Interesse Público

Federalismo administrativo, processo e experimentação

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

8 de dezembro de 2022, 8h00

O Estado federal é estado pluriconstitucional, caracterizado pela coordenação necessária e indissolúvel entre as diversas ordens jurídicas parciais e entre estas e a ordem jurídica nacional. A federação, além de cláusula pétrea (artigo 60, §4, I, CF), é princípio estruturante, pois seu conteúdo encerra deveres de lealdade federativa e deveres de entrosamento harmônico e responsável de competências administrativas de execução e de formulação de políticas públicas, competências jurisdicionais, competências financeiras e competências políticas. Estado federal é Estado plurilegislativo, pluriadministrativo e plurijurisdicional. 

Spacca
A Federação não é totalidade simétrica, mas unidade composta por simetrias e assimetrias, elo formado por unidades autônomas que não são isoladas e sim interdependentes, com feições distintas, sendo essa uma das causas para a variedade das ordens jurídicas federais reais, moldadas de modo histórico-concreto e não puramente ideal. Basta lembrar que entre nós o legislativo da União é bicameral e dos estados e municípios é unicameral, dado que deve repercutir inclusive no processo de aprovação de emendas das normas constitucionais subnacionais.[1] Os municípios não possuem organização judiciária própria, ou Ministério Público, ou Defensoria. O Estado federal brasileiro possui contornos concretos específicos vinculados à sua evolução. Por igual, o federalismo administrativo brasileiro guarda as marcas de sua história.

Desde a implantação da Federação, o processo administrativo no Brasil desenvolveu-se como uma das faces da autonomia administrativa dos entes políticos integrantes da Federação. Legislar sobre processo administrativo, ao menos nos tempos de normalidade institucional, nunca foi objeto de competência privativa da União, tendo sido considerado inerente à autoadministração de cada unidade federativa a possibilidade de definir o modo de atuação dos seus órgãos administrativos próprios e as formas de relacionamento destes com outros órgãos públicos e com os cidadãos, observada a Constituição (artigo 25, da CF, e artigo 11, do ADCT).

Processos disciplinares, processos de concessão de vantagens, processos de coordenação de interesse, processos de certificação e autorização próprios, processos de condicionamento de direitos os mais variados — matérias sobre as quais os estados e municípios legislam consideradas as suas competências, ressalvadas apenas as matérias explicitamente destacadas na Constituição (v.g. desapropriação, artigo 22, II, da CF; requisições civis e militares, em casos de iminente perigo e em tempo de guerra, artigo 22, III, da CF; trânsito e transporte, artigo 22, XI, da CF; normas gerais de licitação e contratação, artigo 22, XXVII, da CF, entre outros). A previsão enumerada dessas ressalvas constitucionais não faria sentido lógico se houvesse a admissão abrangente da competência privativa da União para legislar sobre processo administrativo.

Essas e outras razões explicam a válida subsistência entre nós da interpretação restritiva do artigo 22, I, da Constituição, que limita a competência privativa da União para legislar sobre "direito processual" ao processo civil, penal, trabalhista e eleitoral. Por óbvio, preservada a autonomia administrativa da própria União, cabe a ela disciplinar o processo administrativo federal, mas não legislar sobre prazos, procedimentos, coordenação orgânica, recursos administrativos ou legitimados para o processo administrativo com eficácia nacional abrangente, de modo a alcançar as demais unidades da Federação. Essa orientação é antiga, tendo o clássico Pontes de Miranda ensinado que "se o direito material é da competência do Estado-membro, o direito processual para realizá-lo também o é" [2]. Como é notório, é reconhecido no federalismo brasileiro a competência aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios para dispor sobre o direito administrativo no âmbito de suas competências, com expressas ressalvas constitucionais.

Saliente-se que mesmo nos processos judiciais tem-se hoje forte tendência a ampliar as competências dos Estados-membros, não apenas para legislar concorrentemente sobre "procedimentos em matéria processual" (artigo 24, XI, da CF), como também sobre a organização judiciária própria, a distribuição de competências dos órgãos jurisdicionais locais e a disciplina de ações constitucionais típicas estaduais (ex. regime próprio das ADI's  estaduais). Essa ampliação tem sido considerada, pelo Supremo Tribunal Federal, base para a "experimentação processual", com adoção de soluções adequadas às realidades das jurisdições locais. É o que se extrai, por exemplo, do julgamento pelo qual foi declarada constitucional a lei carioca que disciplinou a homologação judicial do acordo alimentar, com participação da Defensoria Pública:

"O estado do Rio de Janeiro disciplinou a homologação judicial de acordo alimentar nos casos específicos em que há participação da Defensoria Pública, não estabelecendo novo processo, mas a forma como este será executado. Lei sobre procedimento em matéria processual. A prerrogativa de legislar sobre procedimentos possui o condão de transformar os Estados em verdadeiros 'laboratórios legislativos'. Ao conceder-se aos entes federados o poder de regular o procedimento de uma matéria, baseando-se em peculiaridades próprias, está a possibilitar-se que novas e exitosas experiências sejam formuladas. Os estados passam a ser partícipes importantes no desenvolvimento do direito nacional e a atuar ativamente na construção de possíveis experiências que poderão ser adotadas por outros entes ou em todo território federal. Desjudicialização. A vertente extrajudicial da assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública permite a orientação (informação em direito), a realização de mediações, conciliações e arbitragem (resolução alternativa de litígios), entre outros serviços, evitando, muitas vezes, a propositura de ações judiciais. Ação direta julgada improcedente." [STF, ADI 2.922, rel. min. Gilmar Mendes, j. 3-4-2014, P, DJE de 30-10-2014.]

Em verdade, a norma estabelecida no artigo 24, XI, da CF, vincula-se diretamente ao artigo 22, I, da CF. Não apenas pela primeira referir a "procedimento em matéria processual", mas por imperativos da arquitetura federativa brasileira. Destaco três aspectos.

Primeiro: os municípios, nos termos do artigo 30, da CF, possuem autonomia administrativa, com expressa competência para legislar sobre assuntos de interesse local e dispor sobre a disciplina e a responsabilidade dos seus agentes. No entanto, na arquitetura das competências concorrentes previstas no artigo 24, da CF, foram deliberadamente excluídos, reservando-se nas matérias referidas a competência suplementar exclusivamente aos Estados-membros.

Os municípios poderão legislar apenas em caráter residual, suplementando o que remanescer da legislação federal e estadual, com fundamento no artigo 30, II, o que claramente é incompatível com a autonomia administrativa dos municípios se ampliado o alcance do artigo 24, XI, da CF, para abranger os procedimentos em matéria administrativa. Contrariamente, sendo o artigo 24, XI, referende exclusivamente a "procedimento em matéria processual" de natureza jurisdicional, harmoniza-se a arquitetura federativa.

Segundo: a competência expressamente outorgada à União para legislar sobre normas gerais de licitação e contração (artigo 22, XXVII, da CF), que inevitavelmente avança sobre temas procedimentais e preparatórios do regime de contratação, seria ociosa e rebarbativa se coubesse à União, em qualquer caso, legislar sobre normas gerais de procedimento em processo administrativo, contradição que não cabe presumir.

Terceiro: a autonomia administrativa da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios sugere a necessidade de disciplina autônoma, privativa e plena, do processo administrativo no âmbito de cada unidade, ressalvadas as matérias excluídas expressamente pela Constituição, por ser inerente ao autogoverno e autogestão das unidades federativas. A estabilidade da organização e funcionamento administrativo das unidades subnacionais não se compatibiliza com um regime de instabilidade inerente à superveniência de lei nacional contrária nessa matéria ou a incerteza neste tópico sobre o alcance das normas gerais emitidas pela União. O processo administrativo, assim como os procedimentos em contraditório e paridade que nele se encerram, compõem o núcleo essencial da autonomia administrativa das unidades da Federação.

Aplicação subsidiária e integrativa da Lei 9784/99
O Superior Tribunal de Justiça tem admitido a aplicação subsidiária da lei federal de processo (Lei 9784/1999) aos estados e municípios quando inexistente norma legislativa própria das unidades subnacionais.

Essa operação hermenêutica é realizada sem o reconhecimento da competência da União para legislar sobre normas gerais de processo ou procedimento administrativo. Determina-se a aplicação da legislação federal exclusivamente em caráter integrativo, ante lacuna da legislação local, com invocação de princípios e direitos fundamentais dos cidadãos de obrigatória vigência nacional, a exemplo da segurança jurídica, proporcionalidade e razoabilidade, e com expressa ressalva da superveniente aprovação de legislação própria pelos estados e municípios. É dizer: adota-se sistemática inversa àquela prevista no artigo 24 da Constituição, dado que esta última apenas admite a competência plena do Estado-membro exclusivamente ante a inércia legislativa da União.

Essa orientação integrativa é atualmente objeto da Súmula 633:

"A Lei nº 9.784/1999, especialmente no que diz respeito ao prazo decadencial para a revisão de atos administrativos no âmbito da Administração Pública federal, pode ser aplicada, de forma subsidiária, aos estados e municípios, se inexistente norma local e específica que regule a matéria."

Dissolução dos conceitos de processo e procedimento
No Brasil, em face da dualidade expressa na Constituição, que atribui competência privativa para a União legislar sobre "processo" (artigo 22, I, da CF) e competência concorrente da União, estados e Distrito Federal para legislar sobre "procedimento em matéria processual" (artigo 24, XI, da CF), alguns autores sustentam a inviabilidade da dissociação processo-procedimento e buscam outros critérios para a definição de competências. Por exemplo, Paula Sarno Braga, em livro notável, assevera que "processo e procedimento são, em essência, noções indissociáveis entre si. E legislar sobre um significa legislar sobre o outro"[3].  

Não comungo do mesmo entendimento. Penso que a distinção, embora sutil e muitas vezes difícil, entre processo e procedimento não é inviável em direito administrativo e talvez também não o seja em matéria jurisdicional. A sindicância sobre fato administrativo ilícito de autoria desconhecida é procedimento e não é processo: não há bilateralidade, não há pretensão, não há contraditório, mas simples sequência ordenada de atos de organização da atividade investigatória do Estado. Identificado um possível responsável, haverá denuncia (portaria de instauração do processo disciplinar), contraditório, participação paritária e organização instrutória de identificação de responsabilidades. Não há equivalência nas séries de atos, fatos e situações jurídicas formadas nas duas situações indicadas.

Haverá procedimento nos dois casos, sequência ordenada e coordenada de atos e fatos, preparatória para decisão no exercício da função, porém na hipótese de processo haverá procedimento organizado em contraditório e atuação paritária de sujeitos processuais determinados. Legislar sobre processo é distinto de legislar sobre aspectos comuns da ordenação de atividades funcionais; a legislação processual preordena-se a assegurar relação jurídica paritária, sendo o procedimento correspondente articulado estrutural e teleologicamente à luz do enlace dessas posições subjetivas e dos ônus correspondentes às partes.

Mutatis mutandis, em sede de atuação do Judiciário em função própria ou correlata, a distinção igualmente se aplica e pode explicar a diferença da arquitetura de fontes estabelecida no artigo 22, I, e 24, XI, ambos da Constituição. A distinção sensibiliza a jurisprudência do STF, que admite que estados legislem sobre "a competência do advogado-geral do Estado para receber a citação inicial ou comunicação referente à ação ou processo ajuizado contra o estado ou sujeito à intervenção da Procuradoria-Geral" (ADI 5.773, Rel. Alexandre de Moraes, Rel. p/ Acórdão: Cármen Lúcia, j. 08/03/2021), "inquérito policial, como procedimento subsumido nos limites da competência legislativa concorrente", observada a competência suplementar (ADI 2.886, Rel. Eros Grau, Rel. p/ Acórdão Joaquim Barbosa, j. 3/4/2014); a disciplina pelo Poder Judiciário local das funções de "inspecionar, ordenar, normatizar e disciplinar a prestação dos serviços notariais e de registro, inclusive com a estipulação de deveres dirigidos aos agentes delegados, relacionados à prestação efetiva e adequado do serviço, com qualidade à população (Lei 8.935/94, artigo 38), tal como, no caso, através da criação dos deveres de residir na comarca ou distrito onde localizada a serventia e de observar a pontualidade e a assiduidade no serviço. Compatível com o regime geral (Lei 6.015/73, artigo 19) a estipulação, pelos Estados-membros e Distrito Federal, de prazo para a expedição de certidões pelas instituições cartorárias, observado o parâmetro máximo fixado na Lei dos Registros Públicos (até cinco dias)." [ADI 3.264, rel. min. Rosa Weber, j. 21-3-2022); "criação, por lei estadual, de varas especializadas em delitos praticados por organizações criminosas. (…) A composição do órgão jurisdicional se insere na competência legislativa concorrente para versar sobre procedimentos em matéria processual, mercê da caracterização do procedimento como a exteriorização da relação jurídica em desenvolvimento, a englobar o modo de produção dos atos decisórios do Estado-juiz, se com a chancela de um ou de vários magistrados. (…) Os Estados-membros podem dispor, mediante lei, sobre protocolo e distribuição de processos, no âmbito de sua competência para editar normas específicas sobre procedimentos em matéria processual (artigo 24, XI, da CRFB)." (ADI 4.414, rel. min. Luiz Fux, j. 31-5-2012).

Conclusão
Todas essas considerações reafirmam a necessidade de preservar-se a autonomia plena dos estados e municípios para legislarem sobre processo administrativo, admitindo-se apenas, nos específicos tópicos que encerram direitos fundamentais processuais ou concretização de princípios constitucionais de imediato acatamento, a possibilidade de aplicação subsidiária de norma nacional ou estadual integradora. O processo administrativo insere-se na competência constitucional dos estados-membros para legislar sobre direito administrativo (artigo 25, § 1º, CF/1988) e na competência dos municípios para disciplinar a própria organização e funcionamento administrativo (artigo 30, CF/1988). Em situações de omissão grave, que coloquem em risco a aplicação da própria Constituição, a aplicação subsidiária cumpre o papel de colmatação. Preservada a autonomia legislativa poderão as unidades subnacionais inovar na matéria administrativa, sem amarras centralistas, exercitando o papel também de "laboratórios de experimentação" em matéria processual administrativa, respeitados os princípios constitucionais obrigatórios.

Essa orientação compatibiliza-se com a decisão da ADI 6.019, Rel. p/ acórdão min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j.  em 12/5/2021, que reconheceu expressamente a competência constitucional dos estados-membros para legislar sobre direito administrativo (artigo 25, § 1º, CF/1988) e, dentro deste âmbito, sobre processo administrativo.

É assim um retrocesso a diretriz constante do recente PLS 2.481/22 de "nacionalizar" integralmente a Lei 9.784/1999, alterando a sua ementa e eficácia, com invocação do artigo 24, XI, da Constituição. Transformar toda a Lei 9784/1999, inclusive com as eventuais e detalhadas inovações propostas, em "lei geral de procedimento em processo administrativo" com eficácia nacional, coloca os Estados-membros em posição subalterna e o municípios completamente fragilizados em matéria de especial relevo para a autoadministração dos entes locais. Há passos largos demais, que ao aparentemente avançar, retrocedem ou levam à frustração conquistas importantes para a cidadania a exemplo da aplicação da lei geral de processo ante lacuna da legislação processual local. Valorizar o federalismo administrativo ainda é tarefa necessária.


[1] [1] MODESTO, Paulo. Fraude no devido processo legislativo e seu controle jurisdicional. Conjur, 1.07.2021, https://www.conjur.com.br/2021-jul-01/interesse-publico-fraude-devido-processo-legislativo-controle-jurisdicional ou https://www.academia.edu/49762212

[2] [2] MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967: com a Emenda n. 1, de 1969. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 59.

[3] [3] BRAGA, Paula Sarno. Norma de processo e norma de procedimento: o problema da repartição de competência legislativa no Direito Constitucional brasileiro. Salvador: Juspodium, 2015, p. 161.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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