Interesse Público

O mito da reorganização administrativa a cada nova gestão pública

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

1 de dezembro de 2022, 8h00

Avizinha-se o dia 1º de janeiro e, com ele, a inauguração de novas gestões por todo o país. Um debate previsível é aquele atinente a reorganizações administrativas, providência que, observada uma equívoca cultura nacional, o governante que chega deve sempre qualificar como essencial para o desenvolvimento de suas propostas. Brasil afora, empreendem-se "reformas organizacionais", sempre largamente repercutidas favoravelmente na mídia como o marco do início de uma nova gestão pública

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No que toca especificamente à estrutura organizacional da administração pública, dois distintos reclamos se apresentam por esses novos gestores: de um lado, aqueles que sustentam a necessidade de empreender a redução da máquina pública, supostamente alargada em excesso pelo anterior titular do Poder Executivo; de outro lado temos a narrativa de que a estrutura vigente desconsidera temáticas de grande relevância, secundarizando matérias que deveriam ser objeto de atenção especial pela nova gestão.

No que toca à estratégia da redução, já escrevi ensaio anterior — "O zinco e o cobre – ou porque todo governo começa cortando 30% de alguma coisa". Na ocasião, evidenciei uma preferência pelo número cabalístico indicado no título, que se aplicava horizontalmente por toda a administração pública — providência frequentemente louvada por muitos como evidenciadora de austeridade. A opção pela criação de novas estruturas administrativas é igualmente justificada, agora pelo imperativo do reconhecimento de minorias, ou de problemas públicos que mereceriam olhar especializado, e que foram ignorados pelo antecessor. Ambos são juízos formulados em curto espaço de tempo, a partir de uma perspectiva externa, e sujeitos — naturalmente — a outras externalidades que são próprias do universo da política. O que parece não ser objeto da devida consideração é a descontinuidade que ambas as opções determinam em relação ao regular funcionamento da máquina.

A redução linear de estruturas públicas, determinada a partir de um número usualmente fixado segundo imperativos fiscais, não se dá exclusivamente a partir da edição de ato administrativo normativo do novo chefe do Executivo que assim o determine. Extintos, fundidos ou transferidos órgãos públicos, é de se empreender ao redesenho de competências de cada qual — afinal, órgão público é o "compartimento na estrutura estatal a que são cometidas funções determinadas" [1]. Esta mesma operação, empreendida em larga escala, de uma só vez, por toda a administração pública, tende a gerar uma zona cinzenta de indeterminação, com possíveis superposições ou vazios de competências. A perplexidade se instala no plano operacional.

A opção contrária — pela criação de novas estruturas administrativas — também não é imune a críticas. Afinal, a prevalência de um critério de especialização funcional, como justificativa para a criação de novas órgãos públicos, ou mesmo entidades da administração indireta, pode acarretar uma segmentação excessiva das ações públicas e a perda de uma necessária visão de coordenação e articulação que é de presidir o agir governamental. A par disso, a multiplicação de estruturas administrativas num Estado pluriclasse tende a ampliar o risco de que — segundo a lição de Giannini [2] — o interesse público de atribuição de cada qual desses órgãos se revele, por vezes, conflitante.

Numa e noutra hipótese, tem-se igualmente o efeito adverso da descontinuidade administrativa, que não parece ser considerado quando da cunhagem deste tipo de "reformulação". Isso porque a indeterminação de competências, decerto, se reflete no prosseguimento da execução de políticas públicas que se tenha em andamento — quando menos, até que se tenha por mais claro o que esteja efetivamente cargo de cada qual das unidades administrativas remanescentes.

A decisão vertical no que toca à organização administrativa pode desconsiderar igualmente, relações de matricialidade que se tenha em relação a distintos componentes dos problemas públicos em enfrentamento pela estrutura cindida. O resultado da desagregação desses vetores que não são intuitivamente reconhecidos como relacionados entre si pode ser, se não o prejuízo absoluto à execução de programas públicos em andamento; quando menos o empobrecimento do necessário aprendizado institucional decorrente desta mesma execução. Afinal, em que pese a sinalização empreendida pelo artigo 2º, IX da Lei 14.129/2021 — Lei do Governo Digital, em favor de uma "atuação integrada entre os órgãos e as entidades envolvidos na prestação e no controle dos serviços públicos"; a administração ainda opera hoje a partir de sistemas digitais proprietários, que não permitem a circulação das informações instrumental ao sucesso de uma reformulação sem traumas, de estruturas administrativas [3].

Vale ainda indicar que mudanças significativas no que toca à organização administrativa (seja para a redução, seja para a criação de novas estruturas) terão reflexo igualmente no início da execução orçamentária — afinal, a Lei de Meios do primeiro ano de governo se construiu a partir da associação de recursos públicos às unidades orçamentárias então existentes. Assim, é previsível que a Lei Orçamentária Anual aloque recursos a uma unidade administrativa que não mais existe, porque fundida com outra. O ajuste do orçamento à nova realidade organizacional pode adicionar um outro elemento de complexidade, a um momento que já traduz por si só, desafios diversos à continuidade da ação administrativa — especialmente quando se tem uma mudança de orientação política entre gestão finda e aquela que se inicia.

Fato é que a reorganização administrativa — providência primeira que sempre se identifica em momentos de alternância de poder — nunca encontra uma avaliação posterior clara em relação a seus reais efeitos, seja de efetiva economia de recursos públicos (se a sustentação da decisão foi a visão fiscal), seja de aumento da eficiência da máquina pública, se o critério de deliberação foi a da especialização funcional ou do reconhecimento de um problema público até então invisibilizado. Também não é infrequente, especialmente quando a opção inicial é pelo juízo de redução das estruturas, que órgãos extintos ou fundidos sejam lenta e sub-repticiamente reconduzidos à sua formatação original, depois que a rotina diária evidencia o acerto daquele modelo anterior.

Não se está com isso afirmando que novos governos não possam empreender a alterações em relação à estrutura organizacional que encontram ao início do mandato. O que se destaca é que essas se dão normalmente a partir de uma visão externa da máquina; uma quase intuição, que pode ser desmentida pelo contato com a realidade daquele órgão público a partir dos primeiros dias de gestão. Nem se diga que Lei 10.609/2002 e o Decreto 7.221/2010, ambos dispondo sobre a equipe de transição de governo sejam suficientes a superar essa visão parcial da efetiva realidade da administração pública. Afinal, não só ela se limita à transição no plano federal; mas também ela se limita a assegurar o acesso às informações que a equipe de transição consiga vocalizar como necessárias — o que, mais uma vez, evidencia a necessidade de uma aproximação com a estrutura vigente que nem sempre se tem, ou nem sempre se tem com suficiente aprofundamento.

A reflexão que aqui se propõe é quanto à justificação para o inevitável trade off que a fórmula tradicional de extensa reformulação administrativa como ato inaugural de governo traz no que toca à continuidade dos programas públicos em curso. A louvação de iniciativas em qualquer dos dois sentidos (redução ou ampliação da máquina pública) a partir da força retórica dos argumentos de justificação de uma ou de outra revela uma visão superficial do problema.

O mito de que uma profunda reorganização da máquina pública seja efetivamente necessária a cada novo mandato, traduz uma percepção de desvalor da continuidade das estruturas públicas, dissociando o componente organizacional do resultado de políticas públicas que se tinha em curso, e que não merecem um juízo apriorístico de sobrestamento. É certo que algumas alterações — especialmente aquelas que reflitam compromissos de campanha assumidos pelo mandatário vencedor — devem ser tidas por naturais e desejáveis, mas isso não precisa se traduzir no afã de reinventar a administração, sem que se tenha tido ainda oportunidade de empreender a um diagnóstico real da situação. Vale aqui a lição de Anthony J. D'Angelo: "não reinvente a roda, apenas realinhe-a".

 


[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26ª edição, São Paulo: Editora Atlas, 2013.

[2] GIANNINI, Massimo Severo. Il pubblico potere. Stati e amministrazioni pubbliche. Bologna: Universale Paperbacks, 1986, p. 79.

[3] VALLE, Vanice Regina Lírio do e MOTTA, Fabrício. Governo digital: mapeando possíveis bloqueios institucionais à sua implantação. In _____. (coord.). Governo digital e a busca por inovação na Administração Pública. A Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2022, p. 48-49.

Autores

  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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