Opinião

PL que extingue as saídas temporárias de presos e o populismo penal

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28 de agosto de 2022, 11h37

"Nós rapidamente nos acostumamos às coisas como elas são. Hoje, mais do que nunca, é fácil viver no imediatismo do presente e perder todo o senso do processo histórico que gerou o atual estado de coisas."

Iniciamos este artigo com esta reflexiva frase de David Garland, professor da Universidade de Nova York, que inaugura sua obra A Cultora do Controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea [1], para dizer que por 311 votos favoráveis e 98 votos contrários, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou, no último dia 3 de agosto, projeto de lei (PL 6.579/2013) que extingue a saída temporária aos presos do regime semiaberto. Para tanto, revoga os artigos 123 e 124 da Lei Federal nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal). O projeto seguiu para análise do Senado.

Antonio Cruz/Agência Brasil
Antonio Cruz/Agência Brasil

Como justificativa principal para a abolição completa do benefício previsto na Lei de Execução Penal, os congressistas afirmam que "grande parte dos condenados cometem novos crimes enquanto desfrutam do benefício" [2], além de se valer de casos notadamente midiáticos como o de Suzane von Richthofen, que se beneficiou da saída temporária no dia das mães e dia dos pais [3] e Lázaro Barbosa, que ao ser morto em 2021 em decorrência de uma alucinante "caçada policial", estava supostamente foragido por ter sido contemplado com uma saída temporária [4].

De logo se pode dizer que os ilustres congressistas tratam evidentes exceções como regras, produzindo, assim, um raciocínio falacioso, prejudiciais às políticas criminais liberais.

É falacioso porque, de acordo com dados do Infopen de 2019 [5], apenas 0,99% dos presos não retornam ao sistema penitenciário após o término da saída temporária. Em São Paulo, na última década, mais de 94% das pessoas que saíram temporariamente voltaram para as unidades prisionais. E não é só. Entre 2020 e 2021, quase 95% das pessoas que receberam o benefício da saída temporária retornaram para o cárcere [6].

Em contrapartida, não há nenhum dado concreto sequer sobre o tema: saída temporária v.s. aumento da criminalidade. Não há nenhum estudo sério sobre isso. Mas apresentamos um motivo para essa lacuna: tal contextualização entre saída temporária e majoração da criminalidade não existe! Nenhum órgão integrante do Sistema de Justiça Criminal apresentou estudos aptos a justificar a mudança legislativa para pior. O erro está justamente aí, invocar motivos sem nenhum dado estatístico para fundamentar o debate.

Na verdade, a proposta de extinção do benefício é uma perversão ao discurso sério de proteção aos bens jurídicos na perspectiva da segurança pública, não é nada mais do que populismo penal, isto é, o debate público sobre política criminal deixou de ser assunto de especialistas e de estatística para tornar-se meramente discurso político "contra o crime" sob as luzes dos holofotes. O que permeia o discurso de intervenção penal é aquele do senso comum, do apelo e que transforma o pensamento criminológico em algo pobre.

Grosso modo, o instituto da saída temporária, previsto pelos artigos 122 e seguintes da Lei Federal 7.210, consiste em permitir àqueles que cumprem a sanção penal em regime semiaberto a possibilidade de obter autorização para saída temporária do estabelecimento nos casos de 1) visitação à família; 2) frequência a curso profissionalizante; instrução do 2º grau ou superior; 3) participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.

Tendo como requisitos para a autorização, a motivação do Juízo, oitiva do Ministério Público e da administração penitenciária, somente nos casos de comportamento adequado, cumprimento de, no mínimo, um sexto da pena (se primário) e um quarto da pena (se reincidente). Ademais, a saída temporária poderá durar não mais que sete dias, e sua concessão tem limite de cinco vezes ao ano. Isto é, apenas parcela de pessoas que atendam aos requisitos objetivos e subjetivos podem gozar desse benefício de política criminal.

A saída temporária tem sólida ligação com o instituto da ressocialização da pessoa presa e possui inegável adequação com a reintegração gradual do condenado ao retorno do convívio social. É o que diz com todas as letras o artigo 14 da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal: "penas e medidas de segurança devem realizar a proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do autor à comunidade".

Dentro desse ponto de vista normativo, a saída temporária daquele que cumpre pena no regime semiaberto representa o retorno gradual ao convívio social e seu aperfeiçoamento intelectual, pela via dos estudos. Em uma palavra: a saída temporária significa ressocialização e reconstrução da própria identidade. Não é outro o motivo de o benefício previsto no artigo 122 da Lei de Execução Penal ser reservado às pessoas que se encontram cumprindo pena no regime semiaberto.

O fenômeno da crise da pena de prisão e do próprio direito penal, provoca, desde meados dos anos 80, múltiplas tendências e respostas a estas questões criminais (movimentos político-criminais) que giram em torno da reação à conduta desviada [7]. Sendo objeto da política criminal, justamente a questão de como se deve proceder contra àqueles que ameacem ou violem a proteção de bens jurídicos. "Há sempre alguém que busca por outros caminhos novas formas de resolver velhos problemas ou novos problemas impossíveis de resolver com as já velhas doutrinas", diria Claus Roxin [8].

Não se pode tirar os olhos que o direito à saída temporária constitui em um voto de confiança (responsabilidade) dada a pessoa submetida ao cumprimento de pena no regime semiaberto; ademais, tem amparo no sistema de execução criminal progressivo, porquanto representa instrumento necessário e adequado à reintegração da pessoa ao convívio em sociedade, razão pela qual não há de ser extinto com fundamento em argumentos canhestros e dissociados da realidade do moderno direito penal democrático e humanitário, que não rotula, estereotipa e tisna aqueles que são alvos do sistema de justiça criminal no Brasil.

Esperamos a rejeição do referido projeto de lei.


[1] GARLAND, David. A Cultora do Controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução, apresentação e notas de André Nascimento. Rio de Janeiro. Revan 2008. 2ª Reimpressão, abril de 2017, p. 41.

[7] Sobre o tema político-criminal ver: GOMES, Luiz Flavio. Suspensão condicional do processo penal: o novo modelo consensual de justiça criminal: lei 9.099, de 26.9.95. São Paulo. Editora Revista dos Tribuinais, 1995, Capítulo III.

[8] ROXIN, Claus. Culpabilidad y prevención en el derecho penal, ob. cit., p. 15.

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