanos, as construções em frontal  desrespeito às normas de ordenamento urbano, a poluição visual em  cidades históricas e turísticas, o descaso com bibliotecas, museus, teatros, cinemas e demais espaços destinados às manifestações culturais, a arbitrariedade lesiva a formas de fazer e viver tradicionais, a privação da fruição de bens culturais em decorrência de subtração ou outra forma de privação do direito de acesso ao patrimônio cultural alguns  são apenas alguns exemplos da enorme e variada gama de ações lesivas ao patrimônio cultural brasileiro  que devem ser objeto de especial atenção dos operadores do Direito, a quem toca lançar mão dos meios preventivos e reparadores existentes no ordenamento jurídico vigente.

O dano ao patrimônio cultural pode assumir dimensões variadas, de natureza material ou imaterial, que devem ser devidamente identificadas em cada caso concreto para que se busque o ressarcimento integral da lesão causada ao bem de interesse coletivo.

Conforme o caso, a restauração, a indenização por danos materiais irreversíveis, a indenização por danos interinos, a indenização por danos extrapatrimoniais e a restituição de lucros ilicitamente obtidos podem ser exigidos simultaneamente como forma de reparar integralmente o, não raras vezes, multifacetário dano ao patrimônio cultural, nos termos do permissivo da Súmula 629 do STJ: "Quanto ao dano ambiental, é admitida a condenação do réu à obrigação de fazer ou à de não fazer cumulada com a de indenizar".

No que tange às formas de reparação, temos as possibilidades de restauração, indenização (por danos materiais, sociais, interinos e morais), além da restituição de lucros ilícitos.

Em caso de lesão material a bem integrante do patrimônio cultural (degradação por abandono, demolição parcial, inserção de elementos descaracterizadores, v.g.), a medida necessária para se reparar o dano será, geralmente, a restauração, enquanto procedimento técnico que tem por objetivo restabelecer a unidade do bem cultural, respeitando sua concepção original, os valores que justificaram a proteção e seu processo histórico de intervenções.

Sempre que possível, o retorno do bem ao status quo ante, volvendo a uma situação o mais próxima possível da sua condição original, é medida prioritária e obrigatória na reparação de bens culturais. Trata-se da reductio ad pristinum status, ou seja, o restabelecimento à condição de origem.

Entretanto, no caso de perda integral de um bem material, como a demolição total de uma edificação tombada, há entendimento de especialistas da restauração no sentido de que a reconstrução seria inadmissível, pois não passaria da criação de um falso histórico, um pastiche totalmente desprovido de valor cultural. Em casos tais, a reparação deveria se dar mediante o pagamento de indenização compreendendo as dimensões materiais e extrapatrimoniais do dano, além da imposição de obrigação que iniba a obtenção de vantagem ilícita decorrente da demolição, como a de não construir acima da altimetria e volumetrias originais do bem destruído.

Particularmente pensamos que, em determinados casos, mormente quando o sentimento coletivo de pertencimento for atingido pela ação lesiva, mesmo havendo destruição total do bem material, a sua reconstrução pode ser determinada como forma de reparação parcial dos danos e desestímulo para a reiteração de fatos símiles. Em casos tais, sempre deverá haver informação visível de que o bem é uma réplica e foi reconstruído em razão do cometimento de ilícito contra o patrimônio cultural.

Mesmo quando cabível, nem sempre a restauração será capaz de ser aplicada de maneira integral ao bem cultural lesado, podendo remanescer uma parcela atingida pela irreversibilidade (dano residual ou permanente).

Nesse tipo de situação, ante a impossibilidade da tutela específica de restauração integral, a obrigação remanescente deve ser convertida em perdas e danos e o valor da indenização revertido para o fundo de direitos difusos lesados.

Vale destacar que entre o momento da ação ou omissão lesiva ao patrimônio cultural e o pleno restabelecimento do bem atingido (hiato passadiço de deterioração total ou parcial do bem de interesse público), verifica-se a ocorrência de dano interino ou intermediário – verdadeiro lucro cessante cultural  cuja reparação deve se dar por indenização pecuniária em benefício do fundo de direitos difusos lesados.

O dano interino, conforme o caso concreto, poderá também assumir a dimensão de dano social, relacionado ao tempo durante o qual a coletividade fica privada da fruição do bem afetado pela atividade danosa e do benefício que ele proporcionava para atividades culturais, científicas, turísticas, de lazer e mesmo como insumo de alguma atividade econômica.

Em casos de danos graves ao patrimônio cultural (tais como a lesão significativa ou ruína de bens históricos, o impedimento arbitrário da realização de uma festa tradicional ou de uma importante partida de futebol, a privação injusta e duradoura do acesso e fruição de uma imagem sacra de grande valor histórico, decorrente de sua subtração; a danificação irreparável ou de difícil e custosa reparação de um local especialmente protegido etc.), é plenamente cabível a indenização pelos danos extrapatrimoniais, na modalidade de danos morais coletivos.

Com efeito, é indiscutível a possibilidade de a coletividade ser afetada, em seus valores extrapatrimoniais, não só em decorrência da existência de sentimentos subjetivos de perda ou sofrimento, mas também em razão da violação a uma carga de valores éticos comuns, verificáveis objetivamente.

Os valores obtidos em razão da condenação judicial pelo cometimento de danos morais decorrentes de agressões ao patrimônio cultural deverão ser destinados para um dos Fundos de Direitos Difusos Lesados mencionados no artigo 13 da Lei 7.347/85.

Nas hipóteses de acordo envolvendo a reparação dos danos, entendemos ser plenamente possível a destinação dos valores para a execução de projetos que beneficiem outros bens culturais situados o mais próximo possível do local da ocorrência da lesão (compensação por equivalente).

Questão interessante diz respeito à prova da ocorrência de danos morais coletivos em razão de lesões a bens integrantes do patrimônio cultural.  Em casos tais, presume-se (presunção hominis ou facti) a ocorrência da danosidade extrapatrimonial (damnum in re ipsa), que deriva inexoravelmente do simples fato ofensivo grave objetivamente demonstrado, segundo as regras de experiência comum. 

Por derradeiro, é de se destacar que o agente causador do dano ao patrimônio cultural não pode obter, com sua conduta, qualquer vantagem de natureza moral ou patrimonial. Trata-se da aplicação do princípio milenar que preconiza que "nemo potest lucupletari, jactura aliena" (ninguém pode se locupletar à custa alheia), incorporado em diversos dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro, a exemplo do artigo 884 do Código Civil e artigo 91, II, b, do Código Penal.

Por isso, pela via da responsabilização civil é cabível tanto a imposição de obrigação de não fazer para se prevenir a obtenção de lucros ilícitos (abster-se de construir acima da altimetria original de uma edificação demolida, v.g.), quanto a obrigação de ressarcir a mais-valia ilícita que auferiu (restituir o valor obtido com a retirada de minério de uma montanha tombada, v.g.).

Enfim, são essas as principais dimensões dos danos causados ao patrimônio cultural e as suas formas de reparação.

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