Fábrica de Leis

Os perigos de uma produção normativa puramente racional-instrumental

Autor

  • Natasha Schmitt Caccia Salinas

    é professora do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio doutora e mestre em Direito pela USP e master of laws (LL.M.) pela Yale Law School.

6 de dezembro de 2022, 8h00

Tem-se escrito, desde a inauguração desta coluna, sobre a necessidade de que as decisões tomadas no curso de processos de produção normativa, tanto do Poder Legislativo quanto do Executivo, sejam mais racionais. Embora haja disputas em torno do que seria uma decisão racional, não se pode negar que o modelo de racionalidade-instrumental defendido nesta coluna e em tantos outros lugares, que promete trazer soluções por meio de metodologias empíricas de escolha racional, produz toda uma sorte de outros problemas frequentemente negligenciados.

Spacca
Um modelo racional-instrumental prescreve que uma decisão racional é aquela que escolhe a solução mais adequada para a realização de objetivos predeterminados. A solução mais adequada será, por sua vez, aquela que realiza certos objetivos de forma a maximizar as preferências do decisor.

A aplicação bem sucedida desse modelo, por sua vez, pressupõe que o decisor: (i) disponha de informações que lhe permita conhecer todas as alternativas; (ii) seja capaz de avaliar as consequências de cada solução alternativa, ou que ao menos seja capaz de calcular suas probabilidades; (iii) possua uma ordem de preferência consistente sobre cada ação alternativa.

É inegável a força e a influência desse modelo racional-instrumental sobre a constituição de políticas de melhoria de qualidade legislativa/regulatória. A implementação da análise de impacto regulatório mundo afora constitui um notório exemplo. Embora a AIR contemple uma série de metodologias, não necessariamente quantificáveis, existe uma certa presunção de que uma análise de impacto boa é aquela que apresenta metodologia quantitativa. Tanto é assim que a OCDE recomenda fortemente que métodos quantitativos sejam empregados nos processos de produção normativa, e que os órgãos de supervisão regulatória sejam responsáveis por promover capacitação e avaliação do emprego desses métodos.

Tem crescido, no entanto, críticas cada vez mais contundentes à aplicação de um modelo puramente racional-instrumental para a tomada de decisão governamental, tanto para a formulação de políticas públicas, legisladas ou não, quanto para a produção de normas em sede legislativa ou regulatória.

Especificamente sobre a aplicação do modelo racional-instrumental à produção regulatória, as críticas mais contumazes gravitam em torno da análise de custo-benefício, que é o método mais difundindo — e defendido — de análise de impacto regulatório no mundo. A defesa do método é tamanha que, nos Estados Unidos, análise de impacto regulatório e análise de custo-benefício são termos quase sempre utilizados como sinônimos.

Pois bem, elenco, brevemente aqui, quatro problemas que a literatura costuma destacar ao uso acrítico da análise de custo-benefício.

Em primeiro lugar, há uma excessiva politização do instrumento. Nos Estados Unidos, parte dos estudos de AIR desenvolvidos por agências reguladoras são revistos pelo OIRA (The Office of Information and Regulatory Affairs) sob o pretexto de controlar a qualidade da tomada de decisão regulatória de alto impacto. Pesquisas mostram que a intensidade do controle exercido pelo Oira varia consideravelmente a depender do partido político do presidente da República dos EUA, levantando, assim, fortemente as suspeitas sobre a utilização política do instrumento.

Em segundo lugar, o uso da análise de custo-benefício promove o que a literatura chama de "ossificação" da produção regulatória, tornando o processo de produção de normas, paradoxalmente, ineficiente.  Nesse contexto, algumas agências optam pela inércia em função do custo para realizar qualquer atividade nova. Outras tentam atuar, mas são paralisadas pelas regras procedimentais.

Um terceiro problema relacionado à análise de custo-benefício diz respeito à falta de confiabilidade dos dados utilizados, muitas vezes fornecidos pelos próprios regulados sem que o regulador seja capaz de avaliar os graus de coerência, precisão e completude das informações recebidas.

Por fim, uma quarta crítica reside no fato de que a análise de custo benefício confere uma certa "aura de objetividade" à tomada de decisão, mascarando os valores e interesses tanto do indivíduo que toma a decisão quanto da organização à qual ele pertence.

A análise de custo-benefício é um típico instrumento one-size-fits-all. Ela pode ser útil a agentes públicos, já que confere uma veste "técnica" a decisões predominantemente políticas. Ela serve também aos regulados, que podem exigir análise de custo-benefício tanto para promover uma regulação que lhes proteja quanto para barrar uma regulação que lhes prejudique. Por fim, a análise de custo benefício pode ser utilizada pelo Poder Legislativo, Executivo ou ambos como instrumento de controle político de órgãos reguladores.

Por esses e outros motivos, Shapiro e Schoeder defendem que a análise de custo-benefício só deve ser utilizada quando a lei expressamente o exigir. Nos demais casos, deve-se utilizar um modelo mais pragmático de tomada de decisão, que confere mais espaço para subjetivismo, explicitação de valores e interesses de todas as partes envolvidas.

Gersen e Vermeule, no artigo "Thin Rationality Review", enfatizam que agências reguladoras podem ter boas razões para decidir em alguns casos de forma irracional (em termos puramente econômicos). Isso pode acontecer, por exemplo, quando uma agência, premida por motivo de urgência, opte por decidir um curso de ação no qual esteja familiarizada, consistente com suas rotinas e sua cultura organizacional, ainda que a solução escolhida não seja "racional" sob a ótica da análise de custo-benefício.

Em se tratando de tomada de decisão coletiva, pode-se vislumbrar um eixo com dois polos extremos. Em um deles, situa-se o modelo de tomada de decisão puramente instrumental, já explicitado. No outro, pode-se visualizar um modelo deliberativo-constitutivo que legitima a tomada de decisão por outros meios, mais participativos. Esse último modelo promete resolver problemas com soluções que podem ou não ser cientificamente informadas. Há, nesse modelo, mais espaço para subjetivismo, explicitação de valores e interesses, e inclusive para a rejeição de decisões puramente racionais, desde que essas soluções sejam criadas por meios discursivos e deliberativos. Há, ainda, maior espaço para discricionariedade, mas isso não significa que ela seja exercida sem a explicitação clara das razões motivadoras da ação regulatória.

Tome-se o exemplo do regulador que necessite aprovar uma resolução sob urgência. Nesse caso, o que parece ser a melhor solução? Que a agência seja dispensada de realizar AIR, tal como prevê o Decreto nº 10.411/20, com ônus argumentativo fraco, bastando que ela alegue "dispensa por urgência", ou que ela justifique adequadamente suas escolhas regulatórias em face de suas preferências, construídas ao longo dos anos em que atua na seara regulatória? No primeiro caso, está-se adotando a solução legal — dispensa de AIR por urgência — que é inteiramente consistente com um modelo puramente racional-instrumental (é certo que a agência deverá realizar Análise de Resultado Regulatório anos depois de adotada a norma por dispensa de urgência, mas aí Inês já estará morta). No segundo caso, aceita-se um modelo menos racional, que dispensa a agência reguladora da realização da AIR, porém que não a isenta do ônus de explicitar claramente as razões pelas quais pretende adotar determinado norma.

Há vantagens e desvantagens na adoção de modelos racionais, pragmáticos e/ou deliberativos na tomada de decisão legislativa/regulatória. Precisamos parar de defender o modelo puramente racional-instrumental sem o reconhecimento explícito de seus trade offs.

Autores

  • é professora do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio, doutora e mestre em Direito pela USP e Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School. Coordenadora científica do projeto Regulação em Números da FGV Direito Rio.

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